OS VEGETARIANOS DO AMOR

 

                Falava com frases em pizzicato, como se tivesse dificuldade em respirar. Temperamento nervoso, sentia a emoção inevitável de quem vai submeter-se a um diagnóstico no consultório de um médico que ainda não conhece. Escolhera um clínico qualquer, não um desses ilustres cientistas que dogmatizam pareceres definitivos, porque queria proteger-se com a suprema possibilidade de uma apelação de sentença.

                — Não consigo manter-me de pé; não tenho apetite; vejo-me cada dia mais pálido. Frequentemente fico com as mãos húmidas e quentes. Tusso muito. Tenho palpitações cuja causa não consigo compreender. À noite, alguns décimos de febre.

                — Idade?

                — Vinte e oito.

                — Dispa-se.

                O médico perguntou-lhe se em casa se tinham verificado casos de morte, em indivíduos jovens, por doenças de longa duração, se em rapaz tivera bronquite, se alguma vez notara fios de sangue ao escarrar. E acrescentou:

                — Tire a camisa. Profissão?

                — Empregado.

                — Onde?

                — Num Liceu. Sou professor de várias coisas inúteis.

                O médico pôs-se a percurtir o tórax, demorando na região mais alta, à direita. Auscultou com o fonendoscópio, fazendo o confronto entre a impressão do vértice direito e a do vértice esquerdo. Demorou uns segundos na região do coração e disse simplesmente:

                — Vista-se. Tem um pouco de catarro brônquico, com ligeira reacção pleural. É uma córtico-pleurite. Vejamos o escarro.

                Pegou numa lâmina de vidro, distendeu nela uma gota de saliva com uma pinça de platina, passou-a duas ou três vezes sobre a chama de uma lamparina de álcool e coloriu-a com uma solução cor de rubi.

                O cliente leu no rótulo do frasco um nome que ficava bem a uma cançonetista: Fuesina.

                O médico lavou a lâmina com uma solução de ácido sulfúrico a dez por cento e repetiu a operação desta vez com uma solução azul.

                O cliente leu no frasco: Azul de Metileno.

                O médico tornou a passar a lâmina no calor da chama, deitou-lhe uma gota de óleo de cedro e pô-la sob a lente de um microscópio. Curvado sobre a ocular, manobrou um espelho e um parafuso de latão. Após longo silêncio, disse:

                — Pronto.

                — então?

                — Tranquilize-se. Agora vamos à radiografia.

                Passaram a um laboratório contíguo.

                — Se tem objectos de metal no bolso, tire-os. E também os suspensórios, se tiverem fivela.

                Fê-lo entrar numa espécie de gaiola e apagou todas as luzes. A ampola de Roentgen acendeu-se.

                — Respire profundamente — disse o médico examinando o anteparo amarelo. — Tussa.

                E falando mais para si mesmo do que para o cliente, murmurou:

                — O vértice está bastante claro. Alguns gânglios linfáticos calcificados no hilo do pulmão.

                Desligou os raios X.

                — Faça o obséquio — disse, precedendo-o na outra sala. — Sente-se.

                O doente não podia disfarçar a sua agitação.

                — Estou tísico?

                O doutor respondeu com a frase ritual:

                — Por enquanto não, mas pode ficar. Está na antecâmara da tuberculose.

                Não lhe foi difícil achar outras frases do género, que cientificamente são erros, mas que, como nem sempre se pode dizer a verdade, repetia todos os dias.

                — Pode tomar uma forma maligna.

                — E então?

                — E então é preciso que o senhor tome cuidado: dormir de janela aberta, procurar um clima seco; o frio não faz mal; a humidade, sim; passar oito ou dez horas na cama; fazer uma cura de cálcio e arsénico; não a hipernutrição, mas bom passadio; ovos, carne, leite; tirar a temperatura todos os dias, pesar-se uma vez por semana.

                — Mas em suma, doutor, diga-me a verdade: tosse, emagrecimento, febre; sei que formam o clássico triângulo da tuberculose incipiente.

                — Acalme-se, por favor. O senhor, como todos os doentes do seu nível mental, andou procurando na enciclopédia ou em algum livreco de vulgarização científica o que julga ser o seu mal. Os livros de medicina, nas mãos dos enfermos, fazem a temperatura subir vários graus e suscitam sintomas inexistentes. Siga as minhas prescrições e esteja tranquilo. Tem filhos?

                — Não.

                — Tanto melhor. Tem mulher?

                — Mais ou menos.

                — Vive com ela?

                — Sim e não.

                — Camas separadas.

                — Só tenho uma.

                — Arranje duas. Cuide de si e dos outros. Se os filhos não vieram até agora, a ocasião não é própria para essa encomenda. Se puder, deixe o liceu e mude de ares. Uma longa viagem por mar far-lhe-ia bem. Um cruzeiro. Repetir a viagem de Ulisses, livrando-se porém de Calipso, Circe e Nausícaa.

                — A viagem de Ulisses: terei que me contentar em contá-la aos meninos.

                — Então, vá para a montanha. O senhor é um tipo deprimível e a montanha far-lhe-á melhor que o mar. Não fume, não beba, evite as emoções violentas, e volte cá dentro de quinze dias. Nome?

                — Esaú Sánchez.

                O médico escreveu o nome no alto de uma página de um grande registo, onde havia impresso o esquema de dois pulmões em tamanho reduzido, e nele assinalou uma zona com um traço. Escreveu algumas linhas, entregou-lhe uma receita e acompanhou-o até à porta.

 

               

                Esaú saiu. Era domingo. Foi para fazer compreender aos homens que o trabalho é uma coisa agradável, que o Padre Eterno inventou feriados.

                Misturou-se com a multidão. Tinha medo do silêncio. Gostava das metrópoles porque nunca adormecem.  ...,...  (de: Capítulo I)

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