Profany
O Anjo da Morte


Episódio 6: “A Despedida – parte final”
Por: Anderson Oliveira


— Você é um anjo? — Pergunta a menina Letícia, em toda sua sabedoria de quem sabe escutar seu coração. Profany a olha nos olhos, respira calmamente e olha para o chão. Letícia espera pela resposta com o olhar atento, quase faminto. Então Profany novamente a encara e diz:
— Não.
— Ah... Tá... desculpa... Que pergunta besta que eu fiz...
— Mas já fui. — A resposta de Profany pega Letícia de surpresa. E ele também se surpreende em fazer tal revelação. Por um instante um silêncio faz Profany questionar-se se deve prosseguir. Se deve revelar sua história... se deve comprometer a vida da garota unificando sua vida a dele para sempre...
— Hein?
— Bom... pelo menos é o que me disseram, pois não me recordo de nada. Também é verdade que tudo que eles falaram faz muito sentido...
— Eles quem?!
— Os nove príncipes... de toda a Milícia Celeste...
— Peraí...! Você tá falando dos anjos mais poderosos de todos?!
— Não sei como explicar, mas... Onde me lembro que tudo isso começou... Foi em Londres, no ano de 1783. Não me lembro como a conheci, mas lembro muito bem do seu rosto... Kate era a mulher mais linda que eu já havia visto... Eu a amava... ainda a amo. Fomos felizes por dez anos, mas eles a tiraram de mim... e meu filho... Depois, não sei como, não sei por que, implorei a Deus para ser um anjo novamente... para pode ver Kate mais uma vez...
— E aí...?
— Aí me transformaram nisto! — Profany ergue os braços mostrando os pulsos. — Durante muito tempo estive num fogo que não se apagava, numa dor eterna... No Inferno. Quando de repente me tiram de lá e me levaram até um mundo frio e reluzente... Então eles apareceram. E todos... todos os anjos estavam lá para ver meu destino.
Profany faz da história um desabafo. Expressar suas emoções a alguém que não fosse Noriel era pra ele uma forma de tirar um peso de suas costas. E esse alívio que sentia, de certa forma deixava sua mente mais preparada para compreender as questões que o afligem. E para Letícia, acompanhar aquele relato, ainda que confuso e contido, era algo divino... Ter a certeza que suas crenças são verdadeiras deixa a menina fortalecida frente aos adversos do mundo.
— Mas então, por que você tá aqui agora? — Perguntou Letícia com brilho nos olhos. Profany vacilou em responder, pois dizer que ele deveria assassinar pessoas maléficas poderia assustar a menina. E ele julgou melhor se calar. — Anda... fala!
— Não posso. Preciso ir agora... — Profany se levanta.
— Espera! Me conta mais sobre os anjos!
— Outra hora. Agora devo continuar com minha missão. — Profany se dirige a saída do salão. Letícia o olha com admiração, e ao mesmo tempo decepção, pois gostaria de continuar a conversa. Ela continuou sentada no chão enquanto Profany saía pra fora.
Na rua, Profany sentia-se melhor em ter feito seu desabafo, mas temia pelas reações futuras de Letícia. Talvez, seus dons angelicais o alertassem para o futuro. Um misto de emoções invadia seu coração ao pensar em Letícia. Vinha à certeza de ter que se despedir da menina em breve, e também a sensação de se reencontrar com ela depois.
É melhor não pensar nisso agora, deveria voltar à missão. Assim pensou e saiu pelas ruas até encontrar um beco onde ninguém o visse, e ali se transportou ao plano espiritual. Rapidamente, a noite caiu na cidade, e Profany não percebeu. No plano espiritual, a presença de Samanta o guiava até a carceragem da Polícia. Ainda naquele plano, podia ver Samanta. Não seu corpo, mas a áurea vermelha que era sua alma. E via algo mais...
Assim como na sua viagem temporal, Profany se deparou com os anjos de Samanta. Agora em seu plano de existência, viu face a face o anjo-contrário triunfante e o anjo da guarda derrotado. O primeiro era como uma fera, com escamas de réptil sob um corpo humano e asas de morcego, chifres de bode e língua de serpente. Um dos muitos anjos que se afastaram da face do Criador. Um demônio. O segundo era como uma bela mulher, de cabelos dourados e olhos como turquesas. Armada com uma lança e um escudo, porém sendo esmagada pelo demônio e com pranto de dor.
Profany quis ajudar o anjo. O demônio se pôs em sua frente para que lutassem. Sua força maligna era aterradora e Profany se via ameaçado. Uma cólera exaltava do anjo-contrário e um batalhão de outros demônios o cercou. Profany era mais uma vez vítima do mal que protege seus alvos. E agora no plano espiritual, esse mal era muito maior. Deveria ter fé para vencê-lo, lembrou. Mas nem a fé de um justo homem era suficiente. Então ouviu o sofrido anjo da guarda entoar um cântico. Uma voz fraca e abafada entrava no coração de Profany. Era um cântico belo, um pedido daquele anjo que lhe suplicava ajuda. E a forma de ajudar era cumprindo sua missão.
Como que se fosse banido, Profany saiu do plano espiritual e estava no chão na cela de Samanta. Ela não estava mais lá. Era hora do banho. Porém a energia dos anjos ainda era fortíssima naquele recinto. Era a hora... estava próximo o momento de por um fim da vilania de Samanta. Profany sacou sua arma e aguardou. Num instante apenas, olhou uma foto. Nela estava Samanta com seu namorado Júlio.
Foram Júlio e seu irmão os executores do crime. O sangue do casal Ritchtoviski estava nas mãos deles. E se... eles também merecessem a morte? E se o mal que habitava neles fosse ainda maior? Profany decidiu deixar Samanta para depois. Mais uma vez migrou para o plano dos espíritos e seguiu a presença de Júlio. Todavia, o mal que pairava sobre ele não era grande. Havia harmonia entre as forças do bem e do mal.
Profany observava isso do plano espiritual, e ficou confuso em ver que o executor de um crime não carregava a essência do mal. Por tanto, feri-lo, seria uma falta irreparável na missão de Profany. Ademais, sentiu a família de Júlio chorar pelo crime de seu filho. Via ali o quanto sofria uma mãe e um pai ao verem seus dois filhos praticarem tal ato. E se questionou se caberia neles o perdão.
Se couber, não era Profany quem devesse perdoá-los, mas Deus. No entanto, ele sentiu vontade de amparar aquela mãe e aquele pai que hoje chora. Porém não poderia fazê-lo agora, então resolveu retornar a cela de Samanta.
Lá estava ela. Aflita, como se soubesse o que lhe esperava. Tão desesperada que era digna de pena. Ajoelhada aos pés da cama, fingia rezar. Seu coração enegrecido não podia sintonizar qualquer oração. Profany se materializou de fronte a parede atrás dela, de modo que ela não o visse. Ainda a olhou em sua melancolia por um instante. O estalar do gatilho do revolver fez Samanta atentar para sua presença:
— Q-quem... é você? — Disse com medo, mas também calma. Era de se esperar que gritasse, pois um homem sombrio estava em sua cela aramado. Mas não gritou.
— Eu sou... — Respondia Profany, ainda procurando a melhor resposta: — Sou seu destino.
— O que você vai fazer?! — Samanta começa a chorar.
— Você deve morrer.
— Por quê?!
— Para o bem de todos... Para que não haja mais sofrimento... Nem para os seus... nem para você.
— Eu já fui presa! Já me condenaram! Quem é você pra me dar essa sentença? Quem é você para me julgar?!
— Eu não julgo... Seu crime já teve julgamento. Sou apenas o executor. Não gostaria de estar fazendo isso... mas devo.
— Em nome de Deus! quem é você?
— Não fale no nome de Deus. Você não é digna de seu perdão. Seu crime o fez chorar. — Falava Profany enquanto se aproximava. O cenário até então calmo, se torna cheio das trevas que Samanta cria. Isso repulsa Profany que é atingido pelos anjos-contrários: — Você... você...!!
— O que houve? — Disse Samanta se levantando. — Onde está seu Deus agora? — Falava como se fosse totalmente tomada pelas trevas. Profany era ferido pela força negativa e caiu de joelhos. Sentia como se seu corpo fosse esmagado entre os dedos do demônio.
Samanta sentia prazer em ver aquele prepotente ajoelhar-se aos seus pés. Isso a dava forças. A treva a alimentava, e com isso seu anjo-contrário ficava cada vez mais forte. Profany, apesar de tentar reagir com sua fé, era cada vez mais vitimado pela áurea tenebrosa. Então ouviu um sussurro... um sussurro que foi crescendo e se tornou um canto de lamento...
Era o anjo da guarda de Samanta que entoava seu cântico de súplica. Profany ouviu o chamado, e com a força daquele pobre anjo oprimido, ele encontrou um alicerce que precisava para aumentar sua fé. E com a ajuda daquele anjo sofrido, Profany ergueu-se novamente, resistindo ao maligno poder do anjo-contrário:
— Por quê? — Disse. — Por que se voltou contra a vida? Por que se entregou a um mundo de vícios e ódio... quando poderia ser feliz e ter o verdadeiro amor no coração? — Profany perguntava enquanto apontava a arma para Samanta. Ela, assustada com a reação dele, novamente se fechou em dor e rancor, agora com um estranho e áspero medo:
— E-eu... Não sei... — Após a resposta se fez em prantos.
— Não... Pare de chorar e olhe pra mim! — Disse Profany com a voz seca. — Não tente se fazer de frágil, não tente me iludir a fim de obter minha piedade. Você é um monstro... Um monstro que sempre esteve oculto sob uma casca de requinte e fragilidade. Um monstro que só precisava de um momento oportuno para se revelar! — Ao ouvir isso, Samanta cessou o choro e seus olhos se tornaram frios. O ódio tomou conta de seu ser e ela partiu para cima de Profany:
— Seu desgraçado! — Dizia caindo sobre Profany com violência: — Desgraçado!! Seu...! — Um tiro lhe acerta o coração. — Seu... Não...! — Samanta cai nos braços de Profany enquanto sua vida se esvai lentamente.
Profany a ampara. Enquanto ela recebe o descanso para a alma, as trevas em sua volta se dissipam. Profany ouve os lamentos do anjo-contrário que cai em derrota. Logo, ouve-se também um cântico de louvor que procede da boca do anjo da guarda, agora livre e fortalecido. Profany deita Samanta sobre a cama. Vê o seu sangue em suas mãos e a arma quente do disparo. Deixa a arma sobre o peito de Samanta, entre suas mãos cruzadas. Como não haveria de ser, Melod, o anjo da morte, surge aos olhos de Profany:
— Salve Profaniel! Que a paz esteja convosco!
— Paz... É... Ela encontrou a paz. — Respondeu Profany, ainda decepcionado, pois começava a entender quão triste é a vida de quem habita na escuridão. Nesse instante, após Melod ir-se, Profany ouviu passos e vozes. Rapidamente desapareceu da cela. Então as carcereiras vieram:
— Santo Deus! Ela está morta! — Disse uma enquanto procurava as chaves da cela. Após abrir a porta, esta e mais uma outra entram.
— Veja a arma... Será que foi suicídio?
— Só pode ser... quem haveria de entrar aqui sem que nós o víssemos? — Este caso ainda repercutiria na mídia nas próximas horas e durante um bom tempo. Mas para Profany, isto não lhe interessava. O anjo caído voltou ao topo do prédio em construção onde se pôs a pensar nos fatos.
Refletiu sobre o que vira. Que tamanha força era essa que fez uma criança inocente se transformar em um monstro capaz de eliminar quem lhe trouxe ao mundo? Seria Samanta vítima do mal que a possuiu ou ela carrega toda a culpa por seus atos? Certamente a resposta é a segunda opção. Ora são os homens dotados do livre arbítrio, do direito e da capacidade de escolher. Nem o bem e nem mal lhe são impostos a força. Cabe a cada um decidir por que caminho seguir.
Não seria lógico seguir o caminho do bem, pois a recompensa no futuro seria melhor? Não é tão simples. O mal é sedutor, oferece “recompensas” no presente, e não no futuro. Ele ilude com prazeres mundanos e aparências. Mas destrói a alma, que é eterna. Diz o ditado que as portas do Inferno são largas e luxuosas enquanto a porta do Paraíso é estreita e de difícil acesso. E essa é a total verdade.
Profany não sabe o que pensar. Não sabe se sente alívio, se sente pena, se sente ódio. Só sabe que agora, duas almas perdidas encontrarão a paz. Sabe que a dor causada por Samanta não cicatrizará tão cedo. Mesmo com sua morte, ainda ecoará pelo mundo um vestígio de sua imundícia, e que outros como ela surgirão em sua frente. Quantos inocentes ainda teriam que sofrer? Profany se entristeceu por eles...
— Amigo Profany... — Disse Noriel ao se aproximar dele. — Está infeliz?
— Não sei, Noriel. Temo por muitos que não poderei ajudar... E se eu não chegar a tempo da próxima vez? Por que Deus permite que pessoas do bem sofram pelas mãos de pessoas do mal?
— É uma questão de difícil explicação. Não era esse o plano do Altíssimo quando fez os Céus e Terra. Originalmente, o ser humano deveria viver eternamente em harmonia.
— Então tudo fugiu ao controle de Deus?
— Não. Pois Deus não fez o homem para ser seu escravo, lhe deu a capacidade de evoluir e decidir entre o certo e o errado. E Ele é a segurança de quem escolhe o certo. De que adianta ter fé senão para testá-la? Não basta dizer: “O Senhor é meu Deus”, se não seguir seus preceitos e leis. Veja Profany, e lhe trouxe algo. — Noriel faz surgir uma Bíblia. — Tome, ajudará você a compreender.
— Já vi este livro antes. O que é?
— Aqui está a história do povo de Deus. Suas leis, palavras de esperança, profecias e a vida do Messias. Escrita durante séculos por muitas mãos, mas a essência do que aqui está escrito, procede diretamente de Deus. — Profany folheia o livro em silêncio...
— Qual a certeza que temos, de que nesse punhado de papel com manchas de tinta, está a verdade que procuramos?
— A verdade não está no papel e na tinta, pois estes são coisas do mundo... A verdade está no coração de quem escuta estas palavras e as guarda. Preciso ir agora... atente-se Profany... É chegada a hora de mudar de ares...
— Eu percebi isso...
— Então até mais. Fique em paz. — Noriel se vai. Profany ainda observa a Bíblia por alguns instantes. Depois se levanta dali e vai até a rua de Letícia. Já era noite alta e a garota dormia. Profany se materializou ao seu lado. Observou a pureza de seu sono e mais uma vez sentiu a presença de seu anjo da guarda:
— Apareça... — Disse em voz baixa, para não acordar a menina. Chama o anjo que se escondia aos seus olhos. Que mistério poderia carregar um filho de Deus? E dessa vez, seu pedido foi atendido. O anjo resplandeceu a sua frente. Era como uma bela mulher de cabelos castanhos, lisos e longos e olhos verdes. Tinha um olhar plácido, porém entristecido. Profany sentia em sua presença uma força que lembrava Kate. — Por quê?! — Balbuciou com grande dúvida.
O anjo não respondeu. Apenas abençoou Letícia, olhou com emoção para Profany, e se foi. Vendo que essas questões a respeito da ligação entre Letícia e Kate teriam que ficar para um outro momento. Mas quando? Era hora de deixar essa cidade e combater a iniqüidade em outros locais. Era hora de se despedir de Letícia.
Profany levemente acariciou seus cabelos enquanto ela sorria em algum sonho que estava tendo. Sentiu vir uma lágrima nos olhos, então sem mais demoras se foi. Letícia estava em paz no mundo dos sonhos, na companhia de seu anjo da guarda. Demoraria ainda o sol nascer para que ela sentisse a falta de seu novo e misterioso amigo.
Este foi, sem dúvida, um dia triste na vida de Profany. Caminhando pelas ruas ele levava o coração amargurado. Mesmo tendo feito um desabafo no início do dia, ainda havia muitas frustrações a lhe consumir. Mas ele precisa seguir em sua missão. Seguir para outros lugares do mundo, para em cada parada se deparar com um caso de vilania e crueldade. É seu legado. É sua missão.

A seguir: A primeira mini-série após “Contos de Profany”. Não perca a instigante estréia de “O deserto”!

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