PROFANY
O Anjo da Morte


CONTOS DE PROFANY — Capítulo II: Uma vida
Por: Anderson Oliveira


Linda foi a festa do casamento de Profaniel e Kate. Estava lá o casal Williams e sua filha Catherine, o jovem Eduard e mais toda a sociedade Inglesa do ano de 1784. Sim, se vos lembra, este conto começa em novembro de 1783. Correram três meses antes de Profaniel e Kate unirem suas vidas. Isso se deu por ocasião o óbito do Conde Goodsmith e as aparências que a sociedade impunha. Seria mal visto que a filha não guardasse luto pelo pai.
Nestes três meses, Profaniel teve que enfrentar seus primeiros problemas como ser humano. Precisava arranjar residência e ter como se sustentar, ainda mais se queria desposar uma jovem da nobreza. Por sua sorte (e uma ajuda minha), ele encontrou bons amigos naquela paróquia onde orou e teve seu desejo de ser mortal concedido. Os freis e beatas lhe deram abrigo secretamente num quarto nos fundos da sacristia, visto que Profaniel passava seus dias constantemente dentro da igreja e, às vezes, ensinava a doutrina às pessoas com grande sabedoria e carisma.
Os freis se admiraram com a desenvoltura do jovem para falar dos assuntos de Deus com as pessoas e sempre lhe perguntavam se era algum padre, ou teólogo ou gostaria de ser, mas ele sempre dizia que sua vocação agora era se unir a bela Kate. Nos tempos livres, se encontrava com ela na sua casa, sob os olhares atentos da Condessa. Mandava os costumes da época que os namorados nunca deveriam ficar sozinhos, muito menos fora de casa. A Condessa apreciava a educação de Profaniel, o respeito com que ele tratava sua filha e sua casa. Lá também ele fazia sua evangelização, para o prazer da Condessa que era muito devota.
Marcaram a data, em fevereiro para não cair no tempo da quaresma onde não se podiam celebrar casamentos conforme os costumes. A felicidade tomava conta do casal. Certa vez se encontraram sós, pois a Condessa cochilara durante a ladainha da tarde. Era Kate uma jovem cheia das mais puras virtudes, nunca beijara alguém. Tão pouco Profaniel, pois sua vida começara a menos de dois meses. Os dois se beijaram no sofá da sala, de modo inocente e especial. No beijo a totalidade do seu amor.
Mas nem tudo foi rosas. A maior infelicidade da existência humana é a inveja. Não se pode haver duas pessoas felizes sem que haja pelo menos uma infeliz. Foi assim com o jovem Eduard. Ele nunca amou Kate, mas se sentiu trapaceado por um homem que não era melhor que ele, um estrangeiro, um intruso. Remoíam em sua mente os mais terríveis pensamentos de vingança e tramóias contra a união dos dois. Chegara a falar com seu tio para impedir as bodas, mas o justo Conde Williams pôs freios na atitude do rapaz e o mandou por um mês de volta para a casa dos pais.
Chegara à hora, dobravam os sinos naquela mesma igreja onde Profaniel passava as noites. A paróquia estava enfeitada com flores e véus de cetim e linho. As beatas providenciaram um belo fraque para Profaniel, Kate chegou numa grande carruagem... Williams a conduziu ao altar. Lá, na lei dos homens e na Lei de Deus, uniram para sempre suas vidas numa só carne.

* * *

A Condessa Goodsmith, como presente de casamento, ofereceu sua casa para o casal. Ela resolveu ir para a fazenda do irmão onde passaria o resto de seus dias. A casa lhe trazia lembranças do seu marido e isso não lhe agradava. Após a festa, onde valsaram divinamente, foi o casal morar na mansão. Saltaremos os por menores e vamos logo aos dias seguintes, quando Madalene visita a irmã:
— Conte-me Kate, como está sendo seu casamento?
— Minha irmã... eu nunca fui tão feliz!
— Todos acharam estranho seu casamento. Pois Profaniel não é da coorte e muito pouco ficou entre nós antes de casar contigo.
— Pouco me importa o que digam... só me interessa minha felicidade! — Dizia Kate com os olhos cintilantes. Madalene estava preocupada com a irmã, mas ficava feliz em vê-la tão bem. Profaniel entra na sala neste instante. Vestido com alguns trajes que ganhou dos párocos em retribuição pela ajuda que dava diariamente na igreja. Estava cansando, pois trabalhava duro.
— Bons dias, minha cunhada. — Saudou com um olhar sereno.
— Bons dias, Profaniel... Parece-me que andou trabalhando muito...
— Sim, hoje ajudei a erguer a parede sul que desabou na última chuva... agora não cairá mais.
— Nossa família é dona de muitas posses, não há motivos para trabalhar, pode viver do dinheiro...
— Não trabalho por dinheiro... Não ganho nada pra ajudar na igreja.
— Profaniel é voluntário! Tem muitos amigos na paróquia... aos sábados ele ensina às crianças. — Atalha Kate.
— Isso é... Magnífico! — Exclama Madalene. Até então, julgava Profaniel como um aproveitador e tinha seus receios. Mas ao vê-lo desapegado ao dinheiro e disposto a trabalhar, percebeu que ele amara realmente sua irmã e não o seu nome.
A mesma impressão teve Williams, que passou a visitar constantemente Profaniel a fim de tornar-se seu amigo. Numa dessas ocasiões saíram os dois, acompanhados de outros cavalheiros, para assistir um torneio, em comemoração a uma data importante de que não iremos remontar por não haver necessidade. Era um torneio como antigamente, onde dois cavaleiros competiam na Justa, um duelo que consiste em um derrubar o outro do cavalo. Aquilo animava a turba mais pobre, principalmente as crianças. Os nobres se continham em aplaudir de seus camarotes. Williams explicava as regras a Profaniel que tentava acompanhar as festividades.
Outra modalidade, especialmente incluída naquele ano, era o tiro com mosquetes. Cada participante deveria acertar o alvo. Williams participou. Atirava brilhantemente e só não faturou o primeiro prêmio porque se deixou vencer pelo filho do Duque de Condon, com quem tinha importantes alianças. Profaniel observava enquanto eles manuseavam as armas, como carregavam a pólvora, como empunhavam e atiravam. Sentia ali uma forte atração pela arte, mas lhe remoia por dentro uma angústia que não sabia de onde vinha. Em outras ocasiões, na fazenda de Williams, chegou a pedir para tentar atirar. Williams lhe entregou um mosquete:
— Tente rapaz! Já está carregado... acerte aquele bezerro.
— O quê?! Um animal... não...
— O que há jovem? Depois iremos assá-lo. — Williams o incentivava a atirar no pobre bezerro, mas Profaniel vacilava.
— Eu... não posso... — Abaixa a arma e vira as costas.
— Pelas barbas do profeta! Você tem andando muito com os padres daquela igreja, meu rapaz! Que espécie de homem és se não tem coragem de matar um bezerro?! — Virando-se, Profaniel o olhou com firmeza e empunhou a arma... — Hmm... estamos progredindo... — Ele atira, mas não no bezerro e sim num balde que estava em cima da cerca, deixando Williams calado, pois atirara mui bem.

* * *

Assim eram os dias de Profaniel, o homem. Durante a semana trabalhava voluntariamente na igreja e nas folgas saía com Kate para festas e encontros dos familiares. Ainda nutria ele forte carinho pela pequena Catherine, quem um dia fora sua protegida. Vira a criança crescer e isso lhe alimentava o desejo de ter um filho. Desejo dele e de Kate.
Saltaremos alguns anos. Vamos para 1792. Só interessa saber que nesse intervalo Profaniel e Kate se amaram, mesmo com a tristeza de não gerarem um filho. Houve também o falecimento da Condessa Goodsmith, uma morte serena e em paz, ela ganhou sepultura ao lado do esposo. Eduard, na faculdade, conheceu uma jovem e se casou e nunca mais foi visto em Londres, há quem diga que foi para Escócia onde exerce a profissão. Os Williams viviam em paz, cada vez mais ricos. Agora havia um fato que iluminaria ainda mais a vida de Kate e Profaniel, era o fim das tristezas... Kate estava grávida.
Não havia sobre a face da Terra casal mais contente. Corriam os dias e Profaniel preparava tudo para o nascimento de seu herdeiro, até começava a se aproximar dos negócios da família e a negociar no mercado. Kate era a gestante mais linda de que já se ouviu falar. O brilho dos seus olhos trazia esperança a quem a via. Madalene resolveu passar uns dias com a irmã nas proximidades do parto. Não faltava mais do que algumas semanas.

* * *

Chegou o dia. Tal visão nos remetia ao início deste conto: noite chuvosa, correria de criadas, um pai preocupado, uma mãe gritando e sofrendo na cama. Kate padecia de fortes dores. Seus gritos traziam frio à espinha de Profaniel que na noite passada foi atormentado com um estranho pesadelo. Viria um bebê deforme coberto de sangue, ser entregue a ele, logo em seguida lhe era arrancado e jogado numa fornalha e ouvia os choros de Kate. Sabia ele que sonhos são mensagens, avisos dos anjos. Isso o deixava muitíssimo nervoso.
Kate gritava, mas não perdia o brilho dos olhos. Madalene lhe segurava a mão e fazia compressas. A parteira a olhava com jeito de preocupação. Corria horas a fio sem a criança apontar. Já varava a madrugada. Enfim o sofrimento de Kate cessou, a criança nascera. Não se ouviu choro, e sim um profundo silêncio, até o céu calou-se de trovões. Um aperto no coração foi o sinal que Profaniel esperava para invadir o quarto.
Estava lá sua amada desacordada. Madalene lhe olhava com pena e tristeza. As criadas cochichavam entre si. Sentada aos pés da cama, a parteira segurava a criança envolta num lençol. Profaniel não sabia o que ver primeiro, se sua mulher, se seu filho. Parou diante da porta como se algo o brecasse. Nesse instante as velas dos candelabros se apagaram para o espanto das criadas que logo se benziam com o sinal da cruz. A parteira calma e serena levantou-se e foi ter com Profaniel:
— Sinhô... seja forte... ela precisa de vosmecê. — Ele a olhava com dúvida, ela se aproximou e lhe pos a mão no ombro. — Sinto que o sinhô é um homem bom. É mais sábio e vivido que essa velha aqui... Hehe...! Eu sei... o sinhô é um homem de Deus! Olha... seu filho... Ele nasceu morto. — Tais palavras caíram como uma pedra sobre Profaniel. Sentia aí um sopro, como se alguém lhe disse-se: “És um castigo!” “Negou tua imortalidade... negaram teu filho, tua vida...”. A parteira logo disse: — Não se remoa assim, sinhô. Num é castigo de Deus! — E saiu com a criança morta nos braços, acompanhada das criadas.
Ficou Profaniel parado por mais uns instantes. A velha parteira, doutora dos segredos da natureza e muito sábia, lhe reconheceu como um anjo-caído. Mas isso pouco lhe importava. Enfim, correu até Kate, ajoelhou na cabeceira da cama e segurou em sua mão. Dormia profundamente, seu rosto era plácido e sofrido. Madalene resolveu deixa-los. Ao se levantar notou um grande corrimento de sangue em Kate... ficou ali. Profaniel chamou por Kate:
— Kate...? Kate...? Meu amor... Acorde... — Ela abriu os olhos com dificuldade e balbuciou as seguintes palavras:
— Profaniel... eu... te amo...! — O olhou, já não tinha mais aquele brilho nos olhos... Profaniel sentiu seu coração quebrar enquanto via sua amada... Não havia mais nada o que fazer... Kate expirou.
Seu mundo não tinha mais sentido. Profaniel vira seu grande amor morrer sem poder impedir. Eu senti todo seu sofrimento, eu estava lá, ao seu lado. Se pudesse chorar, com certeza tinha derramado rios de lágrimas. Não havia maior dor para um único homem... perder o filho esperado e a mulher por quem desistiu de sua graça. Era castigo, pensava, um terrível castigo... sentia que Deus virara as costas para ele nesse momento. Mas não, isso nunca acontece. Padecia também todo o Firmamento do sofrimento de Profaniel... choravam os céus em nosso nome. Aquela chuva eram nossas lágrimas... nossas únicas lágrimas que poderíamos derramar por um amigo.
Eis que surgiu Melod a fim de levar a alma de Kate. Sua presença foi percebida por Profaniel que segurou forte a mão de Kate, como se pudesse impedir que ela lhe fosse tirada. Debruçou sobre a cama e chorou amargamente. Em seu pranto ouvia-se os questionamentos de alguém inconformado:
— Por que Senhor?! Por quê?!! Levaria a mim, pois fui eu que pequei diante de Ti! — Lamentava-se Profaniel e eu nada pude fazer para confortá-lo. Kate teve um sepultamento singelo... ao lado, o filho que não nasceu. Teria por nome Miguel, em honra ao príncipe Arcanjo. Reclusou-se Profaniel na sua casa por semanas.

* * *

Nada lhe importava mais, sua vida perdera o sentido e o porquê. Passava o dia mergulhado nas lembranças, sentindo o perfume de Kate em suas roupas, em seus objetos pessoais. Constantemente era visitado pelos Williams que o queriam levar para sua casa, mas ele recusava. Nem a pequena Catherine lhe trazia alegria. Sentia agora, o lado negro da vida humana. Até então, sua vida foi regada com os mais nobres sentimentos de amor, alegria, felicidade... conhecia agora a tristeza profunda, o remorso, o ódio... Sim, sentia ódio dele mesmo, ódio da vida, ódio de Deus.
Corriam em sua mente os mais sórdidos pensamentos e as piores blasfêmias. De tão horríveis, não posso dizer, pois minha natureza não me permite. Mas é de se fazer chocar qualquer cristão. Passou a não cuidar mais de si, não comia, não dormia, não saía de casa. Seu estado só não era mais preocupante, pois lhe restava um vestígio de consciência. Tantas vezes pensara em suicídio, mas era de seu conhecimento que os suicidas não herdam a vida eterna. E não era isso que Profaniel queria. Ainda lhe restava à esperança de reencontrar-se com Kate na pós-vida. Mas conseguiria ele viver sem ela até o dia de seu juízo? Uma vida pela qual só quis ter senão para viver ao lado de Kate... cousa que agora não havia o menor sentido.
Além dos seus problemas íntimos, Profaniel ainda tinha que conviver com os problemas sociais. Aqueles que um dia foram seus amigos começavam a lhe virar as costas. Primeiro Madelene que, ressentida, o culpou pela morte da irmã. Dizia ela que se ele não tivesse aparecido na vida de Kate, ela estaria viva e linda gozando de uma vida feliz. Claro, só dizia movida pela dor e sob o domínio do gênio-mal. Lembra-se que eu sou seu anjo da guarda, mas num momento em que a pessoa se enche de maus sentimentos, nós anjos não podemos ficar juntos dela, pois só vibramos com boas energias... Assim que energias negativas são emanadas pela pessoa, o anjo é obrigado a se afastar, dando espaço para o gênio-mal, ou anjo-contrário que se alimente de inveja, ódio, fúria e toda sorte de pensamentos negativos.
Desculpe-me leitor pela divagação. Creio que não é de seu interesse saber o que faz um anjo se manifestar e como é constante a batalha contra as forças malignas pelo seu coração. Não deveria eu, Noriel, também estar revelando tais coisas antes do tempo. Não penses que errei, pois anjos não erram... Se disse tais palavras, mesmos que antes do tempo, não foi em vão. Mas deixemos disso e voltemos aos contos. Poderia chamá-los de Memórias, mas anjos não têm memória...
Renegado por seus amigos e vendo a fortuna da família de Kate sendo-lhe roubada pelo Conde Williams, que, apesar de seu senso de justiça e compaixão, nada pôde fazer frente aos apelos da mulher, Profaniel foi expulso da casa e se viu jogado na rua como um mendigo. Logo conheceu a bebida e pagou o preço de embriaguez. Era um dia desses, dia de inverno onde o vento cortava e o gelo fino fazia os cavalos escorregarem nas estradas, que Profaniel tentou sua última esperança.
Reencontrara o caminho da paróquia, onde sempre foi bem-vindo pelos padres, mas nunca mais voltou por lá. Durante a noite entrou pelos fundos e se viu diante do altar. O mesmo lugar que se tornou homem, o mesmo lugar que desposou Kate. Qual seria suas intenções? Orar? Sim, mas algo mais... Era ele um homem abatido, em poucos meses envelhecera anos e emagrecera muito. Diante do altar se prestou de joelhos e fechou os olhos. E assim falou:
— Deus... sou eu, Profaniel. Um dia Tu me fizeste do fogo branco de vossa bondade e servi com honra em teu exército. Lutei para banir satanás e seus anjos para longe de Sua face, ao lado do Arcanjo Miguel e toda a Melícia. Senhor... sei que sou o pior entre todas as criaturas... — Um choro embriaga suas palavras... — Por uma mulher humana roguei-Te para ser carne e assim viver ao lado dela. E assim foi. Felizes foram os últimos dez anos... anos! Coisa de humano! Contar o tempo... O Senhor me deste a felicidade e o amor... Mas acabou. Tiraste ela de mim! Fez com que ela pagasse o castigo pela minha transgressão! Quis a vida... agora a amaldiçôo! Senhor! do que vale a minha vida sem Kate?! Ouça-me Senhor... não resistirei até a hora da morte e não vou tirar minha vida, pois sei o preço. Senhor... aceite-me de volta! Faça-me novamente um anjo! Para que veja novamente Kate, nem que seja por um instante, por um momento...
Todas as potências do Universo calaram-se ao ouvir o pedido de Profaniel. Voltar a ser um anjo... caberia em toda a Criação tamanha contradição? O leitor pode estar se perguntando: “ora, mas ele era anjo e tornou-se homem, o que o impede de se tornar anjo novamente?” Responderei do modo mais simples possível: Há um grande abismo entre homens e anjos. Anjos são espíritos perfeitos e evoluídos em pensamento. Homens são espíritos deficientes que necessitam da carne para viverem... erram, pecam e sofrem, são seres primitivos... Não pelo plano de Deus, mas pelas próprias atitudes humanas... Deus os criou para serem perfeitos... mas, desde Adão essa perfeição foi perdida, sendo só alcançada com Cristo Jesus. De modo que, um anjo, em pleno uso de sua pureza, pode perder seus manto e decair ao nível baixo de homem, porém um homem jamais pode atingir o nível evolutivo de um anjo. Em suma, homens não se tornam anjos.

* * *

Profaniel pediu tamanha coisa e emudeceu e esperou pela resposta de Deus. Suas lágrimas escorriam pelo chão. Logo, da penumbra que era a igreja esta noite se fez surgir uma divina luz... Semelhante em magnitude àquela luz que fez o anjo virar homem. Profaniel ao sentir a presença do Poder que um dia já abraçou, ergueu a cabeça e sorriu. Teria seu pedido sido atendido? Teria o Criador virado às costas para as leis do firmamento em misericórdia de um de seus filhos? Quisera eu narrar esse final, mas não posso mentir. A luz aos poucos foi se tornando fria e áspera. Sentia Profaniel enrijecer-se e aos poucos sendo erguido até ficar de pé. Estava eu presente, e pela primeira vez em dez anos, Profaniel viu minha face:
— Noriel?! — Disse com surpresa, como se pedisse para eu ajudar-lhe.
— Profaniel... meu amigo... Nunca o deixarei. — Eu disse.
Clamaram cânticos santos, o soar de sinos e trombetas celestiais. Via-se a imensidão do Universo surgir daquela luz... podia ver desde o minúsculo planeta Terra até as imponentes galáxias. Do Jardim do Éden Celeste até os Infernos. Via-se também todo o exército de criaturas, humanas, angelicais, bestiais, etc. Toda a Criação estava diante de um homem. Nós sabíamos que isso só poderia representar algo terrível...
De modo espiritual, brotaram quatro correntes dos quatro cantos da terra, cada uma com um grilhão e feitas de ouro e prata. Profaniel estava suspenso no ar. As correntes ataram-no os braços e as pernas. Profaniel gritou de imensa dor... era um homem sofrendo o castigo dos anjos... Percebera nessa hora que a resposta dos Céus não era a que ele esperava:
— N-não...!! meu Senhor!! Tens piedade...! — Suplicava Profaniel enquanto as correntes o puxavam cada qual em sua direção. Ficou ele voltado para o céu, ainda suspenso no ar... Então com a espada de fogo foi ferido no peito. Uma marca, um sinal... o sinal dos condenados. Assemelha-se à Cruz de Caravaca invertida... — Argh...! — Gemia ao receber cada golpe... seu sangue escorria sobre seu peito nu. O mesmo sinal foi feito em seus braços e em suas pernas... Era o “Selo”. Também lhe foram marcados os pulsos, com o fogo da espada foi ferido de tal modo que lhe vazaram os pulsos... semelhantes as chagas que o Cordeiro tem nas mãos, em Profaniel eram nos pulsos.
Enfim, estava feito a preparação. Eu e meus irmãos observamos o início do sofrer de Profaniel... Era para nós um exemplo, para que nenhum outro de nós fizesse tamanha heresia... Começa agora o verdadeiro castigo. As correntes tomaram uma única forma, um único caminho... e arrastaram-no para as profundezas do Inferno. Deus criou o inferno para punir os anjos rebeldes, e não os homens, originalmente...
Foi lançado no fogo eterno, as correntes recuaram e em seguida vieram como fios. Na ponta de cada fio (no total trinta) havia como uma farpa, um pequeno arpão. Fincaram-se os fios nas pontas das marcas do Selo. Seis no peito, seis em cada braço e seis em cada perna. Cravaram em sua carne e sugavam sua energia. Assim foi. Seus olhos se perderam e sua mente não mais estava lá... Sua pele, aos poucos foi ficando seca devido aos cabos que o sugava... secara também sua boca a tal ponto que um lábio se uniu ao outro restando só poucas frestas... Era uma criatura esquelética submersa ali na lava do tártaro.

* * *

O tempo, não sabia. Poderia ter passado mil anos, ou um milésimo de segundo. No inferno, um dos reinos espirituais, o tempo não tem sentido, pois é uma lei material. Profaniel, o condenado, estava lá sofrendo pela ousadia de pedir para ser um anjo novamente. Agora não era mais um homem, e nem um anjo. Era algo inédito, único em toda a Criação. Uma besta frágil à vista. Sua mente era difusa, tendo vários braços como o delta de um rio. Medo e fúria, ódio e amor por Kate... eram seus únicos pensamentos naquela prisão. Mas o tempo correu.
Ficaram para trás todos aqueles que conviveram com Profaniel, o homem. Após seu desaparecimento foi dado como morto e sua estranha história foi narrada em Londres por sete gerações até ser perdida em lendas e mitos falsos. O mundo dos mortais se modificara de maneira assombrosa. Vieram guerras e boatos de guerras, avanço nas artes e na tecnologia. Na Terra se contava pelo calendário Cristão o ano de 2001.
Estava a mais de duzentos anos em sua danação. Duzentos anos! Meu amigo Profaniel... Eu nada pude fazer... Passei esses anos com minha missão de proteger os humanos deles mesmos e das forças malignas, mas sempre orei por Profaniel.
Qual era o prazo desse castigo? Até quando? Não sei. Talvez um milênio, talvez até a consumação do mundo... Mas então, por que remontar até o ano de 2001? A resposta está a sua volta, mas tu não compreendes... Então cabe a mim desvendar esse mistério:
Em certo momento, cessaram os fios de sugar-lhe e se soltaram de sua carne ressecada. No lugar onde foram cravados ficaram como cristal de cor alaranjada. Despertara a mente de Profaniel, confuso e ainda sofrendo com o fogo eterno viu as correntes que o lançou lá, da mesma forma o retirar da lava, só que com delicadeza, sem o ferir. Foi levado do inferno em direção a uma grande áurea branca... Não mais entendia o que acontecia...
Em pouco foi posto num sólido... não via nada, só a áurea branca. De joelhos, nu, ainda com o Selo, os furos nos pulsos, com a pele seca e boca selada. Padeceu lá por um piscar de olhos. Então ergueram-se a sua frente toda a Melícia Celeste em tribunas sobre nuvens douradas segundo cada qual seu coro e sua linhagem. Levantaram também os nove Príncipes em todo seu esplendor e glória. Eram eles: Metraton, Raziel, Auriel, Uriel, Raphael, Camael, Haniel, Gabriel e Miguel. Estava Profaniel frente a todos os anjos para ser julgado.

Fim do Capítulo II

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