Profany
O Anjo da Morte


Episódio 4: “O Quarto Mandamento – parte I”
Por: Anderson Oliveira


Dez dias atrás. Era madrugada fria. As famílias se recolhiam em suas casas em busca de calor. Outros procuravam o calor na companhia dos amigos em casas noturnas, festas, ou lugares exclusos. A rua estava deserta. Uma fina garoa parecia cair aumentando a sensação de frio, deixando o asfalto úmido o bastante para marcar os rastos de um carro silencioso que roda na noite.
No veículo, dois homens e uma jovem mulher. Pareciam se esconder, mas não do frio. Não havia nenhuma alma viva naquela rua, mas eles ainda sim tentavam encobrir seus rostos e feições. O carro pára de fronte a uma mansão. O motorista desliga os faróis enquanto a mulher sai e abre o portão. Ela respira com dificuldade. Seu bafo quente se converte em vapor no tempo frio. Com um aceno ela avisa para os rapazes entrarem na casa.
“Cuidado!”, ela pede. Eles entram sem fazer barulho algum. Dos fundos entram pela cozinha. Portam grandes bolsas, vestem luvas... são soturnos ao invadirem a casa. Um dos rapazes parece estar com medo. O outro o reprime constantemente e a moça é indiferente. Ela porta as chaves da casa, significa que ela mora lá... suspeita confirmada ao ser ver fotos dela sobre os móveis da sala.
Na foto ela sorri. Junto de seus pais e do irmão mais novo. São fotos de férias de diversas épocas e lugares. Fotos são ilusões. Mostram-nos imagens que ficam registradas onde todos sorriem e são felizes. Contam lembranças de um dia na praia, uma semana em Madri, a temporada de esqui em Amsterdã... Mas ainda não existe fotógrafo que possa retratar o que se esconde por debaixo dos rostos alegres e dos sorrisos feitos ao comando do “digam X”.
São meras fantasias de um instante insignificante frente ao conteúdo da vida. A vida... quantas e quantas pessoas reclamam e maldizem suas vidas, mas nada fazem para melhora-las. Ou pior, fazem à coisa errada. Essa garota julga ter conhecimento para discernir o certo do errado. Talvez tenha mesmo, todavia não o usa esta noite.
O trio entra no escritório. Livros atolam as estantes, garrafas de bebidas enfeitam um bar e móveis caros e luxuosos completam a sala. Lá eles esperam um sinal... um sinal para começar o que realmente vieram fazer ali. Esse sinal cabe a moça decidir o momento de dá-lo. O cheiro do crime é mais do que perceptível e inebriante. Todo crime deve ser maquiado, disfarçado... ainda mais se é um crime de tamanha vilania.
CDs, aparelhos de fax e de informática são jogados nas bolsas. Sem alarde algum. É o suficiente... Está na hora. Ela indica como chegar lá, explica sem palavras como devem proceder... Eles se olham, o mais temeroso engole seco, o outro tem olhos frios e vis. Os dois sobem, a garota fica. Ela se senta em uma poltrona e aguarda.
Aguarda... aguarda enquanto seus pensamentos são povoados de imagens confusas e sons amorfos. Ela tenta não pensar mais. Sabe que se deixar ser tomar pelos sentimentos e emoções fraquejará em seu plano e cairá em arrependimento. E ela não quer isso... e isso a faz forte... uma fortaleza de veneno e ressentimento. Ela não quer pensar nisso.
Procura pensar em coisas que a deixem feliz. São pensamentos torpes e sórdidos que a satisfazem e a acalenta. Então se ouve gritos... gritos de medo, gritos de dor. Ela tapa os ouvidos afim de não escutar. Cantarola uma cantiga de roda para abafar os gritos que a afligem. São gritos terríveis... mesmo com os ouvidos tapados ela os escuta no coração. Deveria chorar agora, deviria sentir pena e compaixão (no mínimo), mas não... Esforça-se em pensar em coisas “boas”.
Então não se ouve mais nada. Um silêncio tão profundo que parece engolir a noite. Silêncio quebrado pelos passos dos homens que descem as escadas apresados. É hora de ir. Mas antes uma nova máscara, um novo artífice... Bagunçam os livros, levam alguns... quebram janelas e violam portas. A garota lembra então o que realmente mascará o ato. Ela sai e logo retorna com jóias e dinheiro.
Ao sair forçam a porta, simulando uma invasão. Missão cumprida. É hora da comemoração. A moça e o rapaz mais frio entram no carro pela porta de trás, deixando ao outro a função de motorista. Lá iniciam uma sessão de beijos e carinhos indiscretos e violentos. Sessão que termina em um motel onde o casal passa o resto da noite.
Nove dias atrás. Ao nascer do sol, muito ainda restaria por se descobrir nesse dia que, apesar de frio, é um dia lindo. (A mim me agradam os dias frios e úmidos, mas a maioria prefere o sol e calor). O mais é irrelevante saber como procedeu. Os meios que levaram ao fim são obscuros e só quem presenciou tais fatos pode der testemunho. Mas o resultado em pouco tempo cai nas mãos da imprensa e chaga aos nossos ouvidos em forma de notícia.
— O casal Ritchtoviski foi morto á pauladas em enquanto dormia em sua própria casa. Um crime bárbaro e frio. — Diz o repórter de uma rede de notícias no primeiro noticiário dessa manhã. — A polícia interditou o local...
— Jesus, Maria e José! — Exclama o policial Luke Junqueira ao acompanhar a perícia enquanto se fotografa os cadáveres e colhe provas. — Cada dia eu me deparo com situações cruéis e repugnantes... e a cada dia as coisas pioram!
— É verdade Luke... — Diz o policial Edson Gonçalves da polícia científica. — Veja só... esses dois foram mortos com paus ou ferros enquanto dormiam. Percebesse que tentaram reagir em vão, se protegendo com os braços e se debatendo. Certamente foram duas pessoas, cada uma de um lado da cama. O que teria motivado isso?
— Assalto. A porta dos fundos foi arrombada e objetos, jóias e dinheiro foram levados. Mas é estranho... Por que não se contentaram com isso e subiram aqui e mataram o casal?
— É por isso que estamos aqui, Luke... temos que descobrir a verdade. Só o casal mora aqui?
— Não... eles tem dois filhos. O caçula estava viajando com os avós, a mais velha dormiu fora e chegou há pouco. Está muito abalada. O pessoal do Milton está interrogando ela. Os empregados também estão lá.
— Bem... vamos fazer nosso trabalho... — Assim eles voltam aos seus afazeres.
A filha do casal chora muito. Ela é Samanta Ritchtoviski. Chegou e viu a casa tomada por viaturas e carros de reportagens. Amparada pela polícia agora tenta dizer o que sabe, o que poderia saber. Calmantes não a fazem relaxar. Seu pranto é comovedor. Comovedor para todos...
Oito dias atrás. O cortejo leva os ataúdes do casal Ritchtoviski para o cemitério. Como não poderia de ser, a imprensa está em massa lá. Câmeras tentam captar o máximo que puder da intimidade dos filhos órfãos do casal brutalmente assassinado.
Samanta chora muito. Abraçada ao seu irmão, Igor, os dois se deixam levar pela emoção, mesmo contidos pelos óculos escuros. É um enterro simples e pomposo ao mesmo tempo. Simples pela cruel fatalidade que o casal sofreu. E pomposo pela posição social que a família Ritchtoviski ocupa. Ao final do último adeus ao casal, todos se foram.
Sete dias atrás. Os policiais se empenham em investigar o crime. Colhem provas, interrogam empregados da casa, vizinhos e membros da família. Com o mesmo empenho, os jornalistas lutam pela melhor notícia, pelo furo de reportagem e pela imagem perfeita. Esse esforço de ambos ainda teria que esperar para atingir algum resultado satisfatório.
— Notícia extraordinária! A polícia chama para depor Samanta Ritchtoviski, filha do casal assassinado há quatro dias. Os investigadores suspeitam que Samanta possa ser cúmplice do assassinato. — Anuncia uma repórter no plantão jornalístico da TV, seis dias atrás.
— Ela está chegando, dêem licença!! — Diz um policial na portaria da delegacia onde Samanta vai prestar depoimento. Ela é trazida em uma viatura e entra sob o flash e microfones da imprensa. Dentro do prédio, os investigadores a ouvem por horas a fio.
— Samanta Ritchtoviski foi acusada pelo assassinato dos pais! A polícia descobriu isso após periciar a mansão da família. O namorado de Samanta, Júlio Valinhos, e seu irmão, Fabiano Valinhos estão sendo procurados como co-autores do crime. — Diz o noticiário, cinco dias atrás. — O casal Ritchtoviski era contra o namoro de Samanta e Júlio, o que supostamente motivou o assassinato.
Samanta, que estava morando com os avós, é pega de surpresa ao saber da acusação e ser levada pelos policiais à delegacia. A garota argumenta, chora, implora, mas é em vão. De cabeça baixa, sem qualquer reação é levada pelos policiais sob a lente de reportagem de diversas redes de noticias. A imagem ocuparia a mídia por meses.
Quatro dias atrás. A polícia vai à procura dos irmãos Valinhos. Vasculham a casa da família para o desespero da mãe. Buscam em lugares conhecidos pelos amigos e colegas. Não os encontraram. Enquanto isso, Samanta, detida na delegacia, confessa o assassinato e confirma o envolvimento do namorado:
— Foi idéia dele. Ele me disse que se nós nos livrássemos dos meus pais, poderíamos ficar em paz. E ainda eu ficaria com o dinheiro. Iríamos nos casar e ir pra bem longe daqui. — Diz Samanta no interrogatório oficial.
— Conte-nos como aconteceu. — Manda o policial Luke Junqueira, junto a outros que acompanham o depoimento.
— Chegamos de madrugada... eu abri a porta e levei eles até a biblioteca. Pegamos algumas coisas pra dizer que havia acontecido um assalto. Daí eles subiram... como aconteceu lá em cima eu não sei... não perguntei... Depois que desceram eu peguei umas jóias e dinheiro, o Júlio estragou a porta pra parecer que foi arrombada... Depois nós dois fomos pro motel e ficamos lá até de manhã...
— Onde ele está agora?
— Eu... Não sei...
Três dias atrás. Fabiano Valinhos se entrega à polícia e denuncia seu irmão. Pela tarde os dois são apresentados para imprensa. Fabiano envergonhado permanece de cabeça baixa. Júlio mostra uma reação contrária: olha firme para os repórteres, feições sérias, porte valente... Parece nada temer. Esta imagem também tomaria os noticiários por algum tempo.
Dois dias atrás. Crime solucionado. Os três envolvidos presos. Comoção entre a população. Sentimentos de indignação e revolta tomam conta da opinião pública. A justiça mantém Samanta presa para sua própria proteção, alegam. Pichações com palavras de ódio contra Samanta enfeitam a mansão onde o crime foi concretizado. Advogados cuidam de assuntos referentes à herança de Samanta. O irmão da garota é incomunicável.
Um dia atrás. Enquanto um pedófilo é encontrado morto no quintal de sua casa, obra de algum justiceiro desconhecido pela polícia, exceto por Luke Junqueira, Samanta passa seu dia em depoimentos, conversas com advogados que lançam notas à imprensa expressando o suposto arrependimento da moça, artífice para acalmar a comoção popular.
Nos noticiários o crime ainda é assunto. Recapitulações dos fatos são exibidas pelo menos dez vezes por cada emissora de TV. Em todo o país não havia ninguém que não conhecesse a história do brutal assassinato. Ou havia? Havia e há alguém que não viu os noticiários e nem leu os jornais, mas conhece Samanta Ritchtoviski. Ele viu sua alma e sentiu sua imundície nesse momento.
Do alto de um edifício em construção, Profany dá seguimento a sua missão e encontra aquela que deverá ser sua terceira vítima. É noite, o anjo condenado precisa de descanso, e não irá à caça até que o sol nasça. Profany resolve não dormir ali, mas no salão abandonado que Letícia lhe apresentou. Usando sua capacidade concedida especialmente para sua missão, ele migra para o plano espiritual e traça o caminho sem distâncias até onde será seu dormitório esta noite.
— Acorda Letícia!
— Hã...? Ai pai! Ainda tá cedo... deixa eu dormir mais um pouco...
— Levanta que hoje eu vou te levar até a escola, e eu já estou saindo.
— Hein? Pra que isso agora? Eu sempre fui sozinha andando... é aqui perto...
— Acontece que eu vou mesmo para aquele lado... — Hoje pela manhã, na casa de Luke Junqueira. O policial acorda sua filha para levá-la de carro pra escola. A idéia parece estranha para Letícia, já que a escola é bem próxima e ela sempre foi a pé. No entanto, Luke tem outros pensamentos: — Não quero deixar Letícia andando sozinha por aí. Nada me tira da cabeça que aquele sujeito estranho esteja rondando por aqui.
Antes mesmo do raiar do sol, Profany também é acordado. No seu caso, por Noriel, seu anjo-guiador:
— Acorde amigo Profany... Já descansou o bastante. Não deixe a preguiça tomar conta de ti. — Diz o anjo que se materializa sob a forma de homem, trajado de branco, irradiando uma divina luz.
— Preguiça... sei... um dos sete pecados capitais... — Diz Profany levantando da cama improvisada com papelão. — Quais são os outros mesmo?
— Isso é irrelevante. Ademais, você só é suscetível a apenas um: a preguiça. Além disso... isso é invenção dos homens. — Dizia Noriel enquanto Profany se punha de pé. — Já encontraste seu próximo alvo?
— Já... Mas a imagem dela é obscura... Não é como os anteriores, que estavam livres e despreocupados... Essa parece aflita... em um lugar cheio de... rancor...
— Então é ela?
— Sim... Então executarei a missão. Até mais tarde. — Despedia-se Profany enquanto se dirigia para a saída do salão. No entanto viu pelas frestas grande concentração de pessoas. É horário escolar e as ruas estão cheias. Então resolveu sair dali da forma que entrou.
No mundo espiritual, o anjo da morte seguiu o rastro de sua vítima. Seguindo o curso, chegou até sua presença, mas não pode se aproximar mais. Era algo estranho. Não era a mesma força maligna que protegia Renato, mas uma força que emanava sofrimento e agonia. Uma força que Profany ainda desconhecia. Todavia essa força o guiou até um local onde sua presença seria mais bem aproveitada.
A agonia naquela casa era ainda maior. Uma casa grande, portas e janelas fechadas e fitas da polícia lacrando-a. Profany foi levado à mansão Ritchtoviski, o local de um crime horrendo, tanto aos olhos dos homens, quanto aos olhos de Deus. Já no plano material, Profany andou pela casa sendo guiado pela força estranha. Não era uma força ameaçadora, que poderia querer destruí-lo, mas queria pedir ajuda.
Profany caminhou pelas sombras, amenizadas pelos poucos raios do sol matutino. Ele entrou na biblioteca, onde só encontrou livros bagunçados e sinais de destruição. Um certo livro aberto perdido no chão lhe chamou atenção. Já havia visto aquele livro no dia anterior. Um vento estranho folheou as páginas do livro até um trecho. Profany o pegou, limpou a poeira e leu:
— “Honra teu pai e tua mãe...” — Em sua memória, Profany lembrou-se dessas palavras. Em uma ocasião estava na igrejinha onde ensinava aos fiéis quando ainda era Profaniel, o homem. Outra lembrança, obscura e confusa, lhe mostrou um momento em que tais palavras foram ditas perante uma multidão sob o barulho de trovões e trombetas. Essa lembrança era muito vaga, mas pensou ele ser algo à toa.
Pensou nessa hora em pegar o livro para estudá-lo com mais calma numa outra hora. Então, pouco abaixo do que tinha lido, viu escrito: “Não roubarás”. Sentiu-se envergonhado, olhou ao redor, e deixou o livro sobre a mesa. Mas por que seguiria o que manda simples palavras? Meras manchas de tinta sobre o papel? Essa é uma questão que responderemos mais a frente.
Seguiu então sua investigação pela casa. Profany não sabia ao certo o que estava fazendo, mas assim mandava seu coração. Subiu pelas escadas, no andar de cima encontrou um quarto onde a força que o guiava era muitíssimo forte. Adentrar aquele quarto, para um homem, seria fácil, para um anjo de Deus, impossível. Pois abominações e espíritos imundos habitavam aquele lugar. Não sendo Profany homem, nem anjo, e ao mesmo tempo ou pouco dos dois, ele entrou.
Havia uma grande cama a frente da porta. Agora um tanto arrumada, mas as sombras do crime que lá foi cometido eram visíveis para Profany. A agonia que o guiava até então tomou forma sob a imagem de um homem e uma mulher que choravam, gritavam e pediam socorro. Tal visão deixou Profany assustado. Ele quis sair dali naquele momento, mas as súplicas daquelas almas perdidas tocaram seu coração bondoso de anjo. E ele se aproximou.
Nessa hora visões tomaram sua mente. Era algo novo. Semelhante a viagem pelos planos existenciais, Profany vagou até outra dimensão... outra época. E estava o quarto iluminado, e havia o cheiro de flores e o som de vozes. E na cama um casal despertava. Profany estava em pé bem em frente, mas não podia ser visto. Pela porta uma menina de cinco ou seis anos entrou correndo e pulou na cama:
— Pai! Mãe!! Acorda!! Sabe que dia é hoje? — Diz a criança.
— Calma Samanta... a gente já vai descer... Você acha que íamos esquecer seu aniversário? — Diz a mãe.
— Isso mesmo filha. Desce que a festa ainda será de tarde... — Diz o pai.
— Papai... mamãe... Eu amo vocês! — A menina corre e abraça seus pais.
Permanecia ali Profany a observar a cena sem entender o que havia acontecido. Estava ele no passado? Era um modo de compreender o que precisava para sua missão? Era alguma armação das forças das trevas para confundi-lo? Essas perguntas pairavam na mente de Profany. E a resposta virá a seguir.

Continua...

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