O HOMEM QUE INVENTOU O AMOR

 

 

 

 

                O oficial de diligências anunciou:

      O tribunal!

            O juiz-presidente Pott, depois de os dois juizes tomarem assento a seu lado, disse:

      Levante-se.

            A mulher levantou-se.

            Se bem que a palidez do presidente Pott fosse dissimulada pelos reflexos verdes do candeeiro de mesa, adivinhava-se que a discussão na Câmara do Conselho, prolongada por cerca de duas horas, estivera particularmente áspera. Aliás, era sabido que entre o presidente Pott e os dois juizes não existia grande afinidade. O segredo da Câmara do Conselho, amiudadas vezes trazido a público, dava sempre origem a subtis comentários sobre os impulsos da sua inteligente probidade contra a burocrática ignorância e a teimosa incompreensão dos seus colaboradores.

            O presidente leu:

      Em nome do Povo Francês, etc., etc., vistos e examinados, etc., etc., considerando que, etc., etc., e, sobretudo, porque o juiz que está sentado à minha direita é um cretino e o juiz que está sentado à minha esquerda é outro cretino, a ré, Maria Lanson, de 25 anos, nascida em Coulomniers, etc., etc., é condenada a três anos de reclusão e dois mil francos de multa pelos danos causados. Tem três dias de prazo para apelar da sentença e aconselho-a a apelar, porque, felizmente, nem todos os juizes são como estes dois.

            O delegado do Ministério Público, um jovem magistrado que tinha pedido a absolvição por insuficiência de provas, dificilmente conseguiu dominar o tumulto desencadeado na sala. Ordenou aos «gendarmes» que fizessem evacuar a sala e levassem a condenada, e convidou os advogados a fazerem silêncio.

                O juiz-presidente Pott, pronunciadas as últimas palavras, deixara a sua cadeira, desfazendo-se da beca. Os dois juizes, que por algum tempo permaneceram como que pregados nos seus lugares, tinham-se levantado lentamente e saído também.

                O jovem representante do Ministério Público foi o último a sair, e, ao encaminhar-se para a porta, o soalho da grande sala ecoava, à sua passagem, como o pavimento de uma igreja.

                Pela abertura de uma janela baixava um raio de sol, obliquamente, caindo sobre a cadeira abandonada pelo presidente Pott, como aquele feixe de luz que nos quadros religiosos desce das nuvens para iluminar a fronte dos santos.

 

 

                O presidente Pott, antes de se encaminhar para casa, passou pelo gabinete do Procurador Geral da República, para aí depositar o seu pedido de demissão. Saindo do Boulevard du Palais, puxou do bolso um livrinho de mortalhas e dele destacou uma folha para enrolar entre os dedos um cigarro de louro tabaco. Mas então, lembrando-se que o seu amigo, como de costume, o esperava, tornou pelo mesmo caminho, reatravessou o pátio e dirigiu-se para o restaurante do Palácio da Justiça.

                Ao fundo de um sombrio átrio situava-se a entrada para a sala do restaurante, onde advogados e magistrados se reunem nos intervalos dos debates. Nos dias do Terror era a sala de espera dos condenados pelo Tribunal Revolucionário.

                Hoje, vivaz multidão troca ali impressões sobre audiências e conta dessas histórias dúbias que são o encanto do inimitável espírito parisiense, enquanto as advogadas, de toga, como um correctivo à sua máscula profissão, aceitam a corte dos jovens doutorandos, e continuando a dissertar sobre direito e sobre processos, diante do espelho, apoiadas ao volume dos autos, refazem a boca com «rouge» e recompõem, com a borla de pó-de-arroz, a fisionomia um pouco alterada pela emoção dos discursos ou pela vivacidade das discussões. O advogado Henri Robert toma chá antes de subir para o Tribunal de Apelação, a pedir e a obter a absolvição de um delinquente de alta categoria, e Moro-Giafferi engole um Porto, preparando-se assim para convencer os jurados de que o verdadeiro e único culpado é a vítima e não o assassino. O aroma do ponche mistura-se ao perfume das togas femininas e ao cheiro dos cigarros finos. E o nome de um cavalo vencedor no prado de Longchamps, ou o rumor discreto dos dados de galalite batendo sobre a mesa de madeira, compõem uma música singularíssima com o retinir intermitente das campainhas do café expresso e o trinado festivo de uma inteligente risada de mulher.

                Pela porta de vidro fosco penetra a luz azulada do pátio; o pátio dos nove degraus que todos os condenados pela Revolução subiram: Maria Antonieta alçando os olhos para o céu, mas contendo as lágrimas que estavam para descer; Madame Roland, cujas longas vestes se embaraçaram na porta gradeada; Carlota Corday e a abadessa de Montmorency; por onde passaram o sorriso de Cecília Renaud e os soluços da Du Barry, desejosa de viver: os girondinos, Danton, Camille Desmoulins, Hérbert, o virtuoso Malesherbes, o incorruptível Robespierre.

                Onde hoje se alinham as garrafas de licor e as fruteiras de cristal, armários toscos recolheram as roupas dos justiçados; onde as vítimas com as mãos ligadas contra os rins esperavam o golpe de tesoura sobre a nuca, para a grande viagem, e as cabeleiras louras, brancas, negras, se amontoavam no cesto de vime, hoje, um vaso de flores, posto ali por acaso, acende na penumbra uma nota de vermelho.

                Não se carece da fantasia de um «metteur-en-scène» da Metro-Goldwyn para evocar o carrasco Samson, de pé, ante a carreta encostada à grade, lendo as listas apavorantes, com a diligência compassada de um expedicionário, entre as despedidas pungentes das vítimas e as convulsões histéricas da turba por detrás do portão de ferro. O porteiro da Conciergerie, Richard, recostado numa poltrona, ordenava aos carcereiros que alumiassem o rosto pálido dos recém-vindos, para os identificar, e escrevia-lhes o nome num caderno, como hoje, no seu lugar, um homem que talvez se pareça com ele, recebendo a ficha do empregado de mesa, examina a garrafa de conhaque e conta as laranjas que sobraram.

                O presidente Pott quase todos os dias era esperado pelo seu amigo. Também hoje o amigo lá estava, com um grosso livro crivado de furos entre as mãos, sobre o qual passava lentamente os dedos lívidos, nodosos como bambu, olhando o vago, com olhos apagados.

                O presidente sentou-se ao lado dele, tomou-lhe uma das mãos e apertou-a com risonha afectuosidade.

      Já aqui? — perguntou o cego com um sorriso quase directo, desviado de um pequeno ângulo. — Já acabou?

      Já. Já acabou. Que estás lendo?

      Virgílio.

      É o prémio Goncourt deste ano?

      Leio somente os livros antigos. Os livros novos não são mais do que a mistura de datas, de ideias, de factos, de nomes tomados a outros livros e dispostos de maneira um pouco diversa. Mal é lançado, vai tomar o seu lugar nas estantes, até que novo escritor o retira dali para extrair dele uma ideia ou um facto, uma data ou um nome, que mistura com outros elementos arrancados de outros livros, para com isso fazer um livro novo. Ora, ler um livro assim, é o mesmo que ler um livro velho.

      O empregado aproximou-se da mesa oferecendo a lista dos pratos a Paulo Pott.

      O senhor presidente que um filete de linguado?

      Traga.

      E o Sr. Loevy?

      Outro filete do mesmíssimo linguado — respondeu o cego.

            Depois voltou-se para Paulo Pott.

      Como terminaste tão cedo?

            — Tão tarde — emendou Pott, pacatamente. — Devia ter acabado antes.

            Loevy volveu para ele a barba negríssima, franzindo as sobrancelhas por cima dos olhos sem luz.

            Mas a notícia chegava então à sala do restaurante; os comentários entrelaçavam-se em torno do novo assunto. Um doutorando, testemunha da cena, começou a descrevê-la a três advogados; mas interrompeu-se, para recomeçar menos excitado e em voz baixa, quando percebeu que o protagonista estava ali.

            Um velho advogado, a cuja passagem todos se afastaram respeitosos, dirigiu-se resolutamente para ele, apertando-lhe a mão. Quase todos os presentes o imitaram. O jovem doutorando ousou dirigir a Pott uma pergunta. O velho advogado interveio:

      É inútil palpar o segredo da Câmara do Conselho. Este facto é um fenómeno que se repete a longos intervalos: é o «choc» da consciência contra o seu antagónico.

            Paulo Pott, indiferente às expressões de simpatia e ao interesse que tinha despertado o seu gesto, observava o empregado no acto de bipartir o linguado.

                Depois voltou-se para o cego.

      Toma cuidado. As espinhas são armas que a Providência forneceu aos peixes para o cumprimento da sua vingança póstuma.

            Todos compreenderam que já era tempo de se afastarem; mas, nisto, um dos juizes, o mais velho, o da direita, entrou congestionado e gotejante pelo funcionamento de todas as suas 2400 glândulas sudoríparas, como se tivesse bebido, de um trago, uma garrafa de Worcestershiresauce.

      Senhor presidente! — gritou.

      Há dez minutos que deixei de ser presidente.

             Dr. Pott! — gritou plantando-se diante da mesa e procurando, com um bamboleio sobre as pernas nervosas, alargar o centro de gravidade da própria coragem. — Dr. Pott, repetiria aqui que eu sou o cretino que estava sentado à sua direita?

           Pott, calmíssimo:

            — Se a sua intenção é fazer algazarra, peço-lhe que não se engane sobre a hora: são quatro da tarde e não da madrugada. Aquilo que o torna tão interessante quase todas as noites na Abbaye de Thélème ou no Château Caucasien, aqui não seria, por certo, muito apreciado.

            Congestionadíssimo, o juiz gritou:

      Não sei o que me contém que não o esbofeteio!

      O medo — replicou sereno o presidente. 

            O juiz fez menção de se precipitar, mas um grupo de advogados conteve-o e levou-o para fora da sala.   ...,...  (de: Capítulo I)

 

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