A BRUXINHA |
Tinha os cotovelos fincados no parapeito,
o olhar perdido e um corvo graciosamente empoleirado no ombro esquerdo.
Atirou para longe o resto do cigarro, expeliu o fumo - o que ocasionou
um ruidoso ataque de tosse por parte do corvo - e, resolutamente,
virou costas ao cenário que contemplava, plácida clareira entre
denso bosque, cheia já de murmúrios crepusculares. "Acabou-se!"
disse para si mesma.
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Dirigiu-se para a prateleira dos
pós e elixires e pôs-se a soletrar os rótulos das garrafas alinhadas,
alguns dos quais ilegíveis de gastos. Mas ela sabia-os de cor: "Elixir
da Longa Vida", " Pó de Sapo", "Asa de Morcego", "Poção da Sabedoria
Eterna", "Veneno de Urubu", "Água da Juventude"... Cá estava! "Soluto
para Desgostos de Amor" - duas colheres, tomadas ao entardecer de
uma tarde de Verão, recitando a fórmula nº 508, enquanto o sol se
põe." Era o momento! E duas colheres era pouco: a desilusão que
tivera valia bem um frasco inteiro.
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Merlin, o corvo, que além de alérgico
ao tabaco, fan dos U2, admirador de Schumacher, frequentador do
British Museum, coleccionador de fotos da Naomi Campbell, benfiquista,
grande amador de alheiras, nadador exímio, faquir nas horas vagas,
engenheiro diplomado, ex-vendedor de enciclopédias, vegetariano,
bombeiro voluntário, dono de uma loja dos 300, patrocinador de um
programa de rádio e grande consumidor de donuts, sabia ler o pensamento
crocitou, assustado: o que ela ia fazer era uma imprudência! E ela,
mais que ninguém, bem o sabia. "Raios partam aquele idiota e aqui
vai, à minha saúde!" pensou a bruxinha e, juntando o pensamento
aos actos, desrolhou a garrafa poeirenta, de aspecto assustador,
e levou-a aos lábios. Momentos depois atirava com ela, furiosa,
para o recanto mais escuro da cabana: "Vazia!!! Raios, raios, raios
e coriscos! Porque é que eu sou boa, digam-me lá! Nunca devia ter
deixado a Stéphanie passar o fim de semana cá em casa. Se ela tem
desgostos de amor, com certeza que os pode curar mais depressa do
que eu... Sempre é bonita e tem dinheiro. Agora eu é que não saio
da cepa torta, Merlin, a vender compressas para as costas e pós
de mirra para os calos!"
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Merlin crocitou umas coisas, género:
"Deixa lá, és quase tão linda como ela" e "aumenta o preço das consultas,
rapariga!" ou "Ora, que importa a aparência..." Mas é que importava!
E assim a bruxinha empertigou-se frente ao espelho, dando de caminho
dois piparotes numas aranhas atrevidas, bem decidida a resolver
a questão: era bonita ou feia?
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De acordo com todos os manuais que
lera e com a "História das Bruxas em XX volumes", ilustrada, que
lera quando ainda criança, sob o olhar atento da mãe, as bruxas
eram velhas convencidas de verruga no nariz, cabelo desbotado, maus
dentes, dedos fortes terminando em garras aduncas, envoltas em roupa
informe e coroadas por um chapéu absurdamente cónico. Não havia
dúvidas de que ela não correspondia aos cânones de beleza brúxica...
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Para começar, velha é que a bruxinha
não era. Tinha 320 anos e estava em plena adolescência, tratava
borbulhas teimosas com emplastros de sua autoria e lavava o cabelo
uma vez por ano para o manter limpinho. Também aparava as unhas
das mãos e cuidava dos pés enfiando-os num banho de plantas silvestres,
no caldeirão dos cozinhados, ao menos de três em três anos. Era
uma bruxa moderna, atenta aos cuidados com a higiene!
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E quanto à aparência... sim, apesar
do espesso véu de teias de aranha que o cobria, o que o espelho
reflectia não podia deixar de se considerar belo. Ela era bonita.
Sorriu. Para depois se enfurecer e encher o casebre de imprecações.
De que raio lhe valeria ser bonita se o seu único amor lhe prestara
tanta atenção como a que se concede a um pingo de chuva caído no
relvado? E ele que lhe prometera...
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Acendeu outro cigarro e amuou frente
ao televisor, de pernas estendidas sobre a mesa, os sapatos, pontudos,
gastos e sujos num tique de impaciência a abanar, nervosos. "Raios!"
Conhecedor das suas cóleras, Merlin abrigava-se, prudente, numa
viga do tecto, cofiando com o bico as penas lustrosas, uma a uma.
Tinha um encontro nessa mesma noite, uma linda corva da vizinhança,
viúva recente e ainda triste... havia que confortá-la!...
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Ouviu o comando à distância estilhaçar-se
contra a parede ("Livra! E não é que agora dão a Love Story! É demais!")
e, metodicamente, aplicou nas penas mais um pouco de 8x4 e uma generosa
dose de Boss.
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Por entre as nuvens de fumo do septuagésimo
quinto cigarro do dia, a bruxinha ia rememorando, via formarem-se
em imagens etéreas a sua vida, o seu passado: era pequenina, criança
ainda, e ei-la no bosque, manhã brumosa. Levava o cestinho para
recolher certas plantas que já conhecia, porém as mais das vezes
não ia lá em visita de estudo; no bosque tinha a companhia alegre
e frívola das fadas, a melopeia doce dos pássaros que a saudavam
em cada ramo e a amizade grave dos gnomos, pequeninos seres que
gostava de transportar no seu bolso, quando eles tinham pressa de
chegar a algum lugar - para, por exemplo, tratarem de algum animal
ferido. Eram manhãs de festa para a bruxinha, que raramente escapava
ao controle rígido da mãe. E com razão... naquele mesmo bosque,
séculos atrás, fora capturada a sua avó por mãos rudes de rudes
lavradores. Acusada de os enfermar com maus-olhados, lhes secar
as colheitas, a pobre fora condenada à fogueira e nem os feitiços
da Bruxa-Mor da época a tinham livrado de tal sorte. E assim a mãe
da bruxinha largara à pressa casa, gato e caldeirão e construíra,
no denso mais denso do bosque, por artes de magia, uma casa. "Estamos
longe de tudo" resmungava a bruxinha "Não vou ter ninguém com quem
brincar..."
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Mas isto só às vezes. Na verdade
a bruxinha teve uma infância feliz... se bem que repleta de estudos:
não só os vinte volumes da História da Bruxaria como também o enorme
Manual das Bruxas, extensa compilação de feitiços e mezinhas, fórmulas
mágicas e regras de etiqueta para bruxas. Estudara bruxolês e ainda
uns rudimentos de francês e inglês. Às escondidas, lia ainda contos
de fadas com muitos príncipes que eram sapos ou vice-versa (que
grande coisa, transformar um sapo em príncipe! Qualquer criança
de 50 anos o sabia fazer, bastava pegar num sapo rechonchudo e recitar
a fórmula!) e princesas lindas, infelizes, depois recompensadas...
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Fora numa dessas manhãs proibidas
no bosque, quando brincava com as fadas travessas, que ouvira ruído:
cavalos e seres humanos, o vento trazia-lhes as vozes. As fadas,
precavidas, logo desapareceram. Mas a bruxinha não. Nunca na verdade
vira seres humanos... como seriam? Era um grupo de homens, dois
deles carregando maca improvisada onde jazia, inerte, um corpo.
Viram-na. "Eh, miúda, há alguma casa aqui por perto? Precisamos
de auxílio, rápido!" Ela ficou parada, silenciosa. "Então,miúda?
Não falas? Não ouves? Há por aqui alguma casa?" Ela reflectia. Vendo-a
calada, um deles comentou: " Deve ser pateta, não tem aspecto de
ser normal." E um outro não se coibiu mesmo de acrescentar: "Pateta
não sei, mas feia!... Valha-me Deus!"
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Isto magoou a bruxinha. Mas não
a fez fugir nem pronunciar o encantamento da invisibilidade. Aproximara-se
sorrateira da maca e vira um rapazinho louro: as faces, que deveriam
ser rosadas, eram de um branco mortal, os lábios estavam descoloridos
e, ainda que inconsciente, soube que ele sofria. A sua alma sofria.
E então a bruxinha decidiu-se: por gestos, pediu que a seguissem.
Nada tendo a perder, embora desconfiados, os homens, uns dez ao
todo, lá a seguiram até à cabana onde vivia com a mãe. Que diria
ela de tais visitas... mas a bruxinha não se importava. Importava
apenas salvar aquele anjo de caracóis cor do sol. E isso só a mãe
poderia fazer. E fê-lo. Nesse mesmo dia, à tardinha, o menino dos
cabelos cor de trigo abriu uns olhos suavemente azuis e fitou-a,
interrogativo. A bruxinha pegou-lhe na mão. E sentiu que tinham
ficado amigos.
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Um mês permaneceram os estranhos
hóspedes naquela cabana das profundezas da floresta. Macambúzios
de início, os homens, ao verem o seu menino melhorar a olhos vistos,
cantavam e dançavam enquanto bebiam cidra. Ela e ele passeavam pelo
bosque, sempre pertinho de casa, apanhando flores e cogumelos, brincando
com os pássaros que a bruxinha fazia poisar nos seus braços abertos.
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Porém um dia ele teve que partir.
A bruxinha sentiu-se triste, triste como nunca se tinha sentido
durante os 120 anos da sua existência.
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"Eu volto", disse-lhe ele baixinho
"Volto para te vir buscar". E partiu depois de lhe ter beijado a
mão, galantemente.
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E a bruxinha esperou.
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Durante duzentos anos ela esperou,
ao postigo estreito da cabana da floresta, rasgado na parede coberta
de hera. Esperara até àquele dia! E agora gritara a sua libertação:
"Acabou-se!"
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E não tinham sido os duzentos anos
de espera que a tinham feito tomar tal decisão... fora antes um
acaso banal: a sua velha vassoura, raramente usada, estava com problenas
no motor... e na verdade os tempos eram outros, a bruxinha estava
agora em plena adolescência, como já foi dito, e tinha vontade de
sair. Para tal, ou comprava uma vassoura nova ou mandava arranjar
aquela...
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Vestira-se e fora até à cidade,
onde havia uma oficina de cujo dono era amiga: tinha-lhe curado
a má circulação, a perna não lhe tinha sido amputada e ele ficara-lhe
reconhecidamente grato.
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Foi recebida com café e bolinhos:
claro que lhe arranjava a vassoura e nem lhe cobrava nada! Se ela
quisesse ir dar uma voltinha e regressar daí a uma hora... ou também
podia ficar ali na sala com umas revistas para se entreter... Pouco
habituada ao bulício da cidade, a bruxinha optara por esta última
hipótese.
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Instalara-se comodamente, acendera
um cigarro e folheara distraidamente, a "Paris Match", a "Hola !"...
e de repente abriu os olhos em desmesurado espanto: era ele! Era
ele, o menino dos caracóis de ouro, o seu amigo!
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Caiu em si. Não podia ser... afinal,
os serers humanos não têm a longevidade das bruxas... ela é que
fora ingénua e se apegara a esse sonho impossível. Num relance,
compreendeu o que já tinha compreendido: o menino da floresta fora
talvez o trisavô, o bisavô deste outro menino, deste outro príncipe,
pois que de príncipes se tratava. Largou a revista, esqueceu o cigarro
no cinzeiro e foi para casa sem mais lembrar a vassoura. Aí chegada
foi, por inércia, por hábito, para o lugar que ocupara durante o
fim das tardes dos dias que tinham composto os últimos duzentos
anos; fincara os cotovelos no parapeito, deixara o olhar perder-se
na espessura verde que a rodeava e Merlin, como de costume, empoleirara-se-lhe
no ombro esquerdo.
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"Ah, mas isto não vai ficar assim!"
gritou ela para Merlin, que se escapara havia muito por uma brecha
do telhado e já estava longe, a crocitar palavras doces em ouvidos
córvicos.
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"Vais ver!", exclamou a bruxinha,
erguendo-se da poltrona frente à televisão, "Já vais ver o que faço!"
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Enfiou-se na casa de banho horas
a fio. E nessa noite, desembaraçada das vestes informes e do chapéu,
com um minivestido coleante de vinil, unhas cobertas de verniz negro,
maquilhagem pesada e cabelo escorrido, dançando até de madrugada,
a bruxinha foi um mega sucesso no "Witches' Inn"!
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PS : A história da bruxinha não
termina aqui. Tive recentemente o privilégio de receber uma carta
escrita pelo seu próprio punho: conheceu, numa discoteca das redondezas,
um bruxo bem simpático, com quem veio a casar. Planeiam agora abrir
uma Escola Superior de Bruxaria e, apesar da barriguinha incomodamente
redonda, nunca a bruxinha foi mais feliz, nem tão cheia de energia
e planos para o futuro.
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Nota suplementar: As últimas notícias
de Merlin afirmam que este se encontra nas Caraíbas, em lua de mel.
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Anunciam-se ovinhos para a Primavera.
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Quase me esquecia de assinalar um
facto muito importante: a bruxinha deixou de fumar! Depois de várias
tentativas frustradas e frustrantes, e graças à colaboração desinteressada
de 3502 bombons, 1700 pastilhas elásticas sem açúcar, incontáveis
cafés e inúmeras bolachas, a nossa amiga deitou os cigarros no caixote
do lixo e leiloou a sua extensa colecção de cinzeiros. Não queria
ter nada em casa que lhe recordasse o vício. Apenas guardou um isqueiro,
em forma de sapo, ofertado em tempos pela mãe.
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