Reprodução do artigo "Ervas, remédios que as cidades vêm esquecendo" com participação de Raulino Reitz e publicado no Jornal do Brasil em 11 de outubro de 1971 Este artigo foi republicado no jornal O Estado, de Florianópolis, em 13 de outubro do mesmo ano. No fim da página é possível visualizar as publicações originais de ambos os jornais. Agradecemos ao colega Alexandre Amorim por ter localizado e compartilhado este artigo com o CAAC. |
Ervas, remédios que as cidades vêm esquecendo
A resposta é dada por um cientista e um vendedor clandestino de ervas medicinais. Diferentes na cultura, os dois concordam em atribuir às folhas e raízes grande importância, lamentando o esquecimento a que elas estão sendo progressivamente relegadas. DUAS FORMAÇÕES Há 30 anos, dois rapazes estudavam plantas medicinais. Um deles seguiu o caminho da ciência e é hoje o padre Raulino Reitz, diretor do Jardim Botânico. O outro limitou-se à sabedoria popular: Antônio Sousa, vendedor clandestino de ervas medicinais, que aproveita as feiras para estender o encerado onde expõe suas folhas e raízes. Antônio Sousa aprendeu seu ofício com o pai, o velho João, com quem andava a pé pelas estradas poeirentas do sul de Minas oferecendo ervas, raízes e garrafadas. A pós-graduação de Antônio foi feita nas matas de Jacarepaguá, onde ele colhe as espécies que seu pai ensinou a identificar. Mas estes dois homens, iguais na idade, 47 anos, e tão diferentes na formação, concordam integralmente quanto ao valor curativo de certas plantas. Por exemplo: a catuaba e o cipó cravo. VALOR ALTO Com olhar malicioso, Antônio de Sousa aponta para um pedaço de casca de árvore e para algumas raízes grossas e dá uma receita afrodisíaca: Esta milagrosa ação seria a responsável pela valorização da catuaba, vendida a Cr$ 5,00, em pedaços com menos de 100 gramas, enquanto as outras ervas e raízes podem ser compradas por Cr$ 1,00 o maço ou pacote nas feiras da Zona Sul e pela metade deste preço nas da baixada. REDUÇÃO DO MERCADO Os tempos não têm sido fáceis para Antônio. Olhando sempre para os lados, ele procura se livrar de uma apreensão e a consequente perda do estoque. Mas a ameaça ao negócio não vem só dos fiscais de feira. Com a remoção das favelas no Rio, a clientela caiu em 50%. Fazendo rápida estatística, Antônio diz que de cada 10 fregueses "pelo menos uns 8 são pretos e a maioria é de mulheres, todos são pobres". TRANQUILIZANTE NATURAL Padre Raulino também confessa: BOM HUMOR A freguesa, uma mulher gorda de andar difícil, quer umas erva boa para o fígado: FARMÁCIA COMPLETA Apontando uma a uma, Antônio discorre sobre as virtudes das plantas: Padre Raulino lamenta a falta de um livro, esquecido em seu hervário, em Brusque, indispensável para identificar as plantas citadas pelo nome vulgar de Antônio: DIAGNÓSTICO IMEDIATO Os 80 anos de experiência dão a Antônio Sousa grande desembaraço para responder às consultas. Para um freguês que chega com os olhos empapuçados, ele recomenda boldo, "nada melhor para ressacas". Outro sai com um maço de pau-pereira "para uma febrezinha". Uma freguesa encomenda uma garrafada de orelha de pau, buta e erva São João: um eficiente regulador do ciclo menstrual, explica Antônio. No encerado, as ervas medicinais dividem espaço com "os banhos de descarga", uma linha que começa no suave e sensual manjericão, "uma garantia para segurar um amante", e termina nas venenosas folhas de comigo-ninguém-pode e do mestre-salas, usados para "fechar o corpo", reedições da poção mágica que tornou invulnerável o herói grego Aquiles ou da que o mago Panoramix dava aos seus colegas gauleses, como ele personagens da história em quadrinhos Asterix. PESQUISA DIFÍCIL Há muitos anos, padre Reitz fez um estudo sobre o jaborandi, constatando que mastigar a raiz desta planta deixa a boca anestesiada por muitas horas, eliminando as dores de dente. Entusiasmado, mandou amostras para um laboratório norte-americano, que identificou o princípio ativo desta planta, a piperina, igual ao encontrado nas pimentas. A pesquisa parou aí. Para investigar, diz ele, é preciso verbas e tempo. Há pouco tempo, padre Reitz encomendou um estudo completo sobre o fruto do cedro, que tem forma de charuto e produz alucinações quando fumado. A alta toxidade do charutão de mamaco, como é chamado no Sul de Minas, era desconhecida dos botânicos, mas a investigação não progrediu por falta de verbas. CIÊNCIA INDÍGENA Buscando a cura do câncer, instituições norte-americanas estão testando mais de 14 mil plantas. Em Israel, uma espécie amazônica tem se mostrado eficiente no combate à calvície. Mesmo assim, afirma o padre Reitz, as nossas plantas nativas esperam ainda sua hora, quando serão retomados os estudos feitos por indígenas e missionários ao longo dos séculos. A investigação da medicina indígena já levou ao quinino e ao curare, além de centenas de outras plantas usadas em curas no século XX. Entretanto, as propriedades do iagê ou caapi, planta alucinógena que os indígenas da Amazônia ocidental usavam para ver o futuro, ainda estão para serem descobertas. O cientista colombiano Barriga Vilalga isolou o princípio ativo desta planta, a iagina, que foi usado no tratamento da malária e do mal de Parkinson. Mas para outro colombiano, o doutor Muños, o iagê, que era conhecido entre os incas como huasca, é um dos mistérios da natureza. O doutor Muños tomou um chá de iagê e descreve sua experiência como uma "disparada de sensações boas e más, alternadas". Daí o nome como era tratada pelos missionários: "erva do Céu e do Inferno". Num dos livros do padre Reitz existe um relatório feito por um missionário que em 1852 visitou uma tribo no alto Orenoco, tendo assistido uma cerimônia durante a qual dezenas de jovens tomaram iagê. O missionário anotou uma dezena de depoimentos, bastante coincidentes. Segundo os indígenas, a primeira sensação era visual: um halo azul envolvia a paisagem e as formas se decompunham à medida que se afastavam do observador. Esta sensação agradável era substituída por intenso medo, quando toda a natureza parecia ameaçadora. As sensações agradáveis e terríveissucederam-se por 10 ou 12 horas.
Página do Jornal do Brasil, de 11/10/1971, contendo o artigo.
Página do jornal O Estado, de 13/10/1971, contendo o artigo.
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