A Muralha, de Dinah Silveira de Queiroz:
um retrato do Brasil via ficção*
** Genro Appel UNIFRA |
Introdução
O título
do artigo que segue constitui a força motriz da proposta de análise ora
apresentada. A obra A Muralha, publicada em 1954, possui como referencial o
Brasil do século XVII e fala dos paulistas, de sua obstinação pela riqueza,
devoção ao trabalho e coragem em desbravar novas regiões. A autora, Dinah
Silveira de Queiroz, paulista de origem, tomou como motivo de sua narrativa o
choque cultural dos que chegavam da Europa, da cruel escravização dos índios,
da miscigenação cultural com os brancos e da participação dos jesuítas na
formação da sociedade. Tema recorrente em nossa literatura, o passado
revisitado, adquire, na obra em foco, matizes muito específicas da formação do
povo e da nação brasileira. A intertextualidade, a representação da mulher, as
aventuras dos bandeirantes e outros itens vão moldar o esboço de uma nação.
Em A Muralha, Dinah recria a infância
turbulenta e impressionante do povo brasileiro, envoltos num contexto de
paixões, sucessos, cenas violentas, imbuídas no cenário copioso e cheio de
cores. As paisagens, os costumes, a família paulistana da época e a técnica
literária da autora atribuem ritmo às cenas. O modo de ser dos personagens,
dotados de objetividade e realidade, fascinam o leitor. Destaque especial é
dado às personagens femininas, que crescem e ocupam especial espaço na narrativa:
assumem a importância de “ absorventes estados de alma” (José Lins do Rego). Há
um outro fator interessante:o bisavô de Dinah foi bandeirante e deixou um
diário onde registrou vários episódios e aventuras de seu tempo. O dito diário
também inspirou a autora a retomar o passado histórico brasileiro, via ficção.
*Pesquisa
realizada no curso de PPGL (Letras/UFRGS) EM 2004. ** Professora de l
A Muralha, segundo Flávio KHOTE
(1987) representa a versão moderna do herói épico, pois aponta para as dificuldades
por ele enfrentadas, mas que permanecem externas à ele, ainda que, às vezes,
esteja sujeito a situações de risco e que sofra ferimentos (que não alteram
substancialmente nada no bom ‘mocinho’).
Para Antonio Candido (1981) a obra de Dinah indica a restauração de uma
situação anterior à violação inicial (imposição cultural), desencadeadora do
enredo. O papel da Igreja, retratado na narrativa, aponta para uma
circunstância histórica – o Brasil colônia dos séculos XVII e XVIII serviu de
refúgio ao clero, que, na Europa, estava sob constante ameaça. O período acima
citado é de extrema exploração das riquezas naturais, da tentativa de
instauração da independência econômica e do distanciamento dos ideais
portugueses, amplamente pontuados na obra.
A Ficção visita a história – temas marcantes na narrativa
A
Muralha abarca um aspecto muito particular: a transformação do material
histórico em material artístico – que exige do escritor um cuidadoso trabalho
de reelaboração de conceitos, diretamente relacionados às categorias que
compõem a estrutura da narrativa, como: personagens, eventos históricos,
narrador, tempo, espaço. Para Boris Tomachevski[1]
as personagens e os eventos históricos sempre exerceram fascínio sobre o homem,
pois foram utilizados pela literatura desde a Antigüidade. Quanto ao processo
de criação ficcional, há dois momentos importantes, que são: a escolha do tema
e sua elaboração. Esses dois momentos compõem, na obra literária, a fábula e a
trama. O escritor, na fábula, pode utilizar qualquer fato real, mas na trama,
há o aspecto da invenção, que é uma construção inteiramente artística. A
invenção, no caso, repousa na obra A
Muralha.
Para
Maria do Carmo CAMPOS (2001) “no bojo de um processo de colonização, o que era
‘brasileiro’ passava a receber, como certidão de nascimento, modos de
legitimação externa.”O “abrasileirar”, constituiu-se, então, na tradução do
discurso brasileiro,a uma série de interpretações críticas e históricas sobre a
nossa realidade sociocultural (externa, estrangeira),e, aos poucos, uma visão
interna sobre a literatura nacional. Maria do Carmo explica, em seu texto, que
o exercício da crítica, no Brasil, está relacionada ao Romantismo e que “ a
forte influência da educação européia apagou-lhes o espírito nacional: parece
que se receiam de se mostrar americanos; e daí lhes vem uma afetação e
impropriedade que dá quebra em suas melhores qualidades”(p.50). Daí,
justifica-se,em parte, a forte tendência de nossos autores em retomar o
passado, como se possível fosse reescrever a própria historiografia nacional (
Prado, 1997). A obra de Dinah é um forte exemplo dessa tendência, que se
constitui quase um determinante de modelos e temas de nossa literatura.
A obra
de Dinah (A Muralha) constrói-se
pelo efeito de impacto produzido no auditório do Brasil colônia – a cultura
auditiva. Luiz Costa Lima , em seu ensaio chamado Da existência precária: o sistema intelectual no Brasil (1981),
assinala que o ensino jesuítico, no Brasil, consistia em impressionar o
auditório, em esmagar a sua capacidade de diálogo, para deixá-lo pasmo e
boquiaberto ante a habilidade verbal e a teatralização gesticulatória, como
recurso para subjugar o auditório. Afirma Costa Lima, que “a cultura auditiva é
profundamente uma cultura de perssuasão. Mas de persuasão sem o entendimento”
(p.18). A perssuasão auditiva leva à submissão, sem que o auditório tenha o
discernimento do que se passa à sua volta. A passagem que segue pontua como a
narrativa de Dinah recupera a força do discurso jesuítico sob o impacto da
audição, suscita o medo, seduz pelo efeito dos gestos, pela força da
representação física e pelo tom em que são proferidas as palavras:
Naquela
manhã, fora à igreja, e ouvira um grito seguido de um baque surdo. Os desmaios
sucediam. A cena fora tão terrível, alcançando a multidão em onda de emoções
intensas e de pranto, que o próprio serviço religioso fora interrompido.
(p.298).
A cena
acima citada confere à igreja o espaço de purgação das emoções, no entanto, há
um exagero nos gestos, gritos e lamúrias expressados com certo excesso. As
mulheres, principalmente, iam às celebrações e lá buscavam o conforto, no papel
do sacerdote, que falava à multidão sobre a resignação e o sofrimento dos
homens que buscavam o ouro e deixavam suas famílias. Às mulheres cabia, então,
a responsabilidade da casa, das propriedades e da criação dos filhos.
O
confessionário também é referencial de como o espaço ocupado pelo clero
fundamentou o comportamento daquela sociedade. A narrativa ilustra muitos
momentos em que a confissão constituía o momento crucial de purificação do
pecado e da redenção. Como na passagem que segue: “Ajuda-te, que o céu te ajudará! Não há céu para os parvos e os
covardes”(p294).
A cultura
auditiva (termo empregado por Costa Lima) é representante de uma cultura que
se transmite sem cadeias demonstrativas. O auditório não percebe ou questiona
a ausência de elos entre as mudanças que se instauram: o discurso do dominador
e do dominado. A narrativa de Dinah emprega com esmero os diferentes discursos.
Por vezes é o homem da terra, o explorador paulista que se embrenha no mato
a procura de riquezas e que observa a beleza da natureza que o rodeia;mas
a mulher tem voz, e dita como devem portar-se os seguidores da palavra divina,
conforme as passagens abaixo:
Ela (Basília) tomara o seu lugar, e com estrépito abria a
arca dizendo: - um morto envia a ajuda que os vivos não estão prestando. Dom
Braz Olinto, que foi traído, manda ouro para o bem de São
Paulo”....(QUEIROZ,p.295)
-
Em nossa fazenda precisávamos de tudo. Mas São Paulo de Piratininga precisa
muito mais do que nós. Com este ouro sejam comprados mantimentos, armas e
munições. Aqui estão quarenta sacolas de ouro (idem, p.296).
Ao dar
voz ao personagem, tem-se a revelação de um discurso que é original, próprio,
verdadeiro, que fala da paisagem, da sua gente, de si, com propriedade
inegável.
Conforme
registra Gilberto FREYRE (2003, p. 132),a formação brasileira tem sido um
processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura.
A cultura européia e a indígena. A européia e a africana. A agrária e a
pastoril. A agrária e a mineira.
O católico
e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho.
O paulista e o emboaba. Mas, segundo Freyre, o mais profundo antagonismo é
entre o senhor e o escravo. A oposição binária que desencadeia tantas mudanças
na estrutura social do Brasil, desde seus primeiros tempos. A Muralha recupera o sentido binário que
compõe a nossa cultura. As diferenças sociais- o proprietário da terra e o
serviçal, na figura do nativo, do índio, que assimila a cultura do ‘outro’
como condição de vida e de realidade cotidiana. Tuiú conhece a mata, os ruídos
da natureza, os sinais dos seus (índios), os cantos dos pássaros e interage
com o meio, com uma intimidade incrível, conforme a passagem que segue:
Apenas
os lábios do índio se moviam, modulando uns pios tristes e curtos, que atraíam
a passarinhada. Um pequeno povo de pássaros o espreitava, e ele, duro e
ríspido, continuava a chamar. Aimbé pareceu também meio enfeitiçado.Ficou
parado, ausente, por uns instantes... (...) (QUEIROZ, 1961, p.20).
Para Costa
LIMA (1981), a cultura auditiva é o que confere ao brasileiro o caráter de
praticidade que nos particulariza e que oculta e/ou desvia um certo autoritarismo,
velado ou manifesto, que fomenta as instituições e práticas políticas da nação,
desde sua formação. A Muralha evidencia
os espaços onde o autoritarismo exerce seu poder: o bandeirante, o clero,
que ao buscar a emancipação econômica, constrói e solidifica um modelo de
sociedade, organizado e hierarquicamente mantido sob a égide do poder do mais
forte. O funcionamento da fazenda, a produção dos alimentos e a organização
da vida cotidiana é pontuada na narrativa de Dinah, com riqueza de detalhes
e com a indicação segura do poder exercido pelo patriarca. O personagem Dom
Braz é o responsável pela condução da oração à mesa, pela distribuição dos
afazeres e sua palavra é determinante, ou seja, deve ser obedecido:
Sentaram-se todos, e
houve assim como uma espera. Mãe Cândida puxou pelo braço do Marido: - “dia...
que me esqueci. Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo”.
(
QUEIROZ, P.60)
Para
FREYRE (2003, p.35) o sistema patriarcal de colonização portuguesa no Brasil,
representado pela casa-grande, foi um sistema de plástica contemporização entre
as duas tendências: exprimiu uma imposição imperialista da raça adiantada à
atrasada, uma imposição de formas européias (modificadas pela experiência
asiática e africana do colonizador) ao meio tropical e representou uma
adaptação às novas condições de vida e de ambiente. Aqui, o patriarcalismo
rural e escravocrata adquiriu ‘cor local’. Ou seja, adaptado às condições
ambientais e circunstanciais da época. A casa grande, que ocupa a sede da
propriedade da família Olinto é mostrada em detalhes, como lê-se abaixo:
Muito
tempo depois ela se lembraria da primeira vista que tivera da Lagoa Serena. A
lagoa, rente à pequena aldeia de casas e de compartimentos da Fazenda; e,
descendo a encosta, os dois carregando um carro transbordando de lenha. Os
edifícios – muitos a casa alta, de taipa, com uma varanda, e mandando ao ar um
fumaceiro alegre; o moinho, as casas menores, o paiol, o muro a cercar a ilha
edificada no mar da vegetação, e, diante do muro, no chão limpo, uma fila
estranha, toda composta de mulheres (QUEIROZ, p.39).
Esta foi
a primeira visão que a personagem Cristina, recém chegada de Portugal, teve de
Lagoa Serena. Ela era prima de Dom Braz e noiva prometida ao filho mais moço,
Tiago. A aventura da viagem e da chegada até a fazenda da família Olinto
confere o remotismo da nova terra. O caminho difícel e o aspecto inóspito
acompanhou a personagem durante o trajeto, ou seja, desde seu desembarque, em
São Vicente, até o destino desejado: a fazenda do noivo.
É
notório o aspecto rude e austero da casa, que abriga a família, nos seus
pormenores, desde o espaço principal, a sala de visitas,até os quartos
individuais:
Entraram.
A sala enorme era mistura de salão de recepção e depósito de arreios. Sentou-se
com mãe Cândida num sofá tosco e duro. (...) O quarto de Cristina dava para uma
pequena ante-câmara, que comunicava com os aposentos de Rosália e de Basília.
Era muito simples: as paredes de taipa cobertas de cal, um catre com pano limpo
de algodão, uma arca ao lado aa cama. Sobre a pequena mesa, a bacia de cobre,
já posta com água.
As mulheres não pareciam envergonhadas da simplicidade e
até da penúria daquele quarto a noiva. Ela sentiu um aperto no coração, mas não
estranhou mais. Quando em Lisboa lhe falavam da riqueza da família que agora
vivia nas lonjuras do novo país, não sabiam como esta riqueza era falsa
(QUEIROZ, p.43).
A Muralha expressa, nas suas mais
diversas passagens, a questão da ‘origem’, da formação da estrutura social
brasileira, agrária em seus primórdios. Flora Süssekind, em seu texto O Brasil não é longe daqui (1991)
aborda a questão da busca da origem da literatura brasileira como uma
peculiaridade dos autores que compõem a literatura Ibero-Americana. O sentido
de investigação crítica e de reafirmação do nativismo converge-se no topos de que os escritores se servem
para remontar às raízes da fundação artística, da nossa nacionalidade e de uma
história da literatura nacional. A revelação da terra, da natureza, da vida
rural são marcos pontuados por Dinah. O abrasileiramento é um processo
sucedâneo de fatos e episódios marcados pela presença do branco (descente do
europeu), do índio, do jesuíta e do negro. A proximidade entre as raças se dá
pelas condições de vida que são retratados na narrativa, como as lutas, a
aventura em busca do ouro, o enfrentamento da natureza, dos perigos da mata
(animais) e do homem que ali está: apto a desbravar, a descortinar o novo
espaço e conquistá-lo, em todos os sentidos.
A
contemplação da natureza e das cenas que a compõem podem ser como presságios do
que está por vir. Os homens, embrenhados na mata, são exímios observadores do
que os rodeia e buscam respostas para suas dúvidas, que povoam seus intentos e
vontades.
Considerações Finais
Regina
Zilberman (1994) ao abordar a história da literatura brasileira enfatiza que
desde Cristóvão Colombo e Américo Vespúcio propagou-se pela Europa a idéia de
que o espaço paradisíaco existia. No entanto, as reais dificuldades da
conquista e da adaptação ao novo são atribuídos ao vigor do discurso literário.
A recuperação do passado confere ao texto a consagração do motivo da busca
idearia da ‘origem’, tema marcante na narrativa de Dinah.
A
leitura e proposta de análise do Brasil retratado pela ficção de Dinah Silveira
de Queiroz, em A Muralha, permite a
identificação e análise de vários aspectos: da natureza brasileira, do índio,
da estrutura da sociedade da época, dos bandeirantes, dos recém chegados da
Europa e da condição do homem e da mulher naquele espaço físico.
Os
autores consultados, que conferem o aporte teórico da análise apresentada, são
unânimes em afirmar que o Brasil e sua literatura são universais, mesmo quando
confessos em abordar a “cor local”. Como afirma Haroldo de Campos (1992), “a
alteridade é, antes de mais nada,um necessário exercício de autocrítica”. Do
que se pode concluir que, reconhecer as diversidades que compõem a nossa
cultura, constitui-se, principalmente, num ato de consciência e de renovação –
isso é muito relevante em A Muralha.
Assim, é
possível conhecer, de perto, os ideais defendidos pelos “intérpretes do Brasil”
ao indicarem o texto literário como o possível meio de investigação da
complexidade que envolve a nossa cultura e a nossa sociedade, desde seus
primórdios. A Muralha, sem dúvida,
confere ao leitor um vasto e rico panorama do Brasil, em diferentes momentos.
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