LUANDINO VIEIRA

O LOGOTETA

Por Salvato Trigo

 

           

            QUE LITERATURA?

 

            Existe uma grande desproporção entre os estudantes teóricos, críticos e divulgativos sobre as literaturas africanas anglófonas e francófonas e os das literaturas africanas de expressão portuguesa. Não só razões de ordem política estarão na base desse fenómeno, ainda que essas sejam determinantes. Durante o «estado novo», vários foram os estudiosos e críticos que se debruçaram sobre a problemática da existência ou não de literaturas africanas de expressão portuguesa, sustentadas por culturas específicas e essencialmente distintas. Se, por um lado, uns se apressavam a refutar a existência dessa especificidade literária e cultural, por outro lado, houve quem, com igual pressa, a afirmasse, sem curar de ser convincente e irrespondível. Daí que a questão ainda continue em aberto ou, pelo menos, não esteja suficientemente clarificada para ser, em definitivo, encerrada. Por isso mesmo, pensamos ser importante introduzir este nosso trabalho sobre um dos mais conhecidos escritores africanos modernos pela abordagem dessa já velha problemática, tentando «definir», em termos o mais possível objectivos, o que é, ou melhor, o que pode ser uma literatura africana de expressão portuguesa.

            Por estranho que possa parecer, a verdade é que ainda hoje, dois séculos passados sobre a utilização do termo  literatura  para  substituir a  designação anterior de Belles Lettres, se continua a questionar o sentido ou sentidos que esse conceito recobre. E essa questionação é tanto mais pertinente quanto mais se avança para a constituição de uma «ciência da literatura» ou teoria literária científica, a qual, aprioristicamente, terá de definir a natureza do objecto do seu estudo. Continua, portanto, a ser relevante a pergunta — «o que é a literatura?» — e, no nosso caso, — «o que é a literatura africana de expressão portuguesa?».

            Em termos genéricos, e numa espacialidade diacrónica, fala-se hoje da literatura em sentido tradicional e em sentido moderno. Na perspectiva tradicional, vê-se a literatura essencialmente como representação; modernamente, ela estende-se mais como produção. É óbvio que a questão não é, não pode ser, tão esquemática. Dizer-se que a literatura deve ser olhada ou como representação ou como produção parece-nos ser assunção duma atitude de manifesto reducionismo maniqueísta em que o espírito ocidental se estrutura. De qualquer modo, esta aparente oposição conduz-nos para um terreno de reflexão em que vai surgir outra noção: a de não-literatura. Isto é, para podermos discorrer acerca do que seja a literatura conviria partir do conceito de não-literatura. É esta, de resto, a posição assumida por Tzvetan Todorov, ao escrever: «Tenho feito constantemente a mim mesmo estas perguntas: o que é que distingue a literatura daquilo que não é literatura? qual é a diferença entre uso literário e uso não-literário da linguagem? Ora, ao interrogar-me assim sobre a noção de literatura, eu considerava adquirida a existência duma outra noção coerente,  a de «não-literatura». Não é preciso começar por questionar já esta?»

            Suscitar este tipo de interrogações é, de facto, importante, quando se visa a construir uma teoria que habilite o crítico literário a exercer a sua função: emitir um juízo de valor sobre uma determinada obra literária. E, se a tarefa do crítico, que valora obras pertencentes a espaços culturais já devidamente estudados e com modelos teóricos que sustentem o seu sistema de valores, é bastante facilitada, o mesmo não acontece, quando ele se debruça sobre textos de literaturas recentes e altamente complexificadas, por complexos serem os processos que as originaram e que a elas subjazem. Não podemos esquecer-nos de que os modelos teórico-literários de que dispomos para analisarmos uma obra das literaturas africanas modernas são ocidentais, entendendo aqui, naturalmente,  este termo no seu valor cultural e civilizacional. Serão esses modelos próprios para descrevermos tal obra? Serão eles operatórios em áreas culturais e civilizacionais substancialmente diferentes daquelas em que foram e são estabelecidos? Isto é, poderá o crítico ocidental, apetrechado com eles, penetrar e explicar correctamente a literatura africana de expressão portuguesa, francesa ou inglesa? Achamos que não. Por isso, julgamos ser importante que se reflicta sobre as bases em que um crítico ocidental se deve situar para ajuizar das literaturas africanas  de expressão estrangeira. Porque poderá dar-se o caso que, seguindo os nossos próprios modelos críticos, estejamos a considerar não-literário o que, africanamente, o é. Este problema radica obviamente no facto de ao conceito de literariedade termos de justapor o, não menos indelimitável, de africanidade.

            Regressemos, porém, ao problema inicial: haverá, de facto, uma literatura africana de expressão portuguesa?

            A pergunta, colocada assim friamente, poderá parecer insensata ou, pelo menos, descabida. Na verdade, sobretudo nos últimos tempos, tem-se falado assaz dela, ao ponto de já ir sendo um pouco conhecida e de ter até ganhado jus ao ingresso nos planos curriculares universitários e, no ano transacto, mesmo nos secundários. Além disso, o sintagma «literatura africana» é bastante recente. De facto, as primeiras produções literárias de contexto africano, que o ocidente conheceu, foram chamadas de «literatura negra», embora esta classificação não tivesse outra base de sustentação que a epidérmica. Disso nos dá conta Francisco José Tenreiro na «Nota final» ao «Primeiro Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa» que organizou em colaboração com Mário de Andrade, em 1953: «Ouve-se dizer, com certa frequência, que não há poesia negra, mas sim, poesia de pretos. Rasgo brilhante de inteligência, sem dúvida... E argumenta-se que a única a verdadeira poesia negra, é a que repousa no coração de África, e vive nos «mores» das suas culturas. Afirmar só isto, é estar a falar só por falar. É desconhecer a realidade social complexa do mundo negro; é ainda mostrar-se conhecedor dum facto que, praticamente, ninguém conhece: o autêntico folclore negro. É desconhecer, em suma, que o negro foi obrigado a aprender línguas que estão longe de ser as veiculares do seu pensamento gregário, da sua «sagesse», como hoje se costuma dizer.»

            Se bem que, pelo início da década de 60, a expressão «literatura negra» começasse a ser substituída pela de «literatura africana», Tenreiro insistiu sempre em manter o ponto de vista acima enunciado, como bem o demonstra o seu ensaio «Acerca da Literatura Negra», publicado em 1961. A sua posição não nos parece, todavia correcta. Antes, porém, de expormos a nossa opinião acerca do assunto em análise,  referiremos ainda um estudo do africanólogo alemão, Janheinz Jahn, acerca desta questão. Na abertura de sua obra, Manuel de Littérature Néo-africaine, Jahn «tenta definir» a nova designação por si forjada, a de «literatura neo-africana», para substituir as de «literatura negra» e de «literatura africana», justificando a introdução «desta noção como reacção contra uma situação de facto e como resultado dum exame histórico». Após tecer algumas considerações genéricas, Jahn conclui que uma classificação das literaturas em função das línguas em que são veiculadas não tem mais cabimento, nos nossos dias. Do mesmo modo, exclui a possibilidade de elas serem repartidas segundo normas geográficas, cor de pele ou lugar de nascimento dos autores, porque, diz ele, essas categorias são extra-literárias. Aduz, seguidamente, razões para refutar expressões como «literatura preta», «literatura de pretos», «porque os que empregam esses termos exprimem, conscientemente ou não, a convicção de que a cor da sua pele determina o género, a pertença literária do autor.»

            Até aqui não nos será difícil concordar, se bem que não inteiramente, com o ponto de visa de Jahn. Aceitamos, de facto, que nem a cor da pele nem o local de nascimento dum escritor possam ser determinantes para a sua inserção numa determinada literatura, porque à história literária de um dado espaço cultural interessam as obras e não os homens que as produzam. Neste aspecto, seguimos Paul Valéry para quem «uma história da literatura deveria ser compreendida não tanto como uma história dos autores e dos acidentes da sua carreira ou das suas obras, mas como uma história do espírito enquanto produz ou consome «literatura», podendo mesmo essa história fazer-se sem que o nome dum escritor aí fosse pronunciado». O facto de o objecto deste nosso trabalho ser a obra de um escritor branco, nascido em Portugal, como é José Luandino Vieira, aliás José Vieira Mateus da Graça, natural da Lagoa do Furadouro, concelho de Vila Nova de Ourém, autor de textos paradigmáticos na moderna literatura angolana, como demonstraremos, é por si só suficiente para rejeitarmos qualquer classificação de obras literárias baseada na cor da pele ou na naturalidade dos seus produtores. Mas já não poderemos seguir Jahn no passo em que ele afirma que a classificação das literaturas em função das línguas da sua «escrita» só «podia justificar-se até ao princípio deste século». Para nós, e desde que se reformule o conceito tradicional de língua, tal classificação é totalmente pertinente, sobretudo no domínio literário que nos ocupa — o africano de expressão portuguesa. ...,...

(de: Introdução)

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