Profany
O Anjo da Morte


Episódio 13: – “Muitas Formas de Amar - Amor de Esposa – parte II”
Por: Anderson Oliveira

Campos, Rio de Janeiro.
A família Paiva se reúne para mais um almoço de domingo. Na sua casa de classe média, Getúlio e Rosalva, assim como os filhos Carlos e Heitor, recebem os tios, tias, primos e cunhados. Já é costume, pelo menos uma vez por mês a reunião deve acontecer. Tem sido assim nos últimos vinte anos... desde que Carlos nasceu...
Quando Carlos nasceu. Lembrar dessa época é trazer um misto de emoções para Rosalva. É um passado que ela procura esquecer e nem é capaz de imaginar o que seria se Getúlio soubesse a verdade. A terrível verdade. A história em si é simples. Seu princípio se parece muito com outras histórias que aconteceram, acontecem e acontecerão pelo mundo... mas seu desfecho é algo digno de receber a atenção de Profany, o Anjo da Morte.

Rosalva ama Getúlio, isso é inegável. O ama mais que a própria vida... que qualquer outra coisa. E faria de tudo para não perder seu amor. Até mentir. Porém há quase vinte e um anos ela fraquejou nesse amor. O casal tinha brigado, coisa à toa, que sempre pode acontecer nos primeiros sete anos de união. Mas bastou essa briga para Rosalva conhecer outro homem.
Uma noite apenas. Regada à bebida, culpa e lágrimas. Rosalva se entregou a um caminhoneiro mais velho que ela, cujo nome nem sequer veio a conhecer. Só guarda seu jeito galante e sorriso irresistível. Uma noite. E não é difícil deduzir o que aconteceu depois.
Rosalva estava grávida. Grávida e não era de Getúlio. Mas ela não teve tempo para se desesperar, pois o marido veio à sua porta arrependido com flores na mão. Era essa a solução. Rosalva tinha ao seu lado novamente seu grande amor... Que iria criar o filho do caminhoneiro pensando que é seu primogênito. Que sorte teve Rosalva.
O menino nasceu forte e saudável. Carlos de Sousa Paiva, nascido num domingo de primavera. Getúlio amou aquela criança, pois julgava que era seu filho, seu primeiro filho. E Rosalva só pensava que se Getúlio descobrisse a verdade seria o fim do seu grande amor. Mas isso não poderia acontecer! Era impossível alguém descobrir que ela esteve com aquele caminhoneiro. Seu segredo estava assegurado. Iria com ela para a sepultura.
O tempo passou, Rosalva teve outro filho, Heitor. Isso quando Carlos já tinha cinco anos. A família estava completa e feliz. Getúlio prosperava no emprego, um ano depois deixaram à velha casa e se mudaram para essa que vivem até hoje. Carlos entrou na escola. Um garoto com problemas no começo, mas logo foi tomando jeito e, nos anos seguintes, tirando boas notas. Heitor seguiria o mesmo caminho. Os dois irmãos eram grandes amigos... ainda são. E não havia uma noite sequer que Rosalva não pensava no seu segredo.
Um segredo muito tempo guardado que levou Rosalva, aos poucos, a desenvolver problemas de saúde. Primeiro seu colesterol, depois a diabetes e por fim crises depressivas. Claro que seu peso elevado contribuiu bastante para agravar esse quadro, mas se não houvesse em si o medo de descobrirem seu segredo, talvez ela não comesse tanto. Mas só um médico para estudar esse assunto.
O que interessa saber nessa história é que, com dezessete anos, Carlos conheceu Olívia. Uma garota de sua idade, bela e gentil. Os dois começaram a namorar. Não era a primeira namorada de Carlos, já tinha tido algumas, mas com Olívia o caso era diferente. O rapaz amava a garota, e ela também o amava. A família via com bons olhos o namoro. Sim, pois a moça era honesta, estudiosa e de boa família. Namoraram até o fim do colégio e um pouco mais, indo para a faculdade (Carlos direito e Olívia jornalismo), noivaram. O casamento foi marcado para quando estivessem formados.
E tal dia estava chegando. Era esse um dos assuntos tratados no almoço de domingo. Carlos acabara de se formar e só faltava uma semana para Olívia fazer o mesmo. Os dois estavam empregados, já tinham casa em vista e um futuro planejado pela frente. Hoje, perante a família Paiva reunida, os dois expressam total felicidade...
— Então vai ser mesmo no mês que vem? — Pergunta uma tia, após o café.
— Sim! É só fazermos os exames pré-nupciais. — Responde Carlos.
— O que é isso? — Pergunta o jovem Heitor.
— São exames pra saber se nós dois poderemos ter filhos. Se nosso sangue é compatível e tal. — Diz Carlos abraçando Olívia. Nesse instante, Rosalva que ia levar a bandeja de xícaras para a cozinha deixa tudo cair de suas mãos. — Tudo bem, mãe?
— Tudo bem, Rosalva? — Pergunta Getúlio, assustado. Rosalva se vira, com o coração acelerado e com os olhos arregalados:
— Ah... sim... foi só um descuido meu!
— Deixa eu ajudar. — Se prontifica Olívia a catar os cacos de porcelana do chão. Heitor e Carlos também ajudam. Rosalva entra na cozinha e se apóia na pia pensando:
— Ele... ele vai fazer um exame... Um exame de sangue! Nunca deixei que fizessem exames de sangue nele... se faziam, eu escondia os papéis e os queimava para Getúlio não ver que Carlos não tem o mesmo tipo de sangue que ele. Mas agora... isso é diferente. Carlos é homem feito, não posso fazer nada. Ele... ele vai descobrir... vai saber que não é filho de Getúlio.
— Está tudo bem mesmo, mãe? — Diz Carlos entrando na cozinha junto com Olívia trazendo os cacos.
— Ah, meu filho, não se preocupe... é só outra crise de pressão. — Rosalva limpa uma lágrima.
— Mãe... não anda tomando seus remédios?
— Claro que tomo... mas... não sei o que houve... Me dêem esse lixo que eu resolvo o resto... vão lá pra sala...
— Mãe...?
— Está tudo bem, Carlos... pode ir. — O casal vai para a sala e Rosalva torna a pensar: — Getúlio não pode descobrir que Carlos não é seu filho! Ele... ele me odiaria... Ele iria me abandonar... Eu preciso fazer alguma coisa... Ele não pode nem sequer desconfiar...
Esse pensamento remoeu Rosalva por dias. Enquanto nisso pensava, numa maneira de Carlos não saber comparar seu tipo sanguíneo com o do pai, que é sabido ser AB positivo desde que Getúlio era solteiro, enquanto o de Carlos é O negativo, o casal de noivos iniciavam os preparativos pro casamento. Após a formatura de Olívia, eles escolheram a casa e trataram de fazer correr os proclames. Seria algo simples, uma festa fechada. O vestido de Olívia já estava escolhido. Só restava o exame pré-nupcial.
Um dia antes do exame, Carlos voltou do trabalho e passou à tarde com os pais, antes de ir para sua casa onde já morava com Olívia. Enquanto ouvia os velhos discos de vinil do pai comendo bolo de fubá e bebendo café, Rosalva observava tudo com um semblante mórbido.
Do canto da porta, com olhos frios e vazios, ela olhava pai e filho, amigos e confidentes. Getúlio ama Carlos do fundo do coração. Descobrir que ele não é seu filho talvez não mude a relação dos dois, pois o afeto que se criou não tem nada a ver com laços de sangue. Mas não é com isso que Rosalva está preocupada. É como Getúlio irá tratá-la caso descubra a verdade.
E tal dia está perto. Amanhã Carlos fará o exame e começará a desconfiar ao ver que seu tipo sanguíneo é bem diferente do tipo do pai. E com essa desconfiança irá conversar, numa conversa informal, talvez no meio de um almoço em família... irá relatar a todos essa questão. “Como pode meu sangue ser O negativo se o do meu pai é AB positivo?”, dirá. E isso causará muito reboliço e todos levantarão hipóteses sobre o motivo até que alguém mais malicioso dirá “Então você não é filho do Getúlio, de jeito nenhum!”.
No começo irão rir, não darão fé. Mas Getúlio dormirá com essa idéia martelando em sua cabeça. Ou melhor, passará noites em claro, olhando para sua mulher amada pensando se ela seria capaz de ter-lhe traído. Irá raciocinar e ver que Carlos foi gerado no tempo em que os dois estiveram separados. Irá encaixar as peças do quebra-cabeça e logo terá a certeza.
Então dirá “Rosalva, porque me enganou por todos esses anos?”, e Rosalva não saberá o que dizer a não ser “Por medo!”. Mas Getúlio se encherá de fúria, de indignação... Ele não é um homem agressivo, mas com um golpe desses, quem sabe, baterá em Rosalva... poderá matá-la de pancadas... Rosalva tem saúde frágil... Ou então apenas sairá pela porta com sua mala feita chamando a mulher de vagabunda para cima. Pedirá divórcio... conhecerá outra mulher, mais nova, mais bonita... E Rosalva ficará só.
Tudo isso imaginou Rosalva enquanto via Carlos e Getúlio rindo e ouvindo músicas antigas. Era preciso fazer algo antes que tudo viesse abaixo... Algo tem que ser feito... agora ou nunca... Rosalva, com seus olhos gélidos, estática diante da porta da cozinha... imaginava...

Dois dias depois...

Profany caminha pelas ruas desertas nessa madrugada. Não faz frio e nem calor. É inverno, mas o clima da cidade de Campos sempre foi quente. Profany caminha aparentemente sem rumo. Tem sido assim nos últimos dias. Sozinho, sem a companhia de Noriel, seu anjo guiador. Não que o anjo o tenha abandonado, Profany apenas não o chamou. Ele quer ficar sozinho.
Ou melhor, queria. Esta solidão já está de bom tamanho. Seria bom conversar com alguém, ele não faz isso desde que deixou Goiás na semana passada. Lá encontrou Madalena Passos... viu em um jornal que seu corpo foi encontrado boiando num rio. Foi melhor assim.
— Noriel... está aí... — Chama Profany, parando e sentando em um ponto de ônibus.
— Estou sim, Profany. — Noriel surge sentado ao seu lado. — Pensei que tinha me esquecido.
— Eu... só queria ficar sozinho com meus pensamentos...
— Sim, eu sei.
— Claro... Então... novidades?
— Como?
— Algo para me dizer? Algum alerta?
— Não. Está indo bem na sua missão. Só um pouco...
— Um pouco...?
— Devagar.
— Isso não é fácil.
— Não deve ser...
— É muito... triste... saber o que as pessoas fazem... e porque fazem...
— Esta é a realidade... A alma humana esconde muito mais do que eles querem deixar transparecer.
— Homens são animais terríveis... Essa é a Imagem e Semelhança de Deus?
— Homens perderam essa Imagem e Semelhança ao se tornarem escravos.
— Escravos....? De quem?
— Do mundo. Do pecado. Das paixões. Aí sim, se tornam animais terríveis.
— Matam seus iguais... guerreiam entre si... matam inocentes. Não, não são animais. São coisa pior.
— Dê um voto de confiança, Profany, pois essas criaturas, em sua grande maioria, estão do lado da luz, mesmo que vacilem em pequenos erros. Esqueceu-se o que aprendeu sobre Fé?
— Não...
— Então tenha fé neles.
— Os maus fazem os inocentes chorarem...
— E enquanto houver lágrimas, haverá consolação. Enquanto houver aflitos, haverá esperança.
— Está certo...?
— Você sabe que estou. Agora... já sabe qual será seu próximo adversário?
— Sim, por isso estou nessa cidade. — Profany se levanta. — É hora de ir. — Ele se vira e não mais vê Noriel. — Pois é... É isso aí...
Profany ainda sente uma fina garoa cair antes de ir para o Plano Espiritual. Lá, ele une seus pulsos e localiza as almas vermelhas. Uma delas está mais próxima. Essa alma irradia uma maldade terrível. Profany segue, vai pelo caminho sem distâncias até chegar onde esta alma espera.

Rosalva está sozinha no quarto. Sentada na cama diante da parede permanece estática, sem mover os olhos, gélidos e perdidos no nada, enquanto da sala se ouve um romper de prantos. É uma noite triste para toda a família. Todos se comovem com o terrível fato de estarem velando alguém muito amado. Mas Rosalva se guarda na escuridão do quarto. Na escuridão do seu coração.
— Como pôde? — Uma voz grave e abafada surge atrás de Rosalva. Ela se vira sem pressa, como se soubesse o que encontrar. Se decepciona com o que vê, deixando isso claro com um levantar de sobrancelha.
— Pensei que minha consciência fosse mais... bonita.
— Não sou sua consciência... se é que tem alguma. — Profany se aproxima.
— Não me interessa o que é. O que quer comigo?
— Primeiro quero entender... Por que fez isso com ele?
— Porque ele não podia saber. Ninguém pode saber.
— Você o matou!
— Eu sei.
— Você o matou por causa de uma mentira?!
— Não. Matei por amor... O amor que sinto por Getúlio é maior que tudo.
— Amor?! Não pode haver amor em alguém que faz esse ato... Isso... Isso não é amor...
— O que você sabe de amor?
— Mais do que pensa.
— Agora isso não importa mais. Está tudo acabado. A menos... Você vai contar a verdade? — Rosalva expressa ódio ao imaginar que aquele homem estranho possa revelar seu segredo. Ela se levanta e tira da gaveta uma tesoura. — Ninguém poderá saber!
— Você não entende... Não consegue compreender o que fez!
— Foi fácil... Eu apenas pus veneno em seu café. Um veneno muito bom... não deixa vestígios... Ele morreu sem poder descobrir a verdade...
— Você... VOCÊ MATOU SEU PRÓPRIO FILHO!! — Profany a segura pelos ombros, Rosalva tenta ataca-lo com a tesoura em vão.
— Era o único jeito! Se Carlos fosse fazer o exame, iria descobrir!!
— Seu filho! Sangue do teu sangue! Carne da tua carne!!
— Não importa... Getúlio hoje chora por ele, mas depois estará comigo, para sempre... sem nunca descobrir...
— Ele tem que saber... Ele tem que saber...
— Não!! Eu... te mato antes!! — Rosalva investe novamente com a tesoura, mas Profany a tira de sua mão.
— Eles saberão... e você receberá seu castigo.

Um grito é ouvido vindo do quarto. Getúlio, Heitor e os outros deixam o velório de Carlos para verem o que está havendo com Rosalva. A porta está trancada. O marido chama, mas a mulher não responde. Após alguns instantes eles arrombam a porta. Getúlio e os outros ficam estarrecidos com o que vêem em sua frente.
Roslava morta, com a tesoura cravada em seu pescoço e um ferimento no pulso. Na parede, escrito com seu sangue, as seguintes palavras:

“Eu matei Carlos.
Carlos não é seu filho, Getúlio.
Matei para você não descobrir.”


A autoria da frase será atribuída a uma mãe que, com remorso e culpa, se suicidou após matar o filho. Nunca imaginarão que quem escreveu aquilo foi um anjo caído enviado pelos Céus para matar 125 pessoas realmente más. E nem saberão que ele matou Rosalva.
O segredo está a salvo.

Continua...

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