Profany
O Anjo da Morte

Em

O DESERTO
Episódio 9:
– “O Espelho – parte III”

Por: Anderson Oliveira


Não era a sua casa. A mesma casa onde Kate, após um difícil parto, faleceu. Era a casa de campo da família Goodsmith, nos arredores de Londres. O que Profaniel recorda... a morte de Kate, não aconteceu. O parto foi sofrido, sim, mas ela e criança foram amparadas pela parteira e seus chás medicinais. Para melhor se resguardar, Kate optou por passar um tempo na casa de campo. E aqui estão eles.
Já passava dois meses desde o nascimento de Miguel. Kate já estava reabilitada e tão logo eles retornariam à corte. Hoje, Profaniel acordou de um longo pesadelo. Agora pela tarde, saiu para passear com sua família num dia fresco e belo. Kate leva o bebê, o protegendo com uma sombrinha enquanto Profaniel segue a seu lado puxando seu corcel pelo arreio.
— Estou preocupada, Profaniel. Com minha enfermidade, não tivemos tempo para batizar nosso filho. Fará dois meses de seu nascimento e não podemos adiar mais isso. — Diz Kate seguindo pelo caminho de pedrinhas no retorno a casa.
— Dois meses?! — Ainda se espantava Profaniel, pois não havia nele recordação alguma desses dois meses na casa de campo. No entanto, a presença de Kate ao seu lado lhe servia de conforto e isso já bastava para ele. — Pois o iremos batizar logo! Assim que retornarmos a Londres, falarei com os padres amigos meus.
— Que maravilha! Mandarei reunir toda a corte e daremos uma festa! Assim também poderei rever nossos amigos! Lembra-se de Eduard, sobrinho de Joseph?
— O que tem?
— Madalene mandou uma carta e nela relatou que ele está em Londres com sua esposa escocesa. Sei que há alguma rivalidade entre vocês, mas seria bom convida-lo para a festa, como prova de amizade.
— Faça isso. Faça como desejar! — Diz Profaniel sorrindo e, em seguida, beija sua esposa. De volta a casa, deixa o cavalo no estábulo e pára um instante no jardim, enquanto Kate entra com o menino. Profaniel se senta sobre um tronco cortado e observa o pôr do sol: — Ainda não acredito! Está tudo perfeitamente bem...! Noriel! Noriel, meu amigo... sei que não posso vê-lo e nem ouvi-lo, mas gostaria que dissesse a Deus que agradeço por tudo isso!
Depois, ao entrar na casa, foi até sua suíte onde Kate, amparada por uma criada, amamentava o bebê. Já caia a noite e outra criada acendia os candelabros. No quarto havia um grande espelho, com uma moldura belíssima de puro ouro. Profaniel parou um instante diante do espelho e observou seu rosto. Aquela figura esquelética e abatida que sonhara, de longe passava pela imagem de um belo homem, forte e galante.
— Vocês duas... podem sair... — Disse ele às criadas, que prontamente se retiram e o deixaram a sós com Kate e o bebê. — Ele é lindo! — Exclamou olhando seu filho, que agora pegava no sono.
— É sim! — Diz Kate pondo o bebê no berço.
— E teve a quem puxar! — Profaniel toca o rosto de Kate, que se turva diante do galanteio do marido. — Meu Deus, Kate... eu senti tanta saudade! — Ele a abraça forte e afaga seus cabelos. A jovem senhora, confusa, estranha a reação do marido:
— Parece que não me vê há anos! Refere-se ao resguardo? Acho que ele já está de bom tamanho... não acha? — Se entregando ao forte desejo que atrai ambos, Kate beija e toca Profaniel como nunca o havia tocado. De forma totalmente nova, se entregou a ele com todo seu amor. Eles não jantariam essa noite...
Amanhece. Profaniel acorda com certo temor. Assim como acordou de um sonho para sua vida, seria talvez que, ao acordar nesta manhã, constataria que o sonho era a realidade? Então ao despertar receou em abrir os olhos. E se acordasse no sereno frio de uma cidade futurística, com o corpo deformado e a certeza de que Kate está...? Não... Não quer pensar nisso. Mas, para sua sorte, ainda estava lá. Ela dormia em seus braços.
Antes de levantar, observou seu lindo rosto por longos minutos. Pensou quão maior é seu amor por aquela mulher, que até desistiu dos Céus para tê-la todos os dias como a tem hoje. Ele sabe que ele fora um anjo, mas sua memória sobre esse assunto era algo muito vago... não passava de pequenas imagens distorcidas. Resolveu esquecer. E se levantou.
Na sala de jantar, quantas maravilhas! Mal se lembrava o sabor que tinha uma suculenta maçã, e um pão com frutas cristalizadas quentinho. Seu paladar se deliciava com todos os prazeres daquele café da manhã como nunca tinha provado. No entanto, teve que se contentar, pois entrava pela porta um criado:
— Mestre Profaniel! Venho avisar que os cavalos já estão prontos e a carruagem os espera. Devo mandar os homens levarem a bagagem?
— Oh... Sim, bom homem! — Já era hora de deixar aquele paraíso e retornar a sua mansão na corte. Tão logo estavam ele e Kate,mais o menino, na carruagem a caminho de Londres.
— Será ótimo retornar a nossa casa... Não é, querido? — Pergunta Kate, entre uma conversa e outra. Profaniel, observando a paisagem pensativo, vacilou a responder, mas após alguns segundos disse:
— Sim... Será muito bom... — Não era a total verdade sua resposta. Daquela mansão ele guarda estranhas impressões. Recordações de muita dor e sofrimento dentro daquelas paredes. Mas horas depois de saírem das colinas, eles entram pelas portas da mansão Goodsmith.
E ela está esplendorosa. O pelotão de empregados recepciona o casal no hall de entrada. Cortinas enfeitam as janelas e fitas e castiçais se espalham pelos cantos, entre as pinturas de Rembrandt e os bustos de bronze. A casa resplandecia luz e aconchego. Bem diferente da impressão que Profaniel trazia. O que lhe pareceu muito bom.
— Venha querido, me ajude a subir até nosso quarto! — Chamou Kate enquanto ele observava os cantos da casa. Tão logo subiram a escadaria e entraram no quarto. O mesmo quarto que lhe trazia terríveis recordações... estava lindo, iluminado e exalando um delicioso aroma de jasmim. — Estou exalta! Preciso me refrescar! — Continuava Kate, desatando seu espartilho e se livrando dos sapatos. Profaniel sentia muita alegria em ver que sua vida está absolutamente normal.
Dois dias depois, o batizado do pequeno Miguel. Uma cerimônia simples na capela que Profaniel tanto gosta. Onde ele ensinava aos fiéis com sua doutrina e onde coisas a ele obscuras se sucederam. Como padrinhos, o Conde Williams e sua esposa Madalene. Sua filha, a pequena Catherine tinha agora dez anos, uma linda garotinha. Profaniel sente um enorme carinho por essa garota, sem se lembrar por que. Após a cerimônia, a esperada festa para toda a corte. Estavam lá muitas pessoas importantes, além dos amigos da família.
— As notícias da França não são nada boas... Aquela revolução está acabando com o país! — Comenta o conde Williams numa roda de homens, daquela que Profaniel faz parte, mesmo não se importando com os assuntos sobre política e economia. — E você, Profaniel! Está feliz?
— Como não estaria?! Tenho uma linda esposa e meu filho cresce forte e saudável!!
— Realmente, amigo. Você é um homem de sorte como há muito tempo não vejo! Sua vida é perfeita! — Comentou o conde. Nisso, Eduard, seu sobrinho, se aproximava com sua esposa.
— Bons dias, meus amigos! — Saúda o rapaz. — Quero que conheçam minha esposa, Elizabeth! — Uma bela moça, de cabelos encaracolados e loiros. Ela cumprimenta os cavalheiros de maneira discreta.
— Meu sobrinho! Que bom que aceitou o convite! — Diz Williams sorrindo.
— Verdade, meu tio. Não há inimizade entre nós, não é, Profaniel? Eu era muito imaturo naquela época e acho que me excedi nas emoções! Além disso, encontrei meu amor na Escócia e hoje sou o homem mais feliz do mundo!
— E eu fico feliz com isso, Eduard... — Profaniel estende a mão. Eduard, sem desfazer seu sorrido, cumprimenta o antigo rival pela conquista de Kate. Profaniel sorri igualmente.
Após alguns minutos ainda na roda, ele se afasta e vai até Kate, que segura Miguel, rodeada pelas senhoras e outras crianças. Nisso, Profaniel se atenta para a menina Catherine. A criança o faz recordar de outra menina, um pouco diferente dela, um pouco mais velha, mas que de alguma forma atrai seus pensamentos.
Ao se aprofundar na lembrança daquela menina, ele parece sentir sua presença atrás dele. Subitamente se vira, mas vê Kate. Ele não se recorda do nome da garota, pois está vago naquele sonho que ele tenta esquecer. Mas sabe que sente um forte apreço por ela, assim como sente um carinho inexplicável pela pequena Catherine.
A festa corria ótima. Os convidados estavam felizes com a hospitalidade do casal. Os comes e bebes agradavam a todos e a música embalava os discursos diversos enquanto, entre uma conversa e outra, se ouvia um “parabéns”, seja pelo filho, pela casa, pela festa, pela vida perfeita. E assim foi até a despedida.
No dia seguinte, um sábado, Profaniel foi à igreja. Havia uma missa ocorrendo e ele se sentou em um dos bancos e atentava para as palavras do padre:
— Eis a leitura do Evangelho: “Em seguida, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo demônio. Jejuou quarenta dias e quarenta noites. Depois, teve fome. O tentador aproximou-se dele e lhe disse: ‘Se és Filho de Deus, ordena que estas pedras se tornem pães’. Jesus respondeu: ‘Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus’”*.
Profaniel, que de alguma forma, conhecia todos os textos bíblicos de forma formidável, conturbou-se ao ouvir aquela passagem. Sentia em seu peito um aperto dolorido, como se algo errado estivesse acontecendo a sua volta e ele não sabia o que poderia ser. Lembrou-se de seu sonho, mas a cada dia os fragmentos de suas lembranças iam-se sumindo pouco a pouco, e não pôde encontrar resposta.
Depois, foi ter com o padre e com os demais fieis que permaneceram na igreja após a missa, como fazia de costume. Ficou ali por mais algumas horas, conversou sobre vários assuntos, além da doutrina da igreja, e em seguida voltou para casa. Foi até seu quarto e sentou-se para tirar suas botas, então ouviu Kate o chamar:
— Querido! Está aí?
— Sim, Kate...
— Venha aqui... estou no lavabo. — Disse a mulher com uma voz sedutora. Profaniel estranhou, pois Kate sempre foi muito tímida e reservada, até mesmo na sua intimidade de casal. Mesmo assim, foi até ela.
— O que foi...? — Dizia, mas perdeu a voz ao vê-la se banhando e se insinuando para ele. Com um olhar penetrante, Kate o convidava a entrar na tina com ela.
— Vem! — Chamou de maneira sensual. Ele ainda hesitou por um instante, mas logo seus desejos de homem falaram mais alto. Kate nunca fora tão... desinibida, tão... quente... e ao mesmo tempo, carinhosa e frágil. Uma mulher dos sonhos de um homem, todos pensariam. Profaniel se sentia aí um homem de sorte.
— Foi incrível! — Exclama ele após amar sua esposa na tina. Ela o abraça e deita sua cabeça sobre seu peito nu enquanto sopra uma bolha de sabão. Profaniel desviou os pensamentos e uma palavra lhe veio à cabeça: — Um chuveiro!
— Como?! — Questionou Kate confusa, mas sem sair de sua posição.
— Um chuveiro. Uma espécie de balde com furinhos por onde a água cai como uma chuva.
— De onde tirou essa idéia?!
— Não sei... veio na minha cabeça!
— Quer ser inventor agora, querido? — Diz ela se levantando e lhe sorrindo enquanto o olha nos olhos se debruçando sobre seu peito. — Eu não sei como seria minha vida sem você. — Disse Kate com seu lindo olhar. A possibilidade de se separar de seu grande amor, deixou Profaniel fragilizado. Como se isso fosse uma espécie de aviso... de mensagem.
— Eu nunca deixarei você...! — Respondeu com forte emoção, quase a ponto de chorar. Mas alguma coisa no fundo do seu coração o alertava de que alguma coisa estava para ocorrer. Com medo, abraçou Kate fortemente.
No dia seguinte, um domingo, o casal foi até a fazenda da família Williams. Já era costumeira essas visitas nesses quase dez anos de casamento. Após uma cavalgada pelos campos na companhia de Williams e Eduard, Profaniel se reuniu com todos para um rico almoço e depois ficaram na sala onde conversavam e tomavam chá.
A esposa de Eduard, Elizabeth, é uma bela mulher, mas tem um olhar triste. Profaniel reparou isso quando ela retornou do toalete e se sentou ao lado do marido. Ficava sempre de cabeça baixa, só podia-se ver seu olhar quando levava a xícara à boca, o que quase nunca acontecia. E nessas ocasiões Profaniel notou uma perturbação que o chamou a atenção.
— Vejam... parece que está armando uma tormenta! — Comenta Madalene, distraindo todos para que observassem o céu pelas janelas. E realmente, uma tempestade se formava.
— Que coisa! Desse modo, não poderemos retornar! — Diz Kate.
— De certo! Por isso é bom que passem a noite aqui! — Diz Williams oferecendo sua hospitalidade.
— Muito agradecido, Joseph, mas... — Dizia Profaniel, porém Williams o interrompe:
— O que é isso, rapaz! Este casa é sua! Não se acanhe! Mandarei que Dimas providencie o melhor quarto disponível para você e Kate. Além do menino, é claro! — Profaniel ficou sem como recusar. Além do mais, a tormenta é bastante forte e seria um risco mortal sair da casa. E riscos mortais o deixavam muito temeroso.
O mordomo de Williams reservou um quarto de hóspedes para o casal. Era um belo quarto, uma cama com lençóis perfumados e um cesto foi improvisado para o bebê. O quarto, quando não usado, servia para guardar objetos velhos, entre eles, um grande espelho. Parecia o mesmo que havia na casa de campo. Estranhamente, era o mesmo espelho.
Cai à noite e a tempestade é fortíssima. Seus raios e trovões ecoam pela mansão dos Williams enquanto todos se recolhem para dormir. Menos Profaniel. Sem sono, ele se pôs a pensar em sua admirável vida. Pensa na formosura que é Kate, ainda mais agora que se revelou muito fogosa e ainda assim, meiga e delicada. Pensa na vida que transborda do pequeno Miguel... A vida que leva... uma vida alegre, sem preocupações, cheia de amor e felicidade... Uma vida perfeita. Perfeita até demais. Movido pelo pensamento, se levanta e vai até o menino.
Ele dorme serenamente, mesmo com os trovões e ventos que parecem uivar nas encostas e nas árvores. Profaniel chega junto a ele e passa sua mão entre as mãozinhas do Bebê. Profaniel sorri. O garoto se mexe no seu sono e sua roupa se abre na altura do peito. Profaniel leva a mão para ajeitar e sente uma saliência do peito da criança que lhe chama a atenção:
— Deus!! — Exclama ao ver um ponto alaranjado em relevo perto da clavícula de Miguel. Apressadamente desata os fios da roupa e vê que no peito de seu filho há uma estranha cruz... Era o Selo. — Não pode ser!! — Profaniel se assombra. Esfrega os olhos e, com eles ainda doloridos, olha novamente o garoto e não vê nada de anormal. — Estou vendo coisas! Preciso... Preciso tomar um ar...
Profaniel sai do quarto atordoado. Sem acordar Kate ou qualquer outra criatura viva naquela mansão, ele anda pelos corredores em direção a uma janela. Até lá, ele passa pelo quarto onde Eduard está com a esposa. Sem quer, ouve uma discussão. A porta está entreaberta e ele se aproxima:
— Eu já falei mil vezes pra você nunca mais fazer isso!! — Diz Eduard exaltado para a esposa. Ela, em prantos, responde:
— Mas eu não fiz nada...!
— Cala a boca! É claro que fez!! Viu como eles te olhavam hoje à tarde? Com certeza estão sabendo de alguma coisa!!
— E-eu... Eu... juro que...
— Cale-se!! — Eduard a agride. Dá-lhe um golpe na cabeça e Elizabeth vai ao chão. Profaniel observa tudo chocado. — Sua meretriz! O que eu tinha na cabeça para me casar com você?! — Dizendo isso, novamente a bate. A mulher agoniza no chão.
Profaniel primeiramente pensa em intervir. Um instinto toma conta de si e ele sente a necessidade de corrigir aquela calamidade. Nesse momento, uma pontada na sua cabeça o faz fechar os olhos de dor. Segundos depois os abre novamente e, para seu espanto, ele vê a imagem de Eduard envolta por uma áurea vermelha... Uma alma repleta de imundícia e ódio.
Assustado, corre de volta ao quarto e fecha a porta com cuidado para que Eduard não ouça e desconfie que ele viu tudo. Ofegante com a visão, Profaniel parou atrás da porta e respirou fortemente. Então atentou para o grande espelho na outra parede. Olhando seu reflexo, percebia que sua imagem se dissolvia e surgia uma figura magra, vestida de preto com a boca tapada.
— Não!!
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* - Mt 4,1-4

Continua...

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