Hoje terminou
o sofrimento iniciado naquele 27 de maio, 1.999. A manhã em que a
Vó Ernesta teve o derrame (provavelmente decorrente da diabetes) que
a deixaria com o lado direito do corpo paralisado. A manhã responsável
por colocá-la pela primeira vez na vida em um hospital, aos 84 anos.
Por colocá-la na cadeira de rodas (o "carrinho", segundo ela). Conto
aqui um pouco do que me lembro e mostro algumas poucas fotos que trouxe comigo
para o exterior.
No Sítio, tomando sol no quiosque.
Me lembro bem: eu, chegando em casa no fim do dia, encontro minha mãe
e minhas irmãs de saída. E lá vou eu junto. A Vó
estava no hospital, com meu pai. Ela passara boa parte do dia lá,
fazendo exames, em observação. Minha mãe disse que notou
a boca torta pela manhã e correu com ela. Mais tarde ficou sabendo
de uma queda no banheiro, também. Mas ao chegarmos ao hospital, a
surpresa - ao menos para mim. Ela estava sentadinha, assistindo à
TV. A boca estava meio estranha, sim, e a fala um pouco arrastada. Mas nada
de assustador. O assustador seria a manhã seguinte. Ela não
acordou - e não abriria os olhos pelos próximos dias - e sua
fisionomia estava completamente mudada. Perdera o tônus muscular, parece,
envelheceu uns cinco anos em uma noite. Achávamos que ela nunca mais
acordaria.
Mas com o passar do tempo, ela começou a mostrar resposta ao som do
que falávamos (embora não abrisse os olhos), e a mão
esquerda não parava quieta. Ao final de alguns dias, saiu do hospital.
Ela era muito forte, esse foi o seu problema. Agüentou mais de quatro
anos naquela situação. Logo ela, que dizia querer morrer rápido,
para não dar trabalho pra ninguém.
Foram anos em que minha mãe ganhou uma hérnia de disco. Minha
irmã, mais jovem e forte, pelo menos escapou de conseqüências
físicas do esforço que era, várias vezes por dia, levantar
a Vó, da cadeira pra cama, pro banho, pra cadeira de novo, etc. Não
há nem como agradecer a elas por toda a dedicação. Grande
ajuda também foi a Joana, que por boa parte desse tempo esteve lá
em casa ajudando a cuidar da Vó durante o dia. Ela gostava da Joana,
e isso diz tudo.
Esta manhã, ela não acordou. Ao notar a respiração
ofegante e irregular, logo cedo, meus pais tentaram chamar socorro. Mas não
deu tempo, e aproximadamente às 11 da manhã as terríveis
dores pelo corpo, as coceiras, as noites acordadas na cama chamando pela
mãe (a dela) e os dias dormindo na cadeira finalmente acabaram.
Ela sempre foi forte. Criou sete filhos praticamente sozinha depois que meu
avô João Pereira morreu, ataque cardíaco fulminante,
por volta de 1.954. O filho mais novo, João Roberto, tinha um ano
de idade. A mais velha, Mercedes, menos de 18. Dois outros filhos morreram
prematuramente, não sei ao certo a história.
A família Pereira,
em Getulina. Estimo que essa foto seja de 1.948, mais ou menos, pela idade
aparente de meu tio José Roberto (o pequeno sentado). É a mais
antiga que já vi na família. Ainda faltavam ali minha mãe,
Darci, e meu tio João Roberto. Da esquerda pra direita: Mercedes,
Eurico (falecido alguns anos atrás), Ernesta, José Roberto,
Maria Aparecida, João Pereira (imigrante português) e Meire
(hoje bisavó!). A Vó tinha entre 30 e 35 anos de idade, e já
tinha tido sete filhos - cinco sobrevivendo. Para quem a via na cadeira de
rodas, notem um detalhe curioso - a mão direita, na mesmo posição
que ela costumava manter.
Uma boa parte da família
reunida. Os dois últimos sentados à direita eram os pais da
Vó Ernesta: os imigrantes italianos Maria Zupello e Agostinho Tomaelo.
Pela idade da minha mãe (lá na sombra à direita), uns
10 anos, essa foto deve ser do início dos anos 1.960. Suas filhas
Mercedes, Cidinha e Meire também podem ser vistas na foto, assim como
a sobrinha Bia e seu marido Bilim (?), e seu irmão João. No
detalhe ampliado, abaixo, pode-se ver melhor o tio João Tomaelo (último
à esquerda, falecido há muitos anos) e a Vó Ernesta,
ao lado dele.
Da esquerda: Anita (irmã),
Vó Ernesta e Maria (mãe), pouco depois da morte de Agostinho
Tomaelo. Ela tinha ainda uma outra irmã, Pierina, que não cheguei
a conhecer nem nunca vi em fotos (mas me lembro de quando ela morreu). A
foto deve ser de algo entre 1.965 e 1.970. Sei que Maria faleceu por volta
de 1.974, não me lembro ao certo se antes ou depois.
Na varanda do Sítio,
lugar de que gostava muito, pois aqui ela podia andar e ver as plantas e
os animais. Colocava um chapéu de palha (que minha mãe sempre
chamava de "aquele chapéu horrível de Santos Dummond") e saía
a passear.
Num início de março
alguns anos atrás, provavelmente 98 ou 99. Era meu aniversário
e estávamos tirando fotos com todo mundo. A Vó, sua filha Darci,
eu com Bendj, e João. Segundo a tia Mercedes, as primeiras coisas
que ela perguntou no hospital ao recobrar a consciência foram "como
está Geiza" (minha
irmã) e "cadê meu cachorrinho" (o Bendj), que ela costumava
levar para passear na coleira quando íam para a Praia Grande. Ela
era a única pessoa com quem ele não puxava a corrente. Era
engraçado, a cada alguns passos ele olhava para trás, para
ver se ela estava acompanhando. Ele só é comportado assim com
um outro membro da família, a Geiza.
Com
minha outra avó, Antonia Spinoza, por volta de 1.997.
A Vó Ernesta foi provavelmente a pessoa mais bondosa que encontrei
na vida. Os outros estavam sempre em primeiro lugar. Ela nunca começava
a comer sem se preocupar se a gente já tinha se alimentado (típica
nonna, realmente), mesmo quando a senilidade já estava mais avançada
e ela ia voltando a um estado cada vez mais infantil. A preocupação
dela era sempre saber como estava o serviço, se estava tudo bem, se
já tinha tomado café, almoçado, etc. E ela assegurava
que não tinha problema, ela iria preparar algo, "esquecendo" que estava
na cadeira. Aliás, essa foi uma constante nos três primeiros
anos após o derrame: ela sempre queria ir lavar roupa, cozinhar, arrumar
as camas, fechar portas e janelas (o medo de bichos, "uns mosquitões
desse tamanho" e ladrões), qualquer coisa. Fazia até o movimento
de levantar da cadeira de rodas. Não é de se espantar que ela
quisesse fazer essas coisas, foi o que fez a vida toda, cuidar da família.
Primeiro, dos filhos. Depois, dos netos, tendo morado conosco desde 1.981
até o fim.
Com a filha Meire, em um fim de semana em que o pessoal de Getulina/ Lins
foi vê-la no Sítio, pouco antes de minha prima Luciana e família
iriem morar no Japão.
Com a filha mais velha, Mercedes.
E com
o bisneto Pedro Ernesto.
Em um
aniversário em que ela ainda cantava o parabéns junto, animada
com o bolo.
Com a neta Geiza, com quem sempre se preocupou. No final, Geiza ajudou
a cuidar da Vó, servindo-lhe refeições muitas vezes
e fazendo-lhe companhia.
A Vó sempre foi de temperamento muito doce. Incrivelmente, não
me lembro de tê-la visto se queixar nesses anos de cadeira de rodas.
Nunca reclamou da vida, diretamente. Claro que reclamava das coceiras e das
dores - especialmente no último ano, quando perdeu cada vez mais a
lucidez. Mas enquanto teve controle, manteve para si mesma a maior parte
do que se passava. Era até um certo alívio quando ela tinha
seus surtos de "loucura" e falava coisas malucas e engraçadas, por
que imaginávamos que, não estando lúcida nem pensando
na sua situação, estaria sofrendo menos. Sempre mostrava genuína
alegria quando recebia visitas, e nunca vou esquecer dos momentos em que
ela me viu e ficou bem alerta no final de 2.002, quando fui ao Brasil passar
o ano novo. Ela disse algo do tipo "nossa, há quanto tempo que você
não vem aqui! onde você estava?", riu e conversou por mais alguns
minutos e voltou ao estado meio sonâmbulo que era cada vez mais comum
e que ficou constante nos últimos meses. Foi a última vez que
eu a vi lúcida, acho. Nem quando me despedi para pegar o avião
de volta ela conversou e ficou esperta (o que meu pai, que ela idolatrava,
chamava de "cara de passarinho", que era realmente muito engraçada).
Deixou uma irmã, seis filhos, 19 netos, mais de 16 bisnetos (já
perdi a conta) e uma tataraneta!
Sentimos muita saudade.
Marcelo.