A CARTA
 

Eram os primeiros flocos de neve daquele Inverno: tímidos ainda, um pouco inseguros, derretiam-se mal tocavam a terra, que ainda guardava em recordação um pouco do calor do sol. Mas os dias suceder-se-iam e o próximo nevão seria composto por flocos mais decididos.

Assim pensava Klunk, o gnomo, olhando através dos vidros, completamente esquecido de que havia alguém à sua espera, que esse alguém não estava habituado a esperar e que esse alguém era o Pai Natal. É bom esclarecer isto desde já: o Pai Natal não era um daqueles patrões abusivos e tirânicos que fazem com que os subalternos, de quinze em quinze dias, corram para o médico cheiinhos de stress, em busca de folgas e ansiolíticos. O Pai Natal não estava habituado a esperar muito simplesmente porque os gnomos eram gente despachada que não suportava perder tempo, significando isto que qualquer tarefa a cumprir era executada dentro do seu horário e se às onze da manhã era suposto o correio do dia estar sobre a secretária, pois pontualmente às onze ele lá estaria. E isto 363 dias por ano: as cartas dirigidas ao Pai Natal eram em tal número que obrigavam à sua distribuição todos os dias do ano excepto dois: a véspera e o dia de Natal. No dia 26 surgiam ainda cartas atrasadas, que o Pai Natal lia com um sorriso triunfante de missão cumprida: em 99% dos casos os pedidos tinham sido já satisfeitos. No pequeno 1% reuniam-se casos tão diversos como o do menino que queria, como animal de estimação, um dinossauro de verdade, de carne e osso, uma menina que pedia uma irmãzinha, aquela outra que ambicionava férias em Marte...

"Klunk"! fez o nosso gnomo ao dar um encontrão na parede mais próxima, depois de se arrancar ao devaneio em frente da janela. É que já passava das onze da manhã, os gnomos são, como já foi dito, pontuais e o certo é que a correspondência destinada ao Pai Natal ainda estava ali na sua mão. Depois de mais uns quantos "klunks" (quando se enervava, o nosso gnomo dava encontrões em tudo, até nos próprios pés) Klunk atingiu finalmente o gabinete do Pai Natal. Bateu à porta, delicadamente. Na ausência de resposta, decidiu esperar. Já esperava havia uns bons dez minutos quando ouviu um som familiar: os tacões dos sapatos da menina Liliana, super-eficiente secretária do Pai Natal. -An...estou aqui à espera... -murmurou Klunk, que era tímido além de desajeitado e que naquele momento gostaria imenso de ter um buraco, no chão por exemplo, onde se enfiasse discretamente, ou pelo menos a possibilidade de se confundir com a parede (Um discreto mimetismo nunca fez mal a ninguém). É que a menina Liliana, segura de si e dos seus sadios 90 quilos, fazia com que Klunk se sentisse como realmente era: baixinho e franzino.

-O Pai Natal deve estar ocupado - murmurou por fim Klunk, após aturado esforço mental.

-Sim? Já vamos ver - disse a menina Liliana, batendo e em simultâneo entreabrindo a porta. De dentro do escritório escapou-se rapidamente um vigoroso ressonar, seguido por forte aroma a chocolate.

Para além de Klunk, que já conhecemos, vive no Pólo Norte um número desconhecido de gnomos. Todos eles hábeis artesãos, recusam-se a aceitar concorrências e mais ainda que o seu trabalho possa alguma vez ser suplantado por objectos made in Taiwan. Perfeccionistas, trabalham os materiais tradicionais: a madeira, os metais, enquanto as legítimas esposas, as gnomas, cosem bonecos de pano ou convertem a lã em roupas miniaturais. A madeira é alisada, talhada, esculpida, pintada, transformada em incontáveis brinquedos, desde mesas e cadeiras de brincar a bonecos articulados. Os metais convertiam-se em carrinhos, camionetas, aviões...

Como a existência se não compõe apenas de trabalho, os tempos livres eram apreciados e devidamente aproveitados. A ocupação favorita era sem dúvida a de cuidar as longas barbas brancas que caracterizam um gnomo genuíno. Qualquer gnomo que se preze tem um orgulho incompreensível (e incomensurável) na sua barba... e no seu chapéu!

As barbas são pois lavadas com bom shampoo, tratadas com creme de jojoba, disciplinadas com gel e colocadas bem longe de qualquer inocente secador de cabelo que possa eventualmente ressequi-las. São alisadas ou onduladas conforme o gosto do legítimo dono e depois orgulhosamente exibidas... em especial quando há gnomas por perto... (um tal hobbie, que consome tempo e dinheiro é, a par da leitura, a melhor forma de esquecer uma realidade triste: cada vez mais as crianças põem de lado ursos de peluche, cubos de madeira e cavalinhos de pano em favor de jogos de computador, barbies e tamagotchis...) Quanto ao(s) chapéu(s), podem ser de variadas cores, sendo as mais uasadas o verde e o vermelho. O verde ficou-lhes como herança dos antepassados que viviam na floresta e que com tal cor se mimetizavam no meio ambiente... bom, mas nos tempos que correm, o mais importante afinal no chapéu de um gnomo, ao que parece, não é a cor mas sim a utilidade... que se mede pela sua capacidade. Expliquemo-nos: a utilidade de ter muita arrumação. Cada chapéu pode acomodar quase uma mobília completa de sala de estar... Sim, é difícil acreditar, só vendo! Para além de servir de casa de arrumações, ou despensa, ou até de quarto de hóspedes, o chapéu tem por função manter quentinha a cabeça. Também (last but not least) o chapéu serve de adorno. Cada gnomo mantém o seu chapéu escrupulosamente limpo e de bico bem aguçado! E isto não apenas quando há festas, mas durante todo o ano. O cuidado dos chapéus fez florescer as tinturarias e todas as pequenas boutiques que vendiam escovas apropriadas, chapeleiras para guardar os exemplares extras quando se ia de viagem, brinquedos educativos, agências de viagens que propunham destinos exóticos para chapéus aventureiros, psicólogos para chapéus deprimidos... e até companhias que se aproveitavam da solidão de alguns deles para propôr os seus serviços: "porquê viver só? Conheça o chapéu dos seus sonhos..." A vaidade nos chapéus chegou ao ponto de se tornarem moda as aplicações bordadas, as lantejoulas, as rendas, as flores artificiais... e, numa época mais tardia, as correntes, os alfinetes de ama, os cadeados, colocados num chapéu despudoradamente tingido de negro.... isto por entre as camadas mais jovens, está claro, enquanto os gnomos mais velhos (consequentemente mais tradicionalistas) abanavam tristemente as cabeças (e os chapéus) enquanto murmuravam: "Que juventude!!! No meu tempo...

" E no que toca às gnomas... mas não. Ponto final. Esta história já tem chapéus em demasia. Não posso contudo deixar de confiar um segredo: os gnomos dormem de chapéu.

Falemos antes dos outros personagens que secundam o Pai Natal e o auxiliam na sua gigantesca tarefa. Há os trolls. E as fadas. Os trolls, tradicionalmente conhecidos como os inimigos nº 1 dos gnomos, são na verdade sujeitinhos (sujeitões, se atentarmos no seu tamanho) simpáticos e afáveis. Pelo menos aqueles que trabalham nas oficinas do Pai Natal... dado serem donos de grande força física, cabem-lhes as tarefas pesadas como arrumar os armazéns, onde se empilham volumosas caixas repletas dos mais variados brinquedos. O facto de serem basicamente minerais não significa que tenham um coração de pedra. A maioria é constituída por excelentes pais de família que mandam o seu saláro, quase na íntegra, para a família "back home", contentando-se em almoçar e jantar alguns seixos bem lavados, e embevecendo-se com as duras fotografias dos seus rebentos. Uma vez por ano tiram uns diazinhos de férias, que gastam a dormir, e a preguiçar, comendo sopa de pedra e bebendo água mineral. Sem cairmos, de forma alguma, na maledicência, acrescentaremos que, realmente, eles não são estúpidos que nem calhaus: a verdade é que uma vulgar rocha possui um Q.I. ligeiramente superior.

Não nos alongaremos acerca das fadas. São tão caprichosas, tão ilusórias, tão prontas a mudar de forma e de humor que o melhor é não falar muito acerca delas... tanto mais que são muito desconfiadas e têm a mania da perseguição. Como ainda por cima são vingativas... está tudo dito. Existem e basta. (Ocasionalmente, se estiverem de bom humor, podem servir como modelo para bonecas) (Um pequeno aparte: as ditas enchem a cabeça dos gnomos com ideias românticas e pensamentos concupiscentes, sendo descritas pelas gnomas mais ou menos nos seguintes termos: "essas-marmanjas-que-andam-praí-de-vestidinhos-translúcidos"... Para quem o não saiba, diga-se desde já que a maioria dos gnomos tem o seu (sua) companheiro(a) vivendo pois em decidida monogamia. "Todos menos eu" resmungaria tristemente Klunk, caso estivesse a ler este texto. Ele até se considerava um bom partido (era filho único e o pai tinha uma minazinha de cobre). Para além disso era trabalhador, honesto, sem vícios... Então por que motivo não havia ele de ter uma namorada...? Durante a semana o tempo, entre o seu trabalho de encadernador e o entregar a correspondência do Pai Natal, escoava-se a bom ritmo. O mais difícil era encarar os fins de semana na sua casinha, na companhia indolente do gato e do jornal. Dava por si a compôr poemas, a escrever cartas de amor que nunca outros olhos, para além dos seus, veriam, e por último a fazer horas extraordinárias. Até poria anúncio nalgum jornal, não fosse o caso de o próprio anonimato de um apartado postal lhe parecer pouco anónimo. Como se admitir que se está só e se busca companhia fosse ainda mais doloroso do que viver a própria solidão solitariamente e sem testemunhas. Mas a verdade é que a situação era mais que insustentável. Não perdera ainda por completo a esperança de encontrar uma companhia para o resto da vida... mas havia que começar por qualquer lado. Se ao menos conseguisse a coragem suficiente para perguntar à menina Liliana se esta queria jantar com ele... Mas arriscar-se assim a ouvir um "não" muito embora delicado, não lhe apetecia muito... Noutra ordem de ideias, será que tinha tão pouca sorte pelo facto de ser desajeitado, sempre aos encontrões a tudo e a nada?... Era capaz de apostar o salário de um mês em como a menina Liliana sonhava com um príncipe encantado, dotado do físico de um Rambo e do à-vontade de um James Bond que afinal não tropeça nunca em coisa nenhuma...

Viajemos no tempo e regressemos à altura em que o Pai Natal acordou da soneca, esfregou os olhos, tomou um gole de chocolate morno e, ligeiramente envergonhado consigo próprio, se decidiu a ver o correio do dia. Não resistiu a um bocejo. Andava a ficar cada vez mais em baixo de forma. Estivera quase a inscrever-se num ginásio, o ano passado. Ou há dois anos. Não se lembrava bem. O certo é que precisava de diminuir a barriguinha e, já agora, porque não haveria de dedicar-se à musculação? É sabido o papel importante que desempenha a alimentação... muita fruta, cereais, pão integral, lacticínios magros, saladas frescas... sabia de cor tudo isso, não era em vão que a Mãe Natal devorava livros sobre nutrição. O mais difícil consistia em passar da teoria à prática e abandonar os bifes suculentos, os bacalhaus com natas, os queijos cremosos, as febras de porco, os enchidos bem condimentados, os fartos guisados de borrego, as saborosas açordas de marisco, as tacinhas de gelado com molho de caramelo, os pastéis de nata importados... e o pior de tudo, a sua perdição: o chocolate.

E o Pai Natal ajeitou os óculos, soltou um suspiro de resignação e pescou, na tacinha de vidro ao alcance da mão, mais um bombom de creme. Era um mau hábito, aquele de comer bombons antes do almoço. Ah, mas tudo isso iria mudar em Janeiro. A sua vida levaria uma volta radical. Jogging de manhã cedo, sauna transpirante, massagens, cremes adelgaçantes e, sobretudo, DIETA.

E principiou a leitura das cartas. As quatro primeiras eram iguais aos milhares de outras que tinha recebido ao longo da sua longa carreira: letra cuidada, pedidos como lugarers comuns influenciados pelas modas do tempo: este ano uma barbie, no próximo um tamagotchi, no seguinte um Action-Man... todas começavam com uma mesma fórmula "Querido Pai Natal"... Continuou pois a ler. Foi por altura do 21º bombom que as bastas sobrancelhas brancas se lhe arquearam de espanto. Ora aqui estava uma missiva original! O Pai Natal colocou-a sobre a secretária, tomando uma nota mental: Responder. Não que as cartas dirigidas ao Pai Natal não obtivessem resposta. Eram mesmo contratados duendes extras a fim de responderem a cada carta recebida. Quando o Pai Natal, uma vez em cada cento e cinquenta anos, anotava mentalmente: Responder, isso significavsa apenas que tenciomava escrever por seu próprio punho.

"Querida Gretel,

Como deves imaginar, não costumo responder às cartas que recebo por meu próprio punho. Se assim fizesse, não me sobraria tempo para me ocupar das prendas para os meninos, não é verdade? No teu caso, contudo, tenho que abrir uma excepção: nunca antes tinha recebido uma carta de um brinquedo. Reflecti muito e creio que compreendo o teu dilema: para além dos teus naturais receios quanto ao futuro (sendo uma boneca de porcelana, é lógico que temas que alguém menos cuidadoso possa desfigurar-te) não vejo que exista outra solução que não seja a tua situação actual: fazer parte de uma colecção de bonecas antigas. Será esse um futuro assim tão mau? Pensa bem. Hoje em dia as barbies de plástico acompanham as suas donas para todo o lado, mas quantas delas não terminam esquecidas em mesas de cafés, na praia, num autocarro, pobres delas! São facilmente substituíveis, sabes? Não são amadas como o eram os brinquedos noutros tempos, quando uma boneca era uma amiga e uma companhia de verdade. Uma amiga e uma companhia, protegida e entesourada a ponto de ser transmitida de geração em geração... não é essa, em parte, a razão pela qual ainda existes?

O tempo presente já não seria agradável para ti. E, se antes fazias parte de um número limitado, agora ainda mais... é por isso natural que te cerquem de cuidados e te resguardem em vitrinas, junto às tuas contemporâneas. Não encares tal coisa como prisão, antes como situação privilegiada... e sobretudo, não penses em fugir!

Despeço-me com desejos de um Bom Natal e com um abraço cheio de amizade.

Pai Natal

-Klunk! Klunk! - chamou a menina Liliana, à porta da casinha de madeira onde vivia o gnomo. Tremia de frio e tinha um floquinho de neve a decorar-lhe o nariz arrebitado, mas continuava tão radiosa e roliça como de costume. (Ou talvez um tudo nada mais redonda, agora que o Natal se aproximava e os gnomos-pasteleiros testavam, a par das tradicionais, novas receitas)

-Sim, dona Liliana? - disse Klunk arfando na soleira da porta, dado que viera a correr, mal tendo tido tempo de descalçar os patins, com os quais praticava solitárias acrobacias no charquinho gelada das traseiras)

-Tens aqui uma carta do Pai Natal para enviar em correio expresso.

E, após uma pausa durante a qual as suas bochechas redondinhas ficaram ainda mais vermelhas do que habitualmente, a menina Liliana acrescentou: "Que tal se fossemos sair esta noite ?"

 
Texto de Ana Laureano
Desenhos de Álvaro
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