Profany
O Anjo da Morte

Em

O DESERTO
Episódio 7:
– “Prelúdio – parte I”

Por: Anderson Oliveira


Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
— Larga ele!
— Cala a boca... eu sei o que tô fazendo!!
— Tu não sabe nada, porra! Larga ele! Ele vai morrer!
— Quem vai morrer é você se não fechar esse bico e sair do meu caminho!
Lucas e Jonas discutem. Após uma noitada regada a muita cerveja, músicas e garotas, os dois amigos saíram com o carro pelas ruas da cidade. Lucas estava tenso. De uns tempos pra cá o temperamento do jovem universitário havia mudado. Do rapaz trabalhador e esforçado foi se tornando um vagabundo. Jonas percebia isso, mas resolvera não se meter na vida do amigo que conhece desde a infância.
Quando passeavam de carro, encontraram um entre muitos cães que vivem pelas ruas. O pobre animal estava com fome e frio. Revirava as latas de lixo em busca de restos de comida enquanto a sarna tomava conta do seu corpo esquelético. Outro cachorro entre muitos que andam largados pelas ruas, a própria sorte. Porém a sorte deste animal não foi muito boa.
Lucas parou o carro. Com um sinistro brilho no olhar resolveu pegar o cão na base de chutes e pancadas e o amarrou numa corda. Jonas se revoltou com a atitude, mas era incapaz de deter seu amigo. Lucas amarrou o cachorro ao carro:
— Agora vamos dar um passeio com nosso amiguinho! — Fala sarcasticamente enquanto engata a primeira marcha e sai com o carro... arrastando o pobre cão pelo asfalto.
— Pára com isso, Lucas! Por que você tá fazendo isso?!
— Porque é divertido!! Olha só!! Olha como ele grita!! — Lucas se diverte. O cão é puxado pelo pescoço, suas patas e costas se dilaceram com o atrito da rua. Seu sangue e partes de sua carcaça deixam um rastro pelas ruas e avenidas. Seus ossos, ao tocarem o chão, riscam como giz. Tudo para o prazer de Lucas.
— Já chega, Lucas! Ele tá morto! Ele tá morto!!
— Não! Não chega não!! Eu quero mais!! Olha outro bicho lá na frente!
— Não cara! Eu não vou permitir...
— Senão o quê, otário? Já sei... acho que eu vou é amarrar você lá trás! Que tal?!
As feições de Lucas são como de um monstro faminto. Um desejo forte o motiva a prosseguir. Jonas, mais uma vez, se cala diante da atitude do amigo. Apesar das boas intenções de Jonas, ele é omisso. Pessoas omissas também cometem um grande crime. Não tão grave quando o crime que Lucas comete, mas de igual vilania.
Agora não restam mais do que um pedaço do couro do animal e um pedaço do seu crânio na ponta da corda. O carro ainda segue em alta velocidade por mais alguns minutos. No entanto, a justiça não fugiria na calada da noite, pelo menos não esta noite...
Lucas e Jonas foram presos. Acusados de cometerem o crime bárbaro de torturar e matar um animal. Lucas se apresenta sério e calado na delegacia. Jonas chora em desespero. Ele pede a presença de sua mãe enquanto repete sem parar que é inocente. Em pouco tempo, uma comoção popular se espalha pelo país, pelo menos naqueles que têm sentimentos.
— Estes dois foram pegos em flagrante! O mais calado dirigia em alta velocidade e ainda estava meio embriagado. Os canalhas ainda tiveram a idéia de pegar um vira-lata que não os fazia mal algum e o amarraram ao carro e o arrastaram até restarem só a carcaça! — Explica um policial a alguém pelo telefone. — Só alguém que tem merda na cabeça pra fazer uma coisa dessa!
— E daí? É só um cachorro, porra! Parece que foi um filho teu! — Diz Lucas no depoimento, bastante alterado.
— Meça suas palavras, seu inútil!! — Responde o delegado. — Tinha que ser mais um playboy metido e que o papai paga as contas! Lembra uma vez quando um grupo de jovens igual a vocês tacou fogo em um índio? Você iria dizer que “era só um índio”?
— Diria sim! Era só um índio desgraçado que vem com aquelas dançinhas de boiola e com a bunda de fora! E eu faria a mesma coisa! — Diz Lucas.
— Pra mim já tá mais do que o suficiente! Joguem esse sem vergonha na cadeia!
— Mas delegado, e eu? — Fala Jonas com os olhos inchados de tanto chorar.
— E esse aqui também!
— Mas eu tentei impedir que ele fizesse isso!
— Tentou? Vi muito que você tentou! Agora chega... tirem os dois da minha frente!
Poucas pessoas são justas como o delegado Queiroz. Um homem temente a Deus, cumpridor dos bons costumes e da ordem. Sob sua tutela, a delegacia já encaminhou mais de trezentos criminosos para um julgamento rápido.
Enquanto os dois jovens eram levados às celas, o delegado, num curto espaço de descanso, recosta a cabeça sobre a cadeira, fecha os olhos e pensa em tantas coisas que já viu passar por sua mesa. Quisera ele por todos os bandidos e criminosos atrás de suas grades, mas ele sabe que isso não é possível. Mesmo assim está tranqüilo, pois faz verdadeiramente o que pode.
Não muito longe dali, uma figura estranha à vista caminha entre as pessoas pelo centro daquela cidade. Faz frio, mas ele anda de peito aberto. Seu casaco preto, com golas diferentes do habitual é seu único agasalho. Suas mangas ele não traz, no entanto, arriadas, como é seu costume. A fim de esconder as chagas que tem nos pulsos, para que alguém não se assuste.
Profany. Outrora cantava louvores na presença do Altíssimo. Ora caiu dos Céus e viveu ao lado de uma mulher que amava, mas fatidicamente faleceu ao dar a luz ao seu filho, também morto. Ora foi lançado ao Inferno e lá padeceu por duzentos e nove anos. Agora vaga novamente sobre a Terra com uma missão.
Uma missão que muitos julgariam radical e terrível. Mas quem são eles para julgar? O próprio Profany, em alguns momentos, já caiu em desânimo por ter de fazer o que precisa fazer. Matar cento e vinte e cinco pessoas que espalham o mal pelo mundo. Cento e vinte e duas agora, pois já deu cabo de três.
Mas para realizar esta missão, o anjo da morte ainda precisa cumprir uma série de pequenas missões, como reencontrar sua fé. Fé em Deus, em si mesmo, e na humanidade. E também superar os golpes que o mundo lhe dá. Recentemente teve que deixar para trás uma amizade singela e pura. A menina Letícia, a quem até confessou sua verdadeira natureza. Isso feriu seu coração.
Hoje ele veio ao Sul. Seguindo seu novo alvo e viajando pelo caminho sem distâncias. Andando pelas ruas da cidade pára em frente a uma banca de jornais onde vê a manchete: “Universitários presos por torturarem um cão de rua”. O jornaleiro vê aquele homem sinistro e delicadamente se aproxima:
— Vai quer jornal, amigo? — Profany o olha. Fita seu olhar discriminador por um instante enquanto cerra as sobrancelhas:
— Não. Já vi o que queria ver. — Deu as costas, e se foi.
Na carceragem da delegacia, Jonas recebe sua mãe. A senhora aflita por ver seu filho naquela situação, se apega aos seus credos e a sua fé. Jonas chora debruçado na mesa onde recebe visitas. A mãe tem a certeza de que o único crime de seu filho foi não ter coragem para impedir aquele ato brutal:
— Fica calmo, meu filho! Quem não tem o que temer não precisa se desesperar!
— A senhora ainda acredita na justiça?!
— Na justiça dos homens, não muito, mas na justiça de Deus... essa é infalível!
— Onde tá Deus agora mãe?! Onde?!
— Não fala isso filho! Fica em paz... a justiça tarda, mas não falha! — Esta mulher tem fé. E também sabe que seu filho não é digno de pena... não agora. Lucas senta sobre sua cama de prisão. Despojado, despreocupado, como se o que tivesse feito fora algo normal... como se fosse inocente.
Cai à noite. O delegado e mais um escrivão ficam de plantão. Na carceragem, só um vigia cuida dos poucos presos. Alguns destes, já ali por meses, graças a brigas de bar, furtos e até homicídios, viram para a parede e dormem. Um ou dois lêem um livro. Jonas reza. Conselho de sua mãe. Ele está na mesma cela do amigo. Lucas ainda está na mesma postura confiante. Entre um Pai Nosso e outro, Jonas o olha e pensa como seu amigo se tornou naquilo.
A resposta não interessa. Não para Profany. O anjo da morte se materializa dentro da cela, de pé, entre os dois amigos. Jonas se levanta assustado ao ver aquele homem estranho, ainda recitando sua oração. Lucas olha para Profany, dá um sorriso e fecha os olhos. Logos os abre novamente e constada que não está sonhado. Sem medo se põe de pé e encara Profany:
— Qual é, loiro? Tá preso também? — Diz rodeando Profany, o medindo de cima a baixo.
— Não.
— Gostei da roupa! É o novo uniforme dos cana?
— Também não...
— Por que você tá aqui? Matou alguém?
— É... matei alguns... Mas não estou aqui por isso...
— Olha só... o cara é um serial killer! Mas eu não tenho medo de ti não, seu cuzão! — Lucas olha nos olhos de Profany. — É melhor você ir embora... aqui só tem lugar pra mim e pro meu irmão Jonas!
— Eu vou embora...
— Ótimo!
— Depois de te matar! — De ímpeto, Profany levou as mãos ao pescoço de Lucas e o ergueu.
— S-socorro! S-socorro!! — Tenta dizer Lucas, mas sua traquéia é comprimida pela força descomunal de Profany. Jonas vê a cena e estremece:
— Meu Deus! Ele vai matar o Lucas! Não vou ser culpado por me omitir outra vez! — Jonas pula nas costas de Profany: — Larga ele! Está matando ele!
— Essa é a idéia! — Profany solta Lucas que cai no chão e respira ofegante. Depois tira Jonas de cima de si e o joga sobre a cama: — Não tenha medo... — Com essas palavras, Jonas ficou imóvel.
Lucas se esforça em recuperar o ar. Antes de voltar a si, Profany o puxa pelos cabelos, pega pelo seu antebraço e o joga contra a parede da cela. Mais uma vez Lucas cai sobre o chão, agora com escoriações. Novamente Profany o pega, com uma mão nos cabelos e outra no cinto, e com violência o esfrega contra a parede, batendo sua cabeça no teto:
— P-pára! M-me s-solta!! — Diz Lucas em desespero.
— Por que eu te soltaria?
— P-piedade...!
— Você teve piedade quando arrastou um pobre cão pelas ruas?! Você teve piedade?! Você não merece isso... — Profany o lança contra o sanitário, metendo sua cabeça neste e, enquanto o afoga com a água misturada a urina e fezes, pisa suas costas com força. Logo o sangue de Lucas integra a mistura no sanitário. Jonas olha tudo sem reagir. Profany pára. Lucas ainda se esforça para reagir, então Profany o puxa pelo pé e parte em duas sua canela, como se fosse um graveto.
— Aaaaaaaaaahhhhhhh!!!!!! — O grito de Lucas chama a atenção do delegado:
— Ouviu isso? Tem algo acontecendo no xadrez! Rápido...! — Ele e o escrivão vão até a carceragem onde encontram o vigia dormindo: — Acorda, homem! Não tá ouvindo que tem alguém gritando nas celas?!
— Desculpe, senhor... Não ouvi nada!
— Estou cercado por incompetentes! Abra logo essa grade!
— S-sim, senhor! — O vigia procura a chave no molho. Enquanto Lucas é torturado pela justiça de Profany. Agora seus braços são estraçalhados e logo em seguida seus dentes se perdem contra a parede...
— Abra logo essa porra, soldado! — Diz o delegado em desespero.
— Aqui está a chave! Está aqui...! — Diz o vigia enquanto abre a grade que separa a carceragem da delegacia. Após aberta, o delegado entra e segue os barulhos dos gritos.
— Santo Deus! — Exclama ao ver um homem alto, loiro e de preto esfolando o prisioneiro. Profany, ao ver a presença dos policiais, larga Lucas no chão, fazendo sua cabeça bater com força no piso, e em seguida pisa sobre seu crânio.
— Está feito. — Dizendo isso, Profany desaparece do plano material, para o total espanto dos policiais e de Jonas, que encolhido na cama, presenciou toda a cena.
Lucas ainda viveria por mais uns minutos. Tempo suficiente para refletir sobre seu ato demoníaco. Mas era pra tanto? Por ter sido violento contra um simples animal, merecia semelhante morte? Se ainda fosse uma pessoa... um filho de Deus...
Animais também são filhos de Deus. Toda a criatura que respira, que vive sob o sol, nas águas, na terra e no céu... toda criatura vivente é obra de Deus, e merece o mesmo respeito. Oxalá o bicho homem fosse como um cachorro...
Nesse mesmo dia, em algum lugar na África, uma criança recém-nascida foi abandonada pela mãe em uma caixa de papelão nas ruas. Uma cadela vira-lata ouviu o choro fraco do bebê e o achou, o pegou, e o esquentou com seu calor. Horas depois médicos acharam e salvaram a criança. Se a cadela não tivesse cuidado dela, estaria morta.
Uma simples cadela, um animal “irracional” salvou a vida de um ser humano inocente! Salvou o filhote de quem a maltrata, de quem a chuta, de quem a cospe... Uma simples cadela teve compaixão pelo ser humano frágil...
O homem, um ser “racional” que destrói e fere a natureza... Seria ele capaz de fazer o que essa cadela fez? Graças a Deus, a maioria das pessoas seria. Mas Lucas não. Pelo contrário... E por isso mereceu a morte pelas mãos de Profany. Tudo isso, o anjo da morte refletiu em seu coração enquanto via o sol nascer sentado sobre um gramado:
— Há mais sabedoria nos cantos dos pássaros, no olhar dos cães, no carinho dos gatos... do que no cérebro do homem... — Diz Noriel que chegou ao seu lado. Profany o olhou:
— É verdade... Mas gostaria que fosse diferente... assim não teria o sangue daquele rapaz nas minhas mãos...
— Só será diferente quando o homem olhar para dentro de si e perceber o quanto é pequeno diante disso tudo... perceber que não é o dono do mundo...
— E esse dia vai chegar?
— Só Deus sabe... Mas de uma coisa pode ter certeza: o homem não pode contra a força da natureza...
— Como assim?
— O homem pode tentar destruir as matas, os rios, os campos... Mas a natureza é capaz de se regenerar e banir aquilo que a incomoda... Antes do homem acabar com o mundo, o mundo acaba com o homem... — Enquanto fala, Noriel sente um distúrbio perto deles.
— O que foi, Noriel?
— Sinto muito, Profany... Com nossa conversa não tive tempo de te alertar... e agora sinto-o forte... não posso mais ficar aqui... Cuidado, amigo... — Noriel desaparece. Profany se assusta. Se levanta e o procura ao redor, mas nada vê.
O sol nasce de uma forma diferente. Seus raios incidem na atmosfera e junto ao ar frio, formando uma coloração de um vermelho intenso. Como se um mar de sangue cobrisse o céu. Profany padece no campo em confusão. Então um forte vento o pega de surpresa. O vento quase o derruba e faz os pássaros partirem em retirada.
Um frio gélido e tenebroso envolve Profany. Como se os raios de sol fossem lâminas a cortar sua pele ele cai em dor e agonia. Então sente sua presença. Com seus sentidos especiais, sente a áurea que o envolve. Uma áurea escura e cheia do mais puro ódio. Sua mente é tomada por uma série de pensamentos distorcidos e sem sentido:
— O quê... O que está havendo?! — Diz enquanto põe as mãos na cabeça e a encosta no chão. — Q-quem está aí?!
Escuridão. O campo onde estava e o céu escarlate sumiram. Profany está na mais completa escuridão. A dor e o frio passam. Ainda confuso, ele se levanta e fica de pé nas trevas. A sua frente vê um vulto na distância. Um único ponto vermelho numa imensidão escura. O vulto se aproxima, e sua presença traz novamente a dor e o frio. A poucos metros de Profany, num piscar de olhos, as trevas se convertem em luz. Um branco tão intenso que obriga Profany a fechar os olhos. Mas ele insiste em ver quem é a figura que se aproxima dele.
O vulto então toma forma: parece um homem, cabelos brancos e na altura dos joelhos. Vestido com um terno, terno igual que Profany usa, e os anjos usam, mas na cor vermelha. O rosto do homem é jovial, sério, com olhos penetrantes e assustadores. Suas mãos são perfeitas... Ele chega a meio metro de Profany, o olha com ironia e toma a palavra:
— Este é Profaniel...? Que lamentável visão...
— Q-quem é você...?! — Diz Profany ainda com muita dor.
— Eu sou o primeiro entre todos... E tenho assuntos a tratar com você...
— S-seu... nome...
— Bah... nomes? Tenho muitos... Mas pode me chamar de... Lúcifer.

Continua...

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