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O espelho era grande, ovalado, e assentava
nuns pesados pés de bronze. E em frente dele, miopicamente, de tal
forma que embaciava a superfície, ela concluía a maquilhagem com
mais uns toques de rímel. Pronto. Agora era só colocar os óculos
e mirar-se de longe, julgando o efeito do vestido de veludo preto.
Esta ia ser uma noite especial. Há quanto tempo que não tinha uma
folga, Santo Deus! Bom, ia aproveitá-la ao máximo. Tomou mais um
gole de água. Durante todo o dia mais não tinha feito que beber:
água e tisanas. Tinham-lhe dito que faziam uma pele bonita, desintoxicavam,
etc. Com tanto que fumava, não havia dúvida de que estava mesmo
a precisar de uma limpeza interna... bom, deixando de lado esse
detalhe, o melhor era ater-se às coisas importantes: levava (ou
não?) as lentes de contacto? Por um lado deveria levá-las... as
circunstâncias quase as exigiam: um encontro há muito ansiado com
um solteirão disponível... imagine-se lá alguém a tentar um olhar
romântico com os óculos postos! Qualquer nuance dos sentimentos,
qualquer mensagem emocional que quisesse enviar através do olhar
esbarraria fatalmente naquelas necessárias quinze dioptrias! Onde
é que haveria romantismo que resistisse... O pior é que conhecia
bem a fraca tolerância dos seus olhos aos corpos estranhos, àqueles
disquinhos gelatinosos colocados sobre as íris... ao cabo de uma
hora, hora e meia, eram os olhos a chorar, o nariz pingão, a maquilhagem
esborratada e a corrida para a casa-de-banho das senhoras. À porta
da qual batia com o nariz, dado ter a vista enevoada por uma réplica
fiel das cataratas do Niagara. Bom, tinha ainda à sua frente algumas
horinhas para decidir o que fazer. Entretanto talvez não fosse má
ideia pintar as unhas. E enquanto o verniz secava, o que, para o
resultado final ser perfeito, levava um tempinho considerável, fazer
um daqueles telefonemas que andava sistematicamente a adiar havia
uma porção de tempo, com as desculpas: "Agora é tarde, ligo amanhã"
e "hoje não dá jeito, fica para a semana". Ia aproveitar para pôr
a agenda em dia.
A primeira pincelada de verniz cobriu
parte da unha, parte da mão, uma pequena porção de carpete e uma
área considerável da mesa onde apoiava o cotovelo. Isto porque entornara
o frasquinho do verniz aos primeiros e potentes acordes de uma conhecida
e popular melodia, que bem podia ser classificada na categoria de
música pimba, que brotara, tão forte quanto repentinamente, da casa
do vizinho! Atendendo a que este último, o sr. Apocalipse, não era
propriamente uma pessoa de abordagem fácil, o melhor era ouvir e
calar. Não queria ter nada a ver com semelhante personagem... pelo
menos enquanto não fosse absolutamente necessário... Paciência!
Reflectiu para consigo que sempre era a maneira de fazer alguma
ginástica; ginástica mental ao tentar descortinar quem compraria
tais discos; ginástica física pois mais tarde ou mais cedo daria
consigo a abanar a cabeça, com ar desalentado. Havia ainda o perigo
de alguma hérnia cerebral, motivada pelo esforço despendido a tentar
entender por que motivo tal música vendia... Neste caso, tratar-se-ia
de alguma vingança do vizinho, aborrecido com o sucesso profissional
que ela granjeara?
Estava fora de questão telefonar a
quem quer que fosse. Nem conseguia ouvir os seus próprios pensamentos...
Bom, ficava para a semana! No entretanto ocupar-se-ia das unhas.
E já agora, que cor de verniz escolher? Dramaticamente negro ou
risonhamente amarelo? Romanticamente cor-de-rosa ou misteriosamente
cinzento? Loucamente vermelho ou ingenuamente branco? Demoniacamente
verde ou adolescentemente azul? O dourado é que não podia ser, não
lhe restavam mais do que umas gotas. E parte do roxo estava agora
a decorar a alcatifa. Por sorte o vestido não ficara com nenhum
recuerdo.
As unhas estavam agora como deveriam
estar: longas e agressivamente rubras. Esplêndido. Agora era só
procurar a agenda. O telefone deu sinais de vida quando ela descobria
um par de meias douradas debaixo do sofá da sala. E ainda uma camisola
há muito esquecida. Foi pois com boa disposição que atendeu a chamada."
Paciência" pensou para consigo enquanto desligava. "Acho que não
morro por adiar a massagem..." - e ainda se riu com a sua gracinha.
Assoprou as unhas e preparava-se para acender um cigarro quando
um ligeiro ruído a fez correr até à janela: céu plúmbeo, vento e
chuva desatada... só de pensar o estado lastimoso em que lhe ficaria
o cabelo, com a humidade... E então os sapatos de cetim, pintalgados
de lama? Já estava a ver que hoje ia correr tudo mal. Parecia que
até os elementos estavam contra ela, palavra de honra!
-Está? Sim? Queria falar com o sr.
Vento do Norte, por favor... Não está? Como?
Mas quem fala? É a Brisa? Olá, tá
boazinha? Daqui é a Morte... não, não, esteja descansada... até
porque hoje estou de folga... sim, também achei que precisava de
um descansozinho... tenho tido imenso trabalho, ultimamente... foi
a Bósnia, depois toda uma série de catástrofes naturais, terramotos,
inundações... estou morta de cansaço, ah, ah, ah... pois. Mas ele
regressa quando?... Ora que problema... é que hoje não me convinha
nada que ele soprasse... passei a manhã toda no cabeleireiro...
por acaso não tem aí o número do telemóvel? Ah, ele não o levou...
Bom. A ver se resolvo o caso de outra forma... E não se preocupe,
querida, não é tão depressa que a vou buscar, sossegue lá esse coraçãozinho!"
Os dedos magros, ágeis, folhearam
a pequena agenda de capa negra e brilhante:
"295... a ver se não esqueço o indicativo...
Santo Deus, será que ninguém atende?
Deve ter levado o filho, o Chuvisquinho,
a passear. Mas os gémeos, os Aguaceiros, costumam estar em casa...
só lá para o Outono é que gostam de sair... É o que eu digo, está
escrito que hoje me há-de correr tudo ao contrário. Quase me dá
vontade de cancelar o encontro. Depois de esperar anos para ter
um "buraquinho" na agenda, era o fim..." e terminou o pensamento
com uma risadinha.
Parecia-lhe que era o dia dos trocadilhos...
ao menos estava com uma certa verve, havia que admiti-lo. Melhor
guardá-la para a noite, sempre era uma vantagem ter uma conversa
fluida durante o jantar... até porque o amigo não era daqueles que
se pudessem pegar pelo estômago... com efeito, se havia coisa que
ele mais apreciasse era um diálogo vivo, saltitante... com o seu
toque, aqui e ali, de filosofia... e também uma ou outra gracinha,
um joguinho de palavras, não lhe caía nada mal. Talvez fosse esse
o caminho para o seu coração... vá-se lá saber... mas sempre se
podia tentar...
Foi à biblioteca, à procura de um
livro inspirador. Esta noite queria estar em plena forma. Vejamos:
já tinha escolhido o vestido, tinha arranjado o cabelo, tinha pintado
as unhas, que lhe faltava? E lá estava o raio do telefone outra
vez a tocar, já viram? Quem seria desta vez? Só faltava que fosse
o amigo a dizer que hoje não lhe dava jeito ir jantar fora!...
Era o amigo a dizer que hoje não lhe
dava jeito ir jantar fora.
Ela ainda replicara: "Mas, Fim, quando
é que eu vou conseguir outra noite livre? Para conseguir arranjar
um dia de folga tive de deixar muito trabalho por fazer... é bem
certo que tenciono pôr a agenda em dia amanhã, mas tão depressa
não vou poder repetir a gracinha..."
Ele murmurara qualquer coisa parecida
com uma desculpa. Que às quartas-feiras à noite, respeitando ancestral
tradição, se costumava suicidar. Ela ainda tinha tentado dizer-lhe
que era o encontro ideal... E depois de pousar o auscultador com
um ar contrariado, a Morte voltou a soprar nas unhas, franziu a
testa e sentou-se no sofá. Meditabunda.
Tornou a folhear o livrinho dos telefones.
Por momentos teve o indicador a pairar hesitantemente sobre a letra
D. E se telefonasse ao Destino? Não. Não fosse ainda ouvir alguma
premonição desfavorável... mas que dizia ela? Premonição? O Destino
não era nenhum adivinho, limitava-se a cumprir ordens. Tal como
ela. Ordens que era impensável sequer contestar. Não seriam pois
premonições, antes certezas. Factos. Factos futuros. Enfim. Mais
o fumo de um cigarro a espiralar-se na atmosfera monótona. Ao menos
não corria o risco de morrer de cancro no pulmão... E de súbito
caiu em si. Que ideia era a sua, em estar para ali com gracejos
idiotas... a iludir-se. A iludir-se, sim, a mascarar a solidão.
Porque realmente, em toda a sua existência, longa de milénios, sempre
se achara só. Fora em vão que tentara cultivar amizades; o Pai do
Universo, ao qual todo e qualquer ser devia tributar respeito, era
evidentemente inacessível. A respectiva corte, composta por anjos,
arcanjos, virtudes, potências, tronos, dominações, principados,
querubins e serafins era exuberante de alegria de viver, plena de
amor, rica de ternura, mas os pobres anjos mal tinham tempo de polir
as auréolas, tantas e tão trabalhosas eram as missões de que estavam
incumbidos. Quanto aos chamados Elementos, quase tão velhos quanto
ela, a desconfiança imperava nas suas relações. Cada vez que convidava
para um simples café, titubeavam uma desculpa ou apareciam trémulos
de circunspectos. No início, séculos e séculos atrás, não entendia
o motivo. Até que compreendeu e era de tal forma prosaico, e tal
maneira banal, que se surpreendia por não tê-lo descortinado antes...
quem é que gostava de um convite da Morte?
E quanto aos seres humanos... desde
o dealbar dos tempos que vivia na Terra, entre eles, e a sua atitude
em relação a ela era sempre a mesma, por mais artifícios exteriores
que buscassem, por mais religiões que professassem: o medo.
Fora a mega-estrela da Idade Média,
as danças macabras quase a envaideciam. A Peste Negra, à qual era
totalmente alheia, obrigara-a a trabalhar arduamente, com horas
extraordinárias, às vezes julgava que ela própria iria sucumbir
de puro cansaço. Mais para diante, em pleno século XX, os campos
de concentração tinham-na feito andar num virote. Como se não bastassem
os bombardeamentos, os racionamentos que enfraqueciam as crianças
e os velhos, ainda havia aqueles ghettos de chacina e seres humanos
que faleciam, um após outro. E quem haviam eles de culpar? A ela?
Pobre dela! Com mais gosto estaria de perna estendida, debaixo do
exótico sol das Caraíbas, a sorver um refresco qualquer, a deixar
o olhar perder-se na imensidão do mar... Culpar Deus? Como se atreviam?
"Se Deus existe, como pode permitir tais horrores?" resmungavam,
com desesperada angústia, os homens. Quando afinal eram eles mesmos
os autores de tais barbáries. Bastava-lhe recuar um pouco na história
que por toda a parte era uma sucessão de guerras, de crimes, de
genocídios. E quantas vezes se não brandiam as próprias armas em
nome de Deus?... E era dela que os homens se afastavam! Era ela
quem, no fundo, eles mais temiam! Ela, pobre emissária, pobre funcionária
que cumpria ordens sem questionar o que fazia, pois que o Senhor
Supremo sabia o que ordenava: ela limitava-se a cumprir. Os homens
não o sabiam. E, caso curioso, por mais miseráveis, por mais enfermos
ou infelizes que fossem, agarravam-se à vida até ao último sopro.
E ela não se deixava sequer enganar pelos suicidas: o último momento
trazia consigo a libertação...e o arrependimento. Tudo o que poderia
ter sido e afinal não fora. Todas as promessas que a Vida poderia
conter e tinham assim ficado por cumprir. Talvez que se não fosse
aquele o ultimíssimo momento, talvez que se ainda se pudesse voltar
atrás... talvez se apreciasse a existência de uma outra forma...
e, contristada, a Morte bebia-lhes os últimos lampejos de consciência.
Falar com a Vida não valia a pena.
Andava ocupada vinte e quatro horas por dia, tinha gravador no telefone
para mensagens às quais nunca dava resposta e de facto nunca estava
em casa. Havia milhões de coisas que a entretinham, biliões de coisas
novas que não cessavam de surgir. É claro que se viam com frequência,
dado as respectivas profissões, mas as relações entre ambas eram
corteses e breves. E se a Vida era uma belíssima mulher de pele
sem mácula e corpo perfeito, era também uma "convencida" incurável.
E porquê, afinal, quando ela era apenas
uma funcionária ao serviço de Deus... invadia-a uma certa nostalgia
quando lembrava os encontros entre ambas, ainda o mundo era jovem
e os dinossauros atroavam os ares com os seus gritos e vagueavam
sauriamente por entre aquela púbere e luxuriante natureza. Se é
que se podia dizer que tinham idade, então, nessa época ela e a
Vida eram novas. O trabalho não apertava, sobrava tempo para uma
conversa, uma troca de opiniões, um café. Dessas reuniões apenas
lhe ficara a memória intacta. E uma inexplicável aversão ao café.
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Quanto aos homens... ao longo da sua
breve história, os homens tinham encarado a Morte de variadas e
distintas formas. Se de início fora a incompreensão, a perplexidade,
o não perceber como um corpo de vivo passa a morto, às vezes sem
causa aparente, depois a questão tonara-se mais complexa. Em certas
épocas da história humana a Morte chegara a ser vista como ansiada
libertação das grilhetas da Vida. Era também vista como porta de
acesso a uma outra dimensão, mais subtil e livre da prisão dos sentidos.
Tempos houve em que os vivos tinham coexistido com os mortos (e
com a própria ideia da Morte) em boa harmonia. Era a época em que
se guardavam amorosamente os ossos dos falecidos, ou até as suas
múmias, as quais, em certas latitudes, participavam da vida dos
seus descendentes, sentadas à mesa durante as refeições, ou simplesmente
ocupando o seu lugar na casa da família. Tempos houve também em
que a Morte era a normal sequência da vida, tão natural como o sol
que cada dia surge, e então os cemitérios proliferavam junto às
moradas dos vivos, e vivos e mortos existiam assim lado a lado.
Pela mão de Alan Kardec, o espiritismo desenvolveu-se, organizou-se
e fez furor. De um momento para o outro os espíritos dos falecidos
renegaram o papel de fantasmas assustadores para assumirem o de
protectores, enviando aos vivos mensagens e conselhos em linguagem
cifrada. E quanto ao presente... pelo menos no mundo dito "civilizado"
a morte era simplesmente ignorada. Como se deixasse de existir,
ou fosse menos assustadora, pelo facto de ser ignorada. E com essa
nova postura muito do ritual que rodeava a morte fora suprimido.
Por exemplo, o luto, que antes enaltecia a morte e ajudava os vivos
a suportarem o choque e a dor da perda, quase desaparecera. Já não
se viam viúvas ataviadas de negro, já não se usavam fumos na roupa,
vergonhoso era publicitar o luto, inadmissível chorar em público.
Desta forma se ignorava a Morte, e contudo ela estava viva, de boa
saúde e era cada vez mais solicitada. Não saberia dizer o que considerava
mais incomodativo, se a injusta representação anoréxica medieval,
se a forjada indiferença com que hoje em dia era encarada. Talvez
o melhor fosse ela mesma seguir a moda, a onda: não fazia sentido
lutar contra a maré, era pura perda de tempo. E o que ambicionava
ela afinal? Reconhecimento público? Não. O que ela pretendia era
reabilitar a sua imagem. E sobretudo que não a temessem. Se ela
era apenas uma passagem... Igualmente queria deixar de ser solitária,
queria ter amigos, uma vida social, que o telefone tocasse e fosse
mensageiro de boas notícias em vez das sistemáticas recusas aos
convites para os raros saraus que organizava. Como conseguir tudo
isso? Começara por alterar o seu visual, trocando as sempiternas
vestes negras por jeans e camisas de marca. O próprio cabelo, longo
e negro, sofrera mudanças: um corte radical e uma oxigenação a preceito.
Mas isto não mudara em nada a atitude dos demais. Que havia então
de fazer?
Para começar, que fazer esta noite?
Não lhe apetecia nada encomendar uma pizza e ficar colada ao televisor
a ouvir o que sabia de antemão: um terramoto no Japão, um acidente
aéreo na Coreia, a captura de um barão da droga na Colômbia... a
única novidade no noticiário seria a miraculosa ausência de mortos,
vá-se lá saber porquê... (Caro pagaria a folga, amanhã havia que
picar o ponto bem cedo e lá se ia o sono de beleza) Regressando
ao essencial: que fazer hoje?
Em casa é que ela não queria ficar:
tinha o cabelo arranjado, as unhas pintadas, um vestido novo. Não
tinha idade nem aparência para ficar práli sentada que nem menopáusica
deprimida. Deitou a mão ao telefone com ar decidido. Era altura
de usar a velha máxima: "Don't take no for an answer".
-Está? Princípio?...Tens algum programa
para esta noite? Não? Então, olha...
Pronto. Esta noite já estava programada.
Poderia ser o início de uma bela amizade... Não diziam que os opostos
se atraem? Eh, eh, eh... E passemos a coisas sérias: como fazer
então para ser aceite? Devia haver alguma solução...
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Bateu na testa: era isso mesmo! Do
que ela precisava era de um assessor de imagem!
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