V. O ACAMPAMENTO
  Nem preciso dizer que um acampamento que contasse com Gilson seria um programa imperdível. Entretanto, é mesmo um grande exercício de memória o recordar aqueles dias distantes, com os detalhes que sempre relembramos com, digamos, saudade? Claro, não há como guardar mágoas, pois até o que deu errado foi muito legal (de ser lembrado)...

PARTE UM - PREPARANDO TUDO
   A logística dum acampamento é algo muito simples: tendo as barracas, o resto a gente ajeita. Assim, compramos latas de sardinha, pó de café, comida pra sustentar três magros e Gilson (viu, não lhe chamei de
gordo). Ignoro quem foram os corajosos donos das duas barracas que nos foram emprestadas... mas sei com certeza que eu, Tibério, Nelsinho e Gilson nos preparamos para passar os feriados da semana santa no mato, na roça de Seu Antonio Alemão, lá pras bandas de Pajeú dos Ventos, distrito de nossa querida Caetité.

   Nelsinho, por nós outros tido como
calculista (o pessoal dizia sistemático, seja lá o que isso queira dizer), era sem dúvida o que tinha maior preocupação em não deixar faltar nada. Já o Bolivar, por nós rotulado como distraído (quando na verdade queria dizer relaxado), era o menos preocupado - afinal, foi o pai dele, Seu Gilson, quem descolara o local com o velho campônio, era o pai dele quem nos levaria de carro até lá e, finalmente, era o pai dele quem iria nos buscar. Parecia o dono da bola - e agia como tal, não escondia.

   Uma decisão importante foi tomada: cada um levaria sua panela. Até hoje me é difícil entender a razão disto, afinal ninguém iria adivinhar antes o que acabamos fazendo com elas.
  
   Juntamos tanta tralha que encheu o carro do nosso alegre condutor.

PARTE DOIS - INDO E CHEGANDO
   Trafegamos pela estrada asfaltada até o Pirajá (aquilo era mesmo asfalto?), onde entramos pela estrada de terra até chegar ao local pré-definido. Seu Gilson, D. Áurea, nós 4 e acho que mais uma das irmãs de nosso amigo espremíamo-nos até a Variant (era isso mesmo?) finalmene parar. A mãe ali presente enchia o filhote de recomendações, algo sempre vexatório para adolescentes, em especial nosso sempre auto-suficiente Bolivar... mas o consolávamos: mãe é assim mesmo...

   Acertados os detalhes com o dono do sítio, assegurado o fornecimento de leite para o
bezerrão (não conto quem era para preservar sua identidade, Bolivar), e os demais, entramos por um pasto e, depois deste, para a margem de um riacho corrente, junto a um conjunto de pedras. Escolhemos o local numa clareira, e ali armamos as barracas - no bom sentido, é claro. Iríamos ficar ali três dias, retornando no sábado de aleluia, pela manhã, tudo já acertado com nosso carona, que viria pegar-nos.

   Uma maravilha! Catamos esterco bovino seco, que espalhamos em torno do acampamento, para queimar durante a noite e afastar os insetos - é o melhor repelente que existe, se a pessoa não se repelir.

   A divisão dos moradores das barracas foi feita obedecendo aos critérios de lógica, bom-senso, e qualidades outras que nós tínhamos de sobra: eu e Gilson, muito amigos, Nelso e Tiba, idem, fomos separados uns dos outros, de sorte que fiquei com o Nelson, autor da idéia - e Boli com Tiba foram para a outra. Nelsinho, sempre ele, ficou com a barraca maior, a que guardava os mantimentos, sob o convincente argumento de que deveriam ficar afastados de Gilson...

   Eh, bem, fiquei portanto na barraca maior, do lado esquerdo de quem vem do rio (e no direito, na foto). À nossa destra os dois companheiros, distantes cerca de um metro e meio.
As barracas, Tiba, eu e Nelson, o garoto do leite de Gilson, e ao fundo o Riacho.
PARTE TRÊS - NELSINHO LAVA OS PÉS
   Deve ser costume do pessoal da Feira-Velha, ou então um velho hábito esquisito... desculpe-me, mas foi o que pareceu. Entrei para dormir, deitando-me no canto que me competia. Tibério e Gilson prosavam, de forma ininteligível bem ao meu lado. Nelsinho então sai, vai com a sua panela até o ribeirão, enche-a de água. Na porta da barraca molha os pés, e vem deitar-se. Mas eu ainda não dormia, como ele imaginava. Lá pras tantas os caras na outra barraca dão uma gargalhada - desafio alguém a ficar fingindo dormir ouvindo Bolivar rir: eu, pelo ao menos, não consegui.

   Irritado com o fato de estar ainda desperto, Nelson sai da barraca, roda um pouco lá fora, vai de novo ao rio, enche a panela de água, lava os pés, novamente acreditando que eu estava no quinto sono. Justo quando ele se deitava, após cumprir o estranho ritual, Gilson solta uma risada de lá, eu explodi com outra em resposta de cá.

   Foi demais para nosso amigo "lava-pés", que saiu xingando, morto de sono e tendo de repetir seu rito pela terceira vez...

PARTE QUATRO - PARA QUE SERVEM AS PANELAS
   Não sei de quem foi a idéia, mas cada um levara sua própria panela. Após o almoço, quando as lavávamos no rio, começou a corrida mais estranha que se teve notícia na história: o
Grand Prix das Panelas...

   O regulamento era muito simples: a gente soltava a panela antes da última queda d'água que havia junto ao acampamento, que era de alguns centímetros. Ela descia boiando e ganhava aquele cuja panela chegasse primeiro num determinado ponto, mais adiante. A gente acompanhava, das margens, torcendo pelos nossos objetos, como quem está em pleno jóquei clube.

   Eu e Nelson éramos os favoritos, Gilson também ganhou algumas. Tibério? Esse, coitado, levou uma frigideira, que afundava toda vez que descia a pequena cachoeira...

   Brincamos a valer até o dia em que perdi o equilíbrio ao soltar a panela e caí sobre os galhos cortados duma planta chamada
unha-de-gato (pelo nome dá pra ver que a danada tem espinhos com forma e ponta bem interessantes). Apenas o Tiba estava na minha margem. Sem querer me mexer pra não me estrepar inda mais, gritei por socorro, mas o amigo estava finalmente ganhando com a sua frigideira que, milagrosamente, não afundara como sempre fazia. Gritava mais, sem sucesso. Finalmente a panela dele foi a pique e ele enconstou próximo a onde eu estava me alfinetando, para voltar a soltá-la.

   Vendo que ele não me atenderia, mesmo espetado, a raiva subiu à cabeça: puxei-o, com força, dizendo: "SOCORRO, PORRA!" Estava tão irado que esqueci os espinhos, e começamos uma briga feia sobre os ramos perfurantes, até sermos separados pelos demais. Os partidos se formaram, mas a reconciliação era um imperativo.

   Taí a resposta: panelas e rapazes servem pra isso: causar brigas.

PARTE CINCO - AS MENINAS DO RIO
   A última coisa que imaginaríamos fosse acontecer naquele fim de mundo fosse flagrar meninas tomando banho no rio, peladas. Pois aconteceu.

   Gilson exibia-se no alto duma pedra quando de repente escutamo-lo falar com alguém, que estava distante. Tibério conseguiu, com seu ouvido de lebre, desvendar o interlocutor, e veio onde estávamos, gritando: "É mulher! É mulher!"

   Bolivar desceu de seu mirante, e fizemos uma rápida reunião para decidir o que fazer. Deduzimos que as garotas certamente iriam para um ponto mais distante se banhar, e deliberamos, claro, ir espiar, escondidos...

   Curiosamente, Gilson foi contra. Mas nos seguiu, sempre mais atrás.

   Sorrateira, mas rapidamente, tomamos o caminho supostamente seguido pelas meninas. Gilson atrás. Ao nos aproximarmos do local almejado, o primeiro sinalizou para o que vinha depois até o último - ele mesmo. Tínhamos de transpor um pequeno lamaçal com cuidado para não sermos notados, e ir nos ocultar detrás duma moitas que sempre crescem ao lado dos lugares onde garotas banham-se desnudas. Tudo acertado, se...  

   ...Se Gilson não "tropeçasse" ao saltar o lameiro e caísse estrondosamente, espantando até as vacas que pastejavam a meia légua dali...

   As meninas ainda demoraram um pouco até desvendar o que teria provocado tão estranho ruído. Ao ver arruinado nossos planos, Tibério ainda segurou-lhes as roupas, enquanto a água barrenta e escura ocultava de nosso olhos ávidos os corpos que subermigiam... O impasse foi rapidamente resolvido: voltamos com as mãos e olhos abanando. Eram quatro moças, e nós quatro rapazes! No meio do mato, com um rio daqueles dando sopa...

   Uma vez em
casa, pressionamos o causador de nosso fracasso e ele confessou: era amigo das garotas, e não iria deixar-nos fazer mal a elas. Sua queda fora proposital, e as intenções as mais pudicas possíveis. Logo Gilson, meu Deus! Esse mundo estava perdido! O clima no acampamento começou a ficar pesado. Passamos a desconfiar que Gilson nào estava muito certo...

PARTE SEIS - TOMANDO CAFÉ
   É costume tomarmos um delicioso cafezinho pela manhã e, para tanto, além do leite encomendado por D. Áurea, mister coássemos o pó negro que leváramos com sobra. Estava tudo pronto: o fogão foi feito juntando algumas pedras grandes, e ficara muito bom. Esquentada a água, Nelsinho perguntou pelo coador. Ninguém se lembrara desse detalhe: o café não podia ser coado! Foi dando uma abstinência, principalmente em mim e no Boli, ambos fumantes.

   Alguém então lembrou-se do mito, de uso corrente em nosso meio como a verdade mais cristalina, de que bastava colocar o pó n'água e, ao ferver, jogar uma brasa ou carvão dentro: o pó imediatamente assentaria, e era só beber o mais puro café do mundo. Jogamos, assim, quase toda a fogueira, e nada de o pó assentar.

   Após várias tentativas, em que a bebida continuava intragável, desistimos. Íamos mesmo ter de passar sem café. Aí me lembrei que levara um par de meias semi-novo. Estava lavadinho, limpinho, cheirosinho e outros "inhos" mais. Ninguém quis se aventurar. Coei um pouco e ofereci, mas ninguém se arriscou a beber e até eu fiquei sem coragem. Mas Tibério, salvador, encontrou a solução: iria
ele mesmo, lavar a meia.

   Graças a esta operação finalmente tivemos um coador, e eu um par de meias a menos.

PARTE SETE - EXPLORANDO OS ARREDORES
   Embora divididos de forma diversa entre as barracas, andávamos nas duplas de sempre. Assim, quando saímos para conhecer as vizinhanças (leia-se: o mato em volta), fomos eu e o Boli. Este, pra variar, paramentado a rigor, verdadeiro Indiana Jones da caatinga, com um grande facão à cintura. Seguindo num carreiro em meio da mata, ia eu à sua frente quando, com voz assustada, ele me gritou:
_ André, não se mexa!

   Assustado, quedei imóvel e, lentamente, me virei para ver o que era, deparando-me com o amigo vindo com o facão sobre minha cabeça. Se antes eu imaginara um perigo da selva, agora, num átimo de segundo, descobri que seria assassinado no meio do mato, numa tocaia armada pelo meu amigo que, conforme confabulávamos secretamente, vinha tendo uma conduta meio estranha.

   O facão desceu sobre mim, atingindo um galho que estava pouco acima de minha cabeça. Vi, em meio ao susto do golpe, dois pedaços duma lacraia gigantesca caindo ao meu lado. Sorrindo, Gilson gabou-se:
_Salvei sua vida!

   Nelsinho estava certo: Gilson pirara. Me fez parar em baixo dum animal peçonhento e ainda dizia ter-me salvo! A turma precisava se reunir, urgente. Mas era difícil conseguir isto, longe do amigo que apresentava um surto de sei-lá-o-que...

   Coisas estranhas aconteciam no acampamento, e Gilson era o sempre o suspeito, mesmo que depois descobríssemos ser inocente, como no que adiante será narrado. Mas como confiar em alguém que contratara um menino da roça -o mesmo que trazia o leite de manhã cedo - pra fazer os serviços de limpeza que lhe competiam? Isso era imperdoável: Gilson levara dinheiro, e ninguém mais podia fazer o mesmo. Era uma traição! Gilson não era um igual! O clima do acampamento estava mesmo pesado, e não era pouco...

PARTE OITO - O ROUBO DO PEIXE.
   Como já dissemos, o acampamento se deu durante uma semana-santa. Preparados para a sexta-feira, onde não se come carne, levamos peixe salgado. Não podíamos deixá-lo dentro das barracas, pelo óbvio motivo do cheiro insuportável. Então amarraram um barbante entre uma barraca e outra, onde foram dependuradas as postas secas de peixe. A altura era razoável, protegida do eventual cachorro que rondava nossa clareira.

   A despeito das precauções, os peixes foram sumindo, aos poucos! Até que, um belo dia, eles não estavam mais lá!

   O mistério foi esclarecido, longe do suspeito óbvio: só podia ter sido o Gilson. Ele era o mais gordinho, e não nos esquecíamos da queda fingida que espantara as garotas, o caso da lacraia e sei lá mais o que. Sua conduta era mesmo muito estranha, e ele deve ter notada nossa muda e cruel acusação.
  
Antes que uma revolta explodisse, algo inesperado aconteceu, e fez com que nosso querido Bolivar mudasse completamente o seu astral: justo na sexta-feira, quando não sabíamos o que comer, os pais dele apareceram numa visita surpresa: D. Áurea raciocinara que não sabíamos cozinhar peixe, e convencera o esposo de que tinham de ir dar uma mãozinha aos "meninos". A falta de peixe foi resolvida com carne mesmo: nenhum de nós andava muito catolico mesmo...

   Gilson estava numa alegria indescritível.  Bolivar sorria, contente: era o retrato da própria felicidade. A mim me pareceu um exagero aquela visita, pois teriam de voltar no dia imediato para nos buscar. Ao menos era o que todos acreditávamos, ao menos fora o combinado, como aliás também foi dito no começo deste episódio...

   Mas o Bolivar tinha aprontado outra. Tava doido mesmo...!!

PARTE NOVE - A VOLTA IMPOSSÍVEL
   O sábado de aleluia amanheceu bonito. Os pássaros gorjeavam felizes, a natureza e o ar puro nos enchiam de alegria: finalmente retornaríamos aos nossos lares. Logo estaria na minha casinha, no meu sótão. O Nelson poderia lavar seu pés antes de dormir, sem minha presença para testemunhar seu ritual; Tibério iria curtir seus quarenta irmãos; e Gilson, bom... este iria...

   ...Gilson NÃO iria. Gostara tanto, mas tanto, de estar ali que, num arroubo de amor bucólico, de paixão pela natureza, disse aos pais que viessem nos buscar apenas no domingo. Com tudo arrumado para a volta, a revelação caiu como uma bomba. E agora?! Armar tudo de novo, de novo catar bosta de boi no pasto, de novo beber café coado em meia?!!!

   De nada adiantou a confissão de Tibério, ou a descoberta, não sei mais, de que foi ele quem comera nosso peixe cru, e não o Gilson, ou o cachorro ou uma furtiva coruja.

   A revolta foi geral. Autor de mais uma maluquice, nosso amigo maior (não chamei de gordo) voltou a ficar tristonho. Não, não podíamos ficar mais nem um segundo ali. Deliberamos esperar: quem sabe Seu Gilson não cumpria o que pactuáramos antes, mesmo depois do apelo filial?

   Os minutos passavam. Foram como horas. Naquele ermo, a todo instante imaginávamos escutar o mavioso ruído do motor de um carro. Mas nada, e o tempo passando...

   A dura decisão foi tomada, finalmente: iríamos a pé!

   Colchonetes, panelas, mochilas, barracas, tudo foi distribuído e pendurado nas costas, braços, pernas e até na cabeça. Parecíamos um bando de retirantes fugindo da seca. De flagelados, de refugiados de guerra, que tentam salvar os poucos pertences e vagueiam a esmo pelas estradas do mundo. Era muito engraçado, como podem ver...
Eu, Tiba com seu orgulho (o rádio de pilha) e o desolado Gilson Bolivar:
  Logo esquecemos todas as rusgas, irmanados por este sentimento que une os sem destino viandantes. Em poucos quilômetros sairíamos da estrada do Paraguai, de Antonio Alemão, chegaríamos à estrada de Pajeú. Dali a mais umas leguazinhas até a rodovia onde, era bem possível, parasse um carro capaz de nos conduzir até a distante Caetité.

   Cantamos, brincamos, caminhamos, ficamos cansados, depois mortos de cansados, depois... bom, foi rápido: mal pisamos na pista de terra da estrada distrital e uma caçamba da prefeitura, com Seu Quito, saudoso arquiteto do município, apareceu e gritamos feito loucos para que parasse. Abreviamos nosso martírio, subindo na carroceria. Exaustos, mas felizes: terminara tudo bem.

   Assim foi o nosso acampamento de semana-santa, dia 21 de abril de 1984. Meu primeiro e último.
André Koehne - Aprontando em Caetité - Memórias Adolescentes - Academia Caetiteense de Letras - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor.
Hosted by www.Geocities.ws

1