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 "Ervas, remédios que as cidades vêm esquecendo"

 com participação de Raulino Reitz e publicado no Jornal do Brasil em 11 de outubro de 1971

 Este artigo foi republicado no jornal O Estado, de Florianópolis, em 13 de outubro do mesmo ano. No fim da página é possível visualizar as publicações originais de ambos os jornais. Agradecemos ao colega Alexandre Amorim por ter localizado e compartilhado este artigo com o CAAC.


 

Ervas, remédios que as cidades vêm esquecendo
Tato Taborda


No tempo de nossos avós a farmácia começava no quintal, jardim ou vaso, onde eram plantadas ervas, bases de uma medicina caseira amparada na tradição. O valor curativo dos chás não sofria contestação e suas virtudes eram contadas em empoeirados tratados e nos almanaques.
O crescimento das cidades afastou esta terapêutica que continuava vigorosa no interior e ainda é preferida por muitos moradores dos grandes centros, em geral pobres, que encontram nas ervas medicinais remédio barato para seus males.
Até que ponto esta medicina caseira não passaria de crendice? Ou estaria em suas ingênuas infusões as respostas para o desgaste causado pelas tensões?

A resposta é dada por um cientista e um vendedor clandestino de ervas medicinais. Diferentes na cultura, os dois concordam em atribuir às folhas e raízes grande importância, lamentando o esquecimento a que elas estão sendo progressivamente relegadas.

DUAS FORMAÇÕES

Há 30 anos, dois rapazes estudavam plantas medicinais. Um deles seguiu o caminho da ciência e é hoje o padre Raulino Reitz, diretor do Jardim Botânico. O outro limitou-se à sabedoria popular: Antônio Sousa, vendedor clandestino de ervas medicinais, que aproveita as feiras para estender o encerado onde expõe suas folhas e raízes.
Padre Reitz, filho de colonos alemães de Santa Catarina teve educação apurada. Seminário em São Leopoldo, graduação e pós-graduação em Botânica nos Estados Unidos, na Universidade Agrícola de Iowa; estágios na Europa e a honra de ter descoberto mais de 300 novas espécies, em 30 anos de pesquisa.

Antônio Sousa aprendeu seu ofício com o pai, o velho João, com quem andava a pé pelas estradas poeirentas do sul de Minas oferecendo ervas, raízes e garrafadas. A pós-graduação de Antônio foi feita nas matas de Jacarepaguá, onde ele colhe as espécies que seu pai ensinou a identificar.
No gabinete austero do Jardim Botânico, no Rio, cercado pelos retratos de seus barbudos antecessores, padre Reitz goza uma tranquilidade que contrasta com o sobressalto constante de Antônio, sempre ameaçado de ver sua mercadoria apreendida pelos fiscais de feira.

Mas estes dois homens, iguais na idade, 47 anos, e tão diferentes na formação, concordam integralmente quanto ao valor curativo de certas plantas. Por exemplo: a catuaba e o cipó cravo.

VALOR ALTO

 Com olhar malicioso, Antônio de Sousa aponta para um pedaço de casca de árvore e para algumas raízes grossas e dá uma receita afrodisíaca:
- Moço, é só colocar umas lasquinhas de catuaba (a casca) e outras de cipó cravo (a raiz) numa garrafa de vinho moscatel, que deve ficar enterrada 30 dias. Depois é tomar dois cálices e parar quando sentir que está passando da conta.
Consultando alguns livros amarelecidos pela ação do tempo, padre Raulino confirma cientificamente a informação:
- O cipó cravo é o *tinanthus Facichilato*, conhecido há séculos como afrodisíaco. A catuaba é do mesmo gênero da cosca, um erytroxilon. Os tratados dizem que a catuaba não foi suficientemente estudada, mas todos concordam em lhe atribuir uma ação contra a impotência funcional dos órgãos genitais.

 Esta milagrosa ação seria a responsável pela valorização da catuaba, vendida a Cr$ 5,00, em pedaços com menos de 100 gramas, enquanto as outras ervas e raízes podem ser compradas por Cr$ 1,00 o maço ou pacote nas feiras da Zona Sul e pela metade deste preço nas da baixada.

REDUÇÃO DO MERCADO

Os tempos não têm sido fáceis para Antônio. Olhando sempre para os lados, ele procura se livrar de uma apreensão e a consequente perda do estoque. Mas a ameaça ao negócio não vem só dos fiscais de feira. Com a remoção das favelas no Rio, a clientela caiu em 50%. Fazendo rápida estatística, Antônio diz que de cada 10 fregueses "pelo menos uns 8 são pretos e a maioria é de mulheres, todos são pobres".
A grande massa de consumidores de plantas medicinais está nos subúrbios e nas cidades satélites do Grande Rio. Mas Antônio diz que lá o mercado é fraco:
- Na baixada, as pessoas cultivam suas próprias ervas ou então vão buscá-las na floresta. A gente da cidade é que não tem espaço para plantar.
São 10h30m e os fiscais ainda não apareceram. Os vendedores clandestinos de ervas na feira do Leblon não descuidam da esquina da Rua Bartolomeu Mitre, foi de lá que os fiscais vieram a última vez. Antônio está atento, mas não parece tenso. Qual razão desta calma?
- É que tomo sempre um chazinho de laranjeira antes de sair de casa.

TRANQUILIZANTE NATURAL

Padre Raulino também confessa:
- Quando estou tenso e preciso dormir uma boa noite, não dispenso uma chávena de chá com folhas de laranjeira, garantindo um sono tranquilo. Os gregos diziam que esta erva dá "temperança, continência e generosidade". Posso garantir que ela é um excelente tranquilizante natural.
Cidreira, hortelã, pimenta e as folhas de maracujá servem para chás com leve ação sedativa, esclarece padre Reitz, que considera estes moderadores mais eficientes que muitos remédios modernos e com a vantagem indiscutível de não trazer malefícios laterais.
Motoristas de ônibus e táxis, telefonistas, operadores da Bolsa e outros profissionais submetidos a tensão constante poderiam encontrar nestes remédios caseiros o alívio para o seu desgaste emocional. Entretanto, padre Reitz lembra que a ação das plantas medicinais é lenta, exigindo constância dos que as tomam. "Ninguém deve esperar curas milagrosas", diz.

BOM HUMOR

A freguesa, uma mulher gorda de andar difícil, quer umas erva boa para o fígado:
- Nada melhor que jurubeba, diz Antônio apontando para umas frutinhas verdes.
O diretor do Jardim Botânico apoia a sabedoria do vendedor clandestino:
- A jurubeba é uma maravilha. Um chá feito do fruto ou da raiz corrige o mau funcionamento do fígado, uma máquina que tem quase 20 funções. Um chá de jurubeba pode acabar com o mau humor, quando este é resultado do funcionamento deficiente do fígado.

FARMÁCIA COMPLETA

Apontando uma a uma, Antônio discorre sobre as virtudes das plantas:
- O saião é ótimo para úlceras e feridas que não querem cicatrizar. A quebra-pedras dissolve areias nos rins. A levante é especial para tosse e asma. A tarobina é depurativo do sangue e a erva que está do lado dela, a cana do brejo, cura moléstias venéreas. A losna é boa para o estômago e a folha do abacateiro é calmante e também serve para os fins. O pau-pereira é para estômago ou febres e a sete-folhas faz o freguês emagrecer. A quiné-pipiu alivia as dores de reumatismos e a erva-de-bicho melhora as hemorroidas.

Padre Raulino lamenta a falta de um livro, esquecido em seu hervário, em Brusque, indispensável para identificar as plantas citadas pelo nome vulgar de Antônio:
- Mesmo assim, sei que a quebra-pedras tem um princípio ativo que dissolve cálculos renais formados por excesso de ácido úrico, protegendo os rins contra a formação destes cristais. A folha do abacateiro tem o mesmo efeito e o saião tem as mesmas qualidades do picão, planta muito conhecida no Sul, um cicatrizante e anti-inflamatório. Há alguns anos, uma mulher que saiu desenganada de nosso hospital em Brusque, sem conseguir alívio para as feridas que cobriam suas pernas. Recomendei então que lavasse as feridas com chá de picão e em duas semanas ela ficou boa.

DIAGNÓSTICO IMEDIATO

Os 80 anos de experiência dão a Antônio Sousa grande desembaraço para responder às consultas. Para um freguês que chega com os olhos empapuçados, ele recomenda boldo, "nada melhor para ressacas". Outro sai com um maço de pau-pereira "para uma febrezinha". Uma freguesa encomenda uma garrafada de orelha de pau, buta e erva São João: um eficiente regulador do ciclo menstrual, explica Antônio.

No encerado, as ervas medicinais dividem espaço com "os banhos de descarga", uma linha que começa no suave e sensual manjericão, "uma garantia para segurar um amante", e termina nas venenosas folhas de comigo-ninguém-pode e do mestre-salas, usados para "fechar o corpo", reedições da poção mágica que tornou invulnerável o herói grego Aquiles ou da que o mago Panoramix dava aos seus colegas gauleses, como ele personagens da história em quadrinhos Asterix.

PESQUISA DIFÍCIL

Há muitos anos, padre Reitz fez um estudo sobre o jaborandi, constatando que mastigar a raiz desta planta deixa a boca anestesiada por muitas horas, eliminando as dores de dente. Entusiasmado, mandou amostras para um laboratório norte-americano, que identificou o princípio ativo desta planta, a piperina, igual ao encontrado nas pimentas. A pesquisa parou aí. Para investigar, diz ele, é preciso verbas e tempo.

Há pouco tempo, padre Reitz encomendou um estudo completo sobre o fruto do cedro, que tem forma de charuto e produz alucinações quando fumado. A alta toxidade do charutão de mamaco, como é chamado no Sul de Minas, era desconhecida dos botânicos, mas a investigação não progrediu por falta de verbas.

CIÊNCIA INDÍGENA

Buscando a cura do câncer, instituições norte-americanas estão testando mais de 14 mil plantas. Em Israel, uma espécie amazônica tem se mostrado eficiente no combate à calvície. Mesmo assim, afirma o padre Reitz, as nossas plantas nativas esperam ainda sua hora, quando serão retomados os estudos feitos por indígenas e missionários ao longo dos séculos.

A investigação da medicina indígena já levou ao quinino e ao curare, além de centenas de outras plantas usadas em curas no século XX. Entretanto, as propriedades do iagê ou caapi, planta alucinógena que os indígenas da Amazônia ocidental usavam para ver o futuro, ainda estão para serem descobertas. O cientista colombiano Barriga Vilalga isolou o princípio ativo desta planta, a iagina, que foi usado no tratamento da malária e do mal de Parkinson.

Mas para outro colombiano, o doutor Muños, o iagê, que era conhecido entre os incas como huasca, é um dos mistérios da natureza. O doutor Muños tomou um chá de iagê e descreve sua experiência como uma "disparada de sensações boas e más, alternadas". Daí o nome como era tratada pelos missionários: "erva do Céu e do Inferno".

Num dos livros do padre Reitz existe um relatório feito por um missionário que em 1852 visitou uma tribo no alto Orenoco, tendo assistido uma cerimônia durante a qual dezenas de jovens tomaram iagê. O missionário anotou uma dezena de depoimentos, bastante coincidentes. Segundo os indígenas, a primeira sensação era visual: um halo azul envolvia a paisagem e as formas se decompunham à medida que se afastavam do observador. Esta sensação agradável era substituída por intenso medo, quando toda a natureza parecia ameaçadora. As sensações agradáveis e terríveissucederam-se por 10 ou 12 horas.


 

JB_1971-10-11_p40

Página do Jornal do Brasil, de 11/10/1971, contendo o artigo.

 


ESTADO_1971-10-13_p05

Página do jornal O Estado, de 13/10/1971, contendo o artigo.

 


 

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