A ANIMAÇÃO SÓCIO-CULTURAL, E O ENQUADRAMENTO ASSOCIATIVO

 

No século XIX, as associações são uma outra expressão do movimento operário, que releva também de identidades culturais específicas. A lógica da sua constituição decorre de fenómenos de migrações internas e de integração nos meios (urbanos) de fixação, sendo esta uma lógica de agregação face à segregação. A tipificação das associações é significativa: por um lado, as associações desportivas teriam determinações essenciais em factores locais e interclassistas; por outro lado, as associações locais e recreativas relevariam essencialmente de factores mais vincadamente classistas.

O Estado Novo, enquanto caracterizado por um acentuado centralismo e autoritarismo, exerce uma repressão generalizada nas reivindicações e tende a reduzir os espaços sociais de autonomia e de emancipação. Os Grémios e as Corporações, por exemplo, acabaram por servir sobretudo para o Estado controlar o poder reivindicativo dos trabalhadores e refrear eventuais conflitos sociais.

Com o 25 de Abril, novos espaços se vislumbram: «Após o 25 de Abril de 1974 surgiram em Portugal algumas mobilizações de carácter reivindicativo em meios urbanos. As populações de bairros degradados ou de zonas privadas de serviços sociais de apoio promoveram, em muitos casos, uma luta em prol da satisfação de necessidades fundamentais. (...) Trata-se, nomeadamente, das acções das associações de moradores, de verdadeiras lutas sociais, com um elevado grau de mobilização, associadas directamente ao período revolucionário e à efervescência social então vivida. À medida que a democracia se foi institucionalizando e consolidando, tenderam a desaparecer ou a reorientar a sua actividade, transformando-se em meras associações» (12).

 

A animação sócio-cultural, entendida no sentido mais lato, enquanto metodologia participativa de estruturação de uma comunidade territorial forte e criativa, com um relacionamento fácil e estreito dos grupos e do poder (Toni Puig Picart) dificilmente prescindirá das associações e das colectividades locais; pelo contrário, essas associações serão mesmo um dos agentes mais importantes na prossecução dos objectivos de integração social, de participação, de vivência democrática local e de um "agir comunicacional" (Jürgen Habermas). Assim, edificando espaços públicos convivenciais e de debate, a animação sociocultural teoricamente estrutura da encontrará, pelo seu modus faciendi, nas associações um decisivo agente de formação para o desenvolvimento. É, pois, nesta perspectiva que se afirma a pertinência teórica do relacionamento entre as associações, o poder local e o desenvolvimento, cujas intersecções as modernas teorias do desenvolvimento reafirmam (13).

 

Recentemente, Richard Balme vem defendendo a ideia de que a nova dinâmica associativa se manifesta não tanto nas camadas operárias, mas em grupos e meios sociais de maiores rendimentos e mais elevados níveis de instrução, como forma de construção de novas formas de identidade e solidariedades (14). De uma ou outra forma, as associações poderão ser um importante vector de experiência e desenvolvimento cultural, aspectos aos quais a família nem sempre tem capacidade para responder, compensando esses e outros elementos, como, na esteira de Pierre Bourdieu, a própria função selectiva e reprodutora da instituição escolar (15). Num entendimento "criativo" da cultura centra-se a necessidade de dinamização de uma rede civil de iniciativas, com base nos grupos, nas associações. Aliás, isto é tanto mais relevante quanto mais possa desempenhar a "função ortopédica " (P. Besnard) do associativismo, já que tem potencialidades de complementar as carências culturais e participativas dos indivíduos. Assim, o associativismo é correctamente entendido como um agente fundamental de formação e de participação para o "desenvolvimento social". As associações são aqui entendidas como a base do tecido social, propiciando mais fortemente a relação entre as pessoas e funcionando em moldes de co-gestão.

 

A intensidade da vida associativa local reflecte-se no adensamento das redes de relações sociais espontâneas, numa participação efectiva, propiciando multicentralidades de debate político e social. Na verdade, entendemos que só se pode falar de cultura quando há uma rede civil e empreendedora, apostando mais na cultura da cidade do que na cultura do espectáculo. Aliás, a formação e aprofundamento das identidades (entendidas segundo um carácter relacional) passa por esta mesma rede civil.

A democratização cultural deverá passar pela afirmação das identidades num espaço social aberto, permitindo a participação de todos e estabelecendo a comunicação entre as micro-culturas existentes. Por outro lado, as associações corporizam, em princípio, uma política de actuação que, podendo ser autónoma, não é forçosamente contra uma autarquia. Ela pode ser tanto um parceiro da autarquia na elaboração de políticas de âmbito local, como pode mesmo ser o substituto da autarquia na prossecução desses objectivos, nomeadamente no que diz respeito à cultura. A autarquia pode igualmente efectuar uma política de negação da política, distribuindo subsídios aos pedidos conforme a sua ordem de chegada, sem critérios de prioridades, sem política cultural nem um conjunto de iniciativas estrategicamente elaboradas. O papel do associativismo na vida local deve ser entendido como a estruturação de uma comunidade territorial aberta, criadora e participativa. Quando às pessoas e aos grupos forem devolvidas: as suas responsabilidades, que o Estado-Providência pretendeu assumir sem sucesso, poderá operar-se o desenvolvimento social, pela afirmação de identidades e de uma cidadania local. É nesta medida que «o movimento associativo tem um papel específico na regulação social, responde a funções sociais particulares, ocupa um lugar original no sistema político-social» (16). O associativismo, para além de um reforço da cidadania, concorre para a salvaguarda dos poderes sociais, esgrimindo-os com maior ou menor acinte consoante a sua possibilidade/vontade/capacidade de reivindicação junto dos poderes públicos. As associações de carácter local são, pois, um elemento fundamental de incremento da participação cívica e, como tal, um agente privilegiado de democratização (no sentido da democracia participativa ). Assumem-se, nesta medida, como um importante agente de formação e de participação vara o desenvolvimento social dos cidadãos e das comunidades locais. Nas palavras de José Manuel Henriques, «...a identidade cultural de base territorial local constitui um poderoso elemento de agregação comunitária e de facilitação do envolvimento em torno de projectos colectivos...» (17). Apesar disso, «a multiplicação das associações não traduz, no entanto, necessariamente, o crescimento da participação na sua organização e no seu funcionamento. Dá-se, por vezes, somente o alargamento de um mercado de serviços com uma participação passiva. Cria-se, nesta situação, uma acentuada pessoalização do poder com a consequente formação de dependências, e a um ganho de posições de influências nas redes de relações sociais corresponde a aquisição de uma notoriedade pública. Aqueles que, nas diversas associações, obtêm tal notoriedade constituem uma elite local, que actua no campo da concorrência de influências» (18). O associativismo pode assim, igualmente, contribuir para o reforço das lideranças locais: quem não falava, provavelmente continuará sem o fazer.

 

Principais eixos de intervenção

 

Uma intervenção sócio-cultural (em termos de política associativa) deverá partir sempre da consideração da autonomia do sujeito participativo no mundo em que vive, aspecto diverso da massificação e muito mais próximo de uma pedagogia de compreensão e de intervenção, funcionando como uma escola paralela e complementar que cuide da redução das assimetrias (culturais) e da intervenção nos essenciais domínios da exclusão social. Conjugando iniciativas conjuntas privadas e públicas, a animação sócio-cultural terá como funções essenciais a adaptação e a integração, a disponibilização de uma vertente recreativa, de uma vertente educativa, enfim, de uma vertente que conjugue e possibilite a participação criativa e a resposta a carências culturais, sobretudo dos mais jovens. Tendo o município de Vila Nova de Gaia um importante tecido social associativo e dinâmicas bastante importantes a esse nível, não será caracterizado por um efectivo "movimento associativo", entendida enquanto acção conjunta, estruturada e estruturante das associações locais, com o fim de prossecução de objectivos comuns. Nesta medida, uma das funções essenciais do animador será a defesa de uma estrutura reticular entre as associações, ou seja, capaz de colocar em rede as diferentes associações locais e as suas actividades. A importância da animação sócio-cultural é correlativa, por sua vez, do alargamento dos tempos livres nas sociedades ocidentais. As associações assumem-se, nesta medida, como fundamentais charneiras das identidades, entendidas por um carácter relacional, por um movimento de identificação e de identização. O aparecimento das modernas correntes da animação sociocultural resulta destas lacunas ao nível do funcionamento participado das comunidades locais. Definida enquanto metodologia de actuação, a animação sociocultural baseia-se na articulação de três conceitos fundamentais: -democracia participativa: em termos  formais, a estrutura organizacional do poder local não globaliza todo o tipo de grupos; como tal, é seu dever deixar um espaço para a sociedade civil (J. Mozzicafreddo). Esta participação pressupõe autonomia; sem autonomia não pode haver efectiva participação. A democracia participativa implica, necessariamente, um "sujeito autónomo participativo" (P. Besnard); -igualdade social no acesso aos meios e forrmas de participação; - solidariedade institucional e social, entendida enquanto vector impulsionador do potencial de alargamento das esferas de actuação e dos meios fundamentais para essa actuação. Nesta linha, será de remeter a importância das dinâmicas associativas para a possibilidade de um trabalho reticular, ou seja, um trabalho que consiga, através de incentivos dados por uma política cultural com objectivos delineados e articulados, sublinhar as virtualidades da parceria associativa nas actividades desenvolvidas. Por seu lado, a actuação autárquica deverá englobar uma conjugação de políticas de orientação para a animação e a dinamização sócio-cultural, mas igualmente para uma estratégia coerente de infraestruturas para enquadrar as iniciativas e as actividades desenvolvidas. As infraestruturas têm uma fundamental importância para as associações locais, não só pela possibilidade de enquadrar formas de angariação de fundos, mas também pelas potencialidades que oferecem na dinamização dos associados e das actividades desenvolvidas. Em termos sistemáticos, o associativismo assume um papel fundamental nas actuais teorias do desenvolvimento (endógeno), considerado em três vertentes distintas de enquadramento: por um lado, a vertente do desenvolvimento local, entendido pela premência da resolução participada dos problemas locais, num espaço de interacções e de construção de identidades e de vivências específicas; por 9utro lado, a vertente da criação de contrapoderes e de policentralidades do debate político e social, pela ocupação das zonas periféricas do poder e por uma dialéctica de interiorização e de prática democráticas ao nível local; finalmente, a vertente da exclusão social e das marginalidades, não só no que respeita aos jovens, mas também naquilo que concerne à terceira idade e às prementes questões do emprego social. Enfim, a consideração da importância e da actualidade do associativismo como instrumento de participação, de autonomização e de criação é a premissa básica para a percepção do seu potencial contributo decisivo para o bem-estar, a manutenção das identidades locais e o reforço democrático das actuais sociedades.

 

 

 

 

 

________________________________________________________________

Notas

 

(1) Estatísticas Demográficas, INE, 1984; Censos 91 -Resultados definitivos, INE, 1993; Anuário Estatístico da Região Norte, INE, 1993.

(2) FERNANDES, A. Teixeira, - Sistema político e sociedade global em Poortugal. Conexões e conflitos, in separata "Arquipélago", Revista da Universidade dos Açores, Série de Ciências Sociais, n.º 5, 1990.

(3) VIEGAS,J. Manuel, - Associativismo e dinâmica cultural, in "Sociologia, problemas e práticas", n.º 1, Lisboa, Pub. Europa-América, 1982, p. 109.

(4) PICART, Tony Puig, et al., Animación sociocultural, Cultura y Território, Madrid, Ed. Popular. 1990.

(5) VIEGAS,J. Manuel, Op. Cit., p.118.

(6) TOCQUEVILLE, A. de, -  A Democracia na América, Lisboa, Estúdios Cor, 1972;

WEBBER,Max, - O político e o cientista, Lisboa, Ed. Presença, 1973;

 MILLIBAND,Ralph, - O Estado na sociedade capitalista, Lisboa. Ed. Presenca. 1977;

ALTHUSSER,Louis, -  Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado, Lisboa, Ed. Presença, 1974;

COT, J. P. e J. P. Mounier, - Para uma sociologia política, Lisboa, Bertrand.

(7) FERNANDES, A. Teixeira, - Poder Local e Democracia, in "Sociologia", Porto, FLUP, vol. II, 1992, p. 35.

(8)ldem, p. 58.

(9) FERNANDES, A. Teixeira, - Poder Autárquico e Poder Regional, in '"Sociologia", Porto, FLUP, vol. III, 1993, p. 41.

(10) BURDEAU, Georges, - L 'État, Paris, Seuil, 1970.

(11) FERNANDES, A. Teixeira, - Poder autárquico e poderes difusos, in "Sociologia" , vol. III, Porto, FLUP, 1993, p. 9.

(12) FERNANDES, A. Teixeira, - Conflitualidade e movimentos sociais. in "Análise Social", n.º 123-124, Lisboa, ICS, 1993, pp. 807-808.

(13) RODRIGUES, A. Jacinta, - Urbanismo e Revolução, Porto, Afrontamentto, 1975;

LOPES,A. Simões, - Desenvolvimento: desenvolvimento regional, Coimbra, Faculdade de Direito, 1978;

FURTADO,Celso, - Teoria e política do desenvolvimento económico, Lisboa, Dom Quixote, 1971;

BRUGGER, E. A., - Endogenous development: a concept between utopia and realitv, in Michel

 

GRÉMION, Pierre, - Le Pouvoir Périphérique, Paris, Éditions du Seuil,

HENRIQUES, José M.,-  Municípios e Desenvolvimento, Lisboa, Escher, 1990

LIMBOS, Édouard, Animação sociocultural: prática e instrumentos, Lisboa, Horizonte, 1976.

MEISTER, Albert, La Participation dans les Associations, Paris, Ed. Economie et Humanisme. 1974.

MOZZICAFREDDO, Juan, Gestão e Legitimidade no Sistema Político Local, Lisboa. Escher. 1991

PICART, Tony Puig, et al., - Animación sociocultural, Cultura y Território, Madrid, Editorial Popular, 1990. Vários, Autarquias Locais e Desenvolvimento Porto. Ed. Afrontamento, 1993.

 

8.2. Artigos

ESTEVES, Maria José, - As Associações no processo de transformação social na sociedade moderna, in Actas do I Congresso Português de Sociologia, vol II, Lisboa, APS, 1989.

FERNANDES, António Teixeira, - Sistema Político e Sociedade Global em Portugal: Conexões e Conflitos, in Separata "Arquipélago", Revista da

Universidade dos Açores, Série de Ciências Sociais, n.º 5, Açores. 1990.

-, "A Mudança Cultural na Sociedade Moderna", in Revista da Faculdade de Letras. Filosofia. n.º 516. Porto. FLUP. 1988-1989

-, "A Crise do Estado nas Sociedades Contemporâneas", Porto, FLUP, Conferências da Faculdade de Letras, 1993.

-, "Poder Local e Democracia", in Revista da Faculdade de Letras, Sociologia, vol. II, Porto, FLUP, 1992.

-, "Descentralização e Teoria do Estado", in Revista da Faculdade de Letras Filosofia. n.º 516. Porto. FLUP. 1988-1989.

 

BASSAND, et. al., Self-reliant development in Europe, London, Gower, 1986; Neil Smelser, Sociologia da vida económica, São Paulo, livraria Pioneira, 1968; O. Godard, et. al., Le développement endogene et Ia differentiation des espaces de développement: une grille d'analyse pour le développement local, in "Nouvelles de I'ecodéveloppement", n.o 35, 1985; 0. Velho (org.), ° fenómeno urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1970; R. Ledrut, Sociologia urbana, Rio de Janeiro. Forense, 1971

 

(14) BALME,Richard, - La participation aux associations et te pouvoir municipal, in Revue Française de Sociologie, Paris, vol. XXVIII, 1987.

(15) BOURDIEU, P. , - La Distinction, Paris, Minuit, 1979; P. Bourdieu, Reproduction culturelle et reproduction sociale. Information sur les sciences sociales, Abril de 1971 reproduzido em A. Torres, Sociologia e teorias sociológicas, Lisboa, A Regra do Jogo, 1984; P. Bourdieu e J. C. Passeron, Les héritiers, les étudiants et Ia culture, Paris, Minuit, 1966.

(16) MEHL, Dominique , - Culture et action associative, Sociologie du Travail, n.º 1, 1982, cit. in Helena Vilaça, Território e identidades na problemática dos movimentos sociais, in "Sociologia", vol. III, Porto, FLUP, 1993, p. 59.

(17) HENRIQUES, José Manuel, - Municípios e Desenvolvimento, Lisboa, Escher, 1993.0. 143.

(18)FERNANDES, A. Teixeira, - Poder autárquico e poderes difusos, pp. 113-14.

 

8. Bibliografia fundamental

8.1. Livros

BESNARD, Pierre, L 'Animation Sócio-Culturelle, Paris, P.U.F., 1980

BOOTH. Charles, On the city: physical patterns and social structure: selected writings, Chicago, The University of Chicago Press, 1967

DUMAZEDIER. Joffre. Révolution Culturelle du Temps Libre: 1968-1988, Paris, Méridiens Klinscksieck, 1988.

GUERRA. Paula, "Tecido urbano actual: continuidade ou descontinuidade?", in Sociologia, Revista da Faculdade de Letras, Sociologia, vol. II, Porto, FLUP , 1992.

LUCENA, Manuel de, "Transformação do Estado Português nas suas relações com a sociedade civil", in Análise Social, n.º 72-73-74, Lisboa, ICS, 1982.

MENDES. Manuela, "Élites políticas na região do Porto", in Sociologia, problemas e práticas, n.º 14, Lisboa, Publ. Europa-América, 1993

TRINDADE, Maria Beatriz, "Do Rural ao Urbano: o Associativismo como Estratégia de Sobrevivência", in Análise Social, n.º 91, Lisboa, ICS, 198E

VIEGAS, J. Manuel, "Associativismo e Dinâmica Cultural", in Sociologia, problemas e práticas, n.º 11 Lisboa, Publ. Europa-América, 1982.

Meister, Albert (1972) - Vers une sociologie dês Associations, Paris, Editions Ouvrierés.

Capucha, Luís (1990) - Associativismo e modos de vida. Sociologia e Práticas, n.º8

NORBEK, Johan (1983) - Associações Populares para o desenvolvimento.

PUIG, Toni (1994) - La Ciudad de las Asociaciones, Editorial Popular, S.A.

MENDES, Victor e Ferreira, Gomes (1994) – Legislação das Associações, Legis Editora

 

Hosted by www.Geocities.ws

1