A MARAVILHOSA AVENTURA

 

            O médico e o sacerdote levantaram o doente prestes a morrer e a enfermeira aconchegou-lhe um travesseiro nas costas.

      Pode falar — disse o juiz.

      Condenaram um inocente. O autor daquele...

      Vamos, tenha coragem — disse o padre.

            O médico deu-lhe uma injecção.

      ... não foi Nicolau Flamel. Fui eu.

            O juiz escreveu.

      Vou ler.

      Não, não leia — balbuciou o doente, procurando a caneta com um gesto impreciso.

            E assinou.

 

 

            A liberdade concedida a Nicolau Flamel desconcertou a opinião pública de Minnenland, pequeno reino que não pretende ter salvo a civilização das hordas de Tamerlão, e prefere cozinhar os frangos em utensílios de alumínio fabricados noutros países, a morrer nesses outros países em busca de minas de bauxite.

            Três barcos de roda sulcam de traços brancos as doces colinas, que descem até ao plácido lago — o Minnersee — engrinaldadas de belas moradias cheias de crianças e bem penteados jardins.

            A corte deste pequeno reino leva-nos a pensar naqueles príncipes admiráveis que foram «les Rois Fainéants», com um senado em cuja maioria abunda o bom senso, um parlamento cuja maioria inteligente empolga a assembleia, um corpo diplomático brilhante, porque naquele país, que não é o fiel do mundo, as nações são representadas por ministros inócuos, burocratizados pelos anos, os quais, como todas as nulidades que usam uniforme, dão colorido às operetas e à vida.

            Um crânio pré-histórico encontrado na escavação de uma gruta foi atribuído ao «Homo-Minnenlandensis» e, com o pretexto de estudarem as maxilas daquele remoto antepassado, ali marcam encontro os espiões e os traficantes internacionais, apresentando-se com óculos de aros de ouro de professores de estranhas universidades.

            Os editores de todo o mundo enviam para lá os livros proibidos no seu país de origem; as salas de concertos e as galerias de arte animam as tentativas temerárias; a instrução pública inspira-se num cepticismo velado e num pálido Voltairianismo. Se é verdade, como diz Remy de Gourmont, que «tout le monde est en retard de quatre cents ans», o reino de Minnenland já conseguiu desfazer grande parte desses quatrocentos anos de atraso.

            Os textos de história não elogiam os grandes assassinos e piratas a torto e a direito nem reivindicam para um obscuro cidadão de Minnenland a glória de ter descoberto a pólvora, isto porque, se tal tivesse acontecido, procurariam torná-lo esquecido. Pratica-se o divórcio com a mesma facilidade com que algures se realizam casamentos, mas os adultérios não são mais raros do que nos países em que o matrimónio é indissolúvel. Pune-se o aborto, mas não é mais raro do que nos países em que é permitido.

            A constituição das sociedades anónimas é tão rápida e fácil como deitar uma carta ao correio, e é por isso que em muitos produtos fabricados fora da Europa se lê: «Sociedade Anónima de Minnenland». Não existindo contratos colectivos de trabalho, qualquer empregado, desde o porteiro ao director geral, pode ouvir dizer, sábado ao meio-dia: «Passe pela caixa e depois de amanhã não é preciso voltar». Este sistema, decalcado, aliás, nas praxes comerciais americanas, põe em emulação as vontades e os engenhos. Só os melhores triunfam.

            Todos os meses uma nova série postal vem dar satisfação a todos os filatelistas do mundo, e quando a administração dos correios não topa na história pátria um novo motivo para novas emissões, usa a gralha tipográfica propositada nos primeiros 500 exemplares que, então, passam a ser pagos como se fossem quadros de autor.

            As ruas não se baptizam com os nomes das grandes carnificinas. Há, porém, uma praça adornada com uma data. É a praça 1699, único ano da história do mundo em que não houve guerra.

            É na praça 1699 que está o Ministério da Justiça.

 

           

            Antes de ser conduzido para o gabinete do ministro, Nicolau Flamel passou, por conta do Estado, pelo principal cabeleireiro da cidade, pelo camiseiro que só vende artigos importados de Londres, pelo alfaiate que veste os elegantes pelo figurino de Viena. Se Flamel tivesse pedido para a sua gravata uma pérola da Joalharia Dufour (Paris-Minnenland), ter-lha-iam dado.  ...,...  (de: Capítulo I)

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