CRÔNICA:
DA EFEMERIDADE DO GÊNERO À FRAGILIDADE HUMANA Niederauer |
Tal qual o tempo, ou krónos, em
grego, há um gênero literário que parece estar intimamente relacionado à
questão temporal e sua fugacidade: a crônica. Entendida como “registro de
acontecimentos num tempo e num espaço determinado”, segundo Salvatore D’Onofrio
(2002, p.123), a crônica ainda transita entre um caminho de mão dupla, isto é,
tanto está vinculada ao universal ficcional, como integra os discursos do
jornalismo.
De acordo com Carlos Reis e Ana
Cristina M. Lopes (2000, p. 87), “o termo crónica designa um tipo de narrativa de definição algo
problemática, a começar pelo facto de não constituir um género estritamente
literário, no mesmo sentido em que o são o romance, a tragédia ou a écloga”.
Daí surgir a inevitável pergunta: afinal, o que é crônica? Várias são as
definições para este gênero híbrido que oscila entre o registro do
circunstancial e uma proposta de ação reflexiva por parte do leitor. A crônica,
vista por muitos como um gênero menor porque “vai envelhecendo à medida que o
evento determinante se distancia no tempo, tragado por outras ocorrências
igualmente rumorosas e passíveis de gerar equivalentes crônicas” (1982. p.
133), engendra possibilidades outras de se perceber a realidade particular
abordada naquele texto, mas que desvela o geral e o universal, garantindo,
assim, a sua perpetuação como leitura atemporal.
O cronista estabelece um diálogo com o
leitor ao mostrar o seu ponto de vista sobre determinado assunto, fazendo com
que o leitor avance além do olhar, muitas vezes, descuidado, sobre aquele tema,
propondo uma espécie de intercâmbio de interpretações, o que efetiva a
superação dos limites da simples leitura, chegando a níveis mais profundos e
reveladores da interpretação da realidade ali declarada. A partir daí, há o
comprometimento do leitor, pois, ao adentrar em atmosferas mais profundas,
consegue perceber e desvelar questões sérias que remetem ao seu universo,
particular e coletivo, ao mesmo tempo.
Para que se possa analisar de forma
mais concreta a questão da efemeridade, ou não, da crônica, gênero escolhido
para este estudo, partiu-se do estudo de uma das obras do escritor gaúcho, Luis
Fernando Verissimo, autor de inúmeros livros (mais de trinta), que abarcam
outros gêneros como o romance, o conto e a poesia, para citar os mais
conhecidos, além de ser um dos mais reconhecidos cronistas brasileiros da
contemporaneidade. A obra em questão é Comédias da vida privada: 101
crônicas escolhidas, publicada em 1995 e as crônicas que serão trabalhadas
(aqui, de forma bastante sintética) são “Sala de espera”, “Homens” e “O
encontro”, que traçam um pequeno painel da busca por uma relação amorosa feliz
e duradoura, mas que se dissolve nas pequenas e tortuosas artimanhas da vida,
ao mesmo tempo em que espelha, sob certos aspectos, a própria natureza humana
na atualidade.
De acordo com Gilles Lipovetsky (2002),
na obra El crepúsculo Del deber – la ética indolora de los nuevos
tiempos democráticos, as questões que estão em voga na sociedade de final de
milênio e início de uma nova era é a ética e suas bases de fundamentação e de
parâmetros. De um lado, há a relativização da moral; de outro, o decreto de sua
decadência. Assim, a nova ordem que se instaura neste início de milênio é a
ordem dos desejos imediatos, a felicidade intimista e materialista: em suma, a
paixão pelo ‘ego’. O que parece reger a nova sociedade não é mais o dever, mas
sim o bem-estar e a dinâmica dos direitos subjetivos.
Isto posto, é interessante notar o
quanto as crônicas selecionadas como corpus deste trabalho realçam, ou
confirmam, este novo status que o individual e o efêmero assumem em
relação às tentativas de uma união amorosa, apontando, por um lado, para a
fugacidade dos relacionamentos e, por outro, para a busca constante pela
segurança e felicidade de uma vida vivida a dois, com base no amor e no
respeito mútuo. Ao mesmo tempo em que todas as personagens que povoam o
universo ficcional das crônicas em estudo buscam o amor e sua concretização
através de um relacionamento perene e tranqüilo, tanto o homem quanto a mulher
não abrem mão da sua individualidade e seu bem-estar, apesar de, com esta
postura, afastarem de si toda e qualquer possibilidade de efetiva realização do
sonho almejado: a felicidade de compartilhar um sentimento, hoje raro, que é o
amor sincero e permanente.
Na crônica “Sala de espera”, a situação
apresentada é a do ‘possível encontro amoroso’ entre um homem e uma mulher, que
estão, ambos, em uma sala de espera de um consultório odontológico. Os dois
estão reparando um na presença do outro e, em seus pensamentos, vão criando os
prováveis diálogos que travariam, caso iniciassem uma conversa despretensiosa,
a princípio.
Os silêncios percebidos nesta crônica,
pois que as personagens apenas imaginam uma conversa que, na realidade, não
acontece da maneira como ambos criaram em suas mentes, representam a linguagem
elaborada pelo cronista, na qual a função poética, a ficcionalidade própria de
outros gêneros, deixa entrever o significado velado de uma crítica que tem
toque de humor, mas que, de fato, retrata o desejo dos dois protagonistas em
encontrar o amor no outro, mas que o individualismo e o medo da rejeição
impedem que ambos tentem uma aproximação real, abrindo mão, portanto, de um
efetivo encontro, mesmo na incerteza de sua concretização de “happy end”.
“Homens”, outra crônica da mesma obra,
vai servir de ‘continuação’ ao tema abordado no texto anterior: o desencontro
amoroso. A situação proposta agora é a de um casal de namorados que está em um
bar. O tratamento entre eles é de plena paixão, até que Lalinha, a mulher, de
repente, pensa que Teixeira, seu namorado, está lhe enganando a mando de seu
ex-namorado, Vinícius. A partir daí o desencontro é inevitável, pois Lalinha
não acredita mais no amor verdadeiro de Teixeira, o que gera uma discussão
entre eles, culminando com o fim do relacionamento que, até então, parecia
fadado ao sucesso.
Percebe-se, então, que quando o assunto
tratado transcende o factual, o mero retrato do cotidiano, e passa a tecer
outras dimensões para o tema em questão, a crônica assume um importante papel:
o de se um texto que, apesar de breve, burla o caráter efêmero inicial para
desdobrar-se em possibilidades outras de cumplicidade com seu leitor. Tal cumplicidade
se estabelece quando a crônica apela à solidariedade do leitor, mostrando, como
é o caso deste texto, quão irônico pode ser o desfecho de um relacionamento.
Texto polissêmico, que abarca questões provocadas pela
inquietação do mundo contemporâneo, a crônica de Luis Fernando Verissimo
transforma um acontecimento quase banal em essência de uma mundividência que
delata o jogo de relacionamentos desgastados pelo tempo (ou pela falta dele),
pela ausência de perspectivas mais duradouras, ou simplesmente pela
incapacidade de manter-se a transcendência afetiva que todo o encontro com o
outro provoca, ou pode provocar.
A crônica “O encontro” já traz no título a ironia que se
fará presente em todo o texto, pois que não há encontro efetivo; pelo
contrário, há apenas o reforço de um desencontro passado. Ambos se encontram em
um supermercado de madrugada, a fim de fazerem compras. É o primeiro encontro
do casal após o final de um casamento de seis anos.
Os dois tentam aparentar sua felicidade por não estarem mais
vivendo juntos e, por conta de uma farsa, conversam sobre os motivos que os
levaram a fazer as compras de ‘extrema necessidade’ naquele horário pouco
comum: ambos estavam recebendo amigos em casa e resolveram preparar alguma
coisa diferente para comer e beber. O encontro/desencontro se confirma ainda
mais, pois nenhum quer admitir que está completamente sozinho e que a
felicidade aparentada é apenas uma fuga da total solidão, da infelicidade e do
individualismo predominante em suas vidas atuais.
Luis Fernando Verissimo produz textos
deste gênero que são, ao mesmo tempo, reflexivos e lúdicos, pois sabe penetrar
na emoção exatamente nas brechas deixadas por ela e é daí que resulta a crítica
social. São pormenores triviais que servem de mote a uma análise dos
relacionamentos amorosos, uma vez que o leitor sente-se atraído pelo assunto,
justamente porque ou percebe-se refletido nele ou, então, porque a situação
retratada é tão inusitada que provoca o divertimento.
É possível deduzir-se, então, que trocando de suporte – do
jornal para o livro – a crônica ganha um novo status, a partir do
momento em que abandona a efemeridade de um periódico e sua incontestável
cronologia, para sedimentar-se nas páginas de um livro onde o leitor poderá
recolher, não mais a fragmentação temporal proposta pelo jornal, mas sim
proceder a uma releitura, agora mais reflexiva, ampliando seu campo de análise
e interpretação.
Nos textos analisados, o “eu” - cronista escancara seu
olhar cético e melancólico, talvez na busca de um ‘milagre’ que pressupõe a
denúncia de um embate que tem urgência em deixar de ser transitório, a fim de
que os resquícios de vida amorosa aflorem e se tornem competentes para
enfrentar o permanente desafio proposto por Chronos: o seu passar
irrecuperável.
O que se constatou nas crônicas brevemente estudadas revela
justamente esta proposta de busca por uma felicidade a dois, apesar das
exigências, muitas vezes veladas, em relação ao outro, da falta de ousadia em
apostar em um relacionamento, enfim, quase na descrença de ser feliz pela
sedução amorosa. Desta forma, a crônica proporciona uma revelação bastante
séria, apesar do tom humorístico e irônico, a respeito do modo como os homens,
de um modo geral, enfrentam as situações quase limites de relacionamentos afetivos.
Assim sendo, não há como ser o gênero em questão efêmero,
fugaz ou menor, exatamente porque o cronista assegura a perenidade dos assuntos
abordados através da atualidade dos mesmos: todo o ser humano, em qualquer
época ou lugar, sempre buscou a felicidade; esta busca pode ter mudado de
enfoque em função das modificações sociais, das crenças religiosas, da cultura
gerida. Mesmo assim, conforme Affonso Romano de Sant’Anna (2000, p.203-204):
o cronista, apesar de estar no pólo metafórico da
linguagem, é também metonímico: ele pega um detalhe do cotidiano, de uma cena,
de uma conversa, de uma fotografia, de um personagem, e monta uma parábola ou
alegoria.
Luis Fernando Verissimo elabora um
variado e colorido quadro da sociedade brasileira atual, ao desvendar, através
da fina ironia da linguagem, apontando até mesmo para o humor sarcástico, os
desencontros amorosos pelos quais homens e mulheres passam, seja na situação
que for. Daí que a perenidade da crônica ainda se volta para seu relacionamento
primeiro, que é o da efemeridade enquanto gênero ligado inexoravelmente ao
tempo, pois que as relações afetivas mostradas aqui são, também elas, efêmeras.
A dualidade temporal, tanto do gênero quanto das relações humanas, no que diz
respeito a sentimentos afetivos, desmorona diante da força e do poder da
palavra do cronista, pois a ele “pode acontecer de sobreviver ao seu tempo,
vingando-se do seu Cronos” (D’ONOFRIO, 2002, P. 204).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto – prolegômenos
e teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 2002.
LIPOVETSKY, Gilles. El
crepúsculo del deber – La ética indolora de los nuevos tiempos
democráticos. Trad. Juana Bignozzi.
Barcelona: Editorial Anagrama, 2002.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos
literários. São Paulo: Cultrix, 1982.
REIS, Carlos & LOPES, Ana Cristina M. Dicionário
de narratologia. Coimbra: Almedina, 2000.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. A sedução da
palavra. Brasília: Letraviva, 2000.
VERISSIMO, Luis Fernando. Comédias da vida
privada: 101 crônicas escolhidas. Porto Alegre: L&PM, 1995.