Boletim Mensal * Ano VI * Março de 2008 * Número 59

     

 

FADO TAMBÉM É CULTURA  (17)          

Alfredo Antunes

 

 

 Compadres. Dissemos que o Fado não teve pai nem mãe.(”Não  conheceu os pais/Nem tem certidão de idade”, cantava, lá pela década de 30, o velho Carlos Ramos ...)  Dissemos, também,  que ele – do mesmo modo que a Saudade – vem no sangue da nossa Raça, há milênios. É parte da nossa essência. Claro que não me refiro à canção bonitinha e acabada, do Fado de hoje. Refiro-me, sim, àquele travo de “tristeza-feliz”, de quem canta um Destino do qual não pode fugir. E esse travo é História! É Pátria! É Raça! Por isso, repito com Antero de Quental: “A nossa fatalidade é a nossa História ; ou com Afonso Lopes Vieira, que escreveu tão bonito: “Fados de Portugal.../ Fado que sois a nossa alma!”; ou ainda, com Júlio Dantas (1901): “É destino de Portugal morrer abraçado ao Fado!.

    Logo depois da morte da Severa (1846), apareceu na Mouraria outra extraordinária cantadeira (que só não superou a lendária Severa porque não teve um Conde de Vimioso como amante...). Chamavam-na pelo apelido de a “Borboleta da Mouraria”. Pois esta “infeliz”, costumava repetir: “O Fado é a minha Pátria!”. (Tanta repercussão teve a desditada “Borboleta” que, após sua morte – 1884 – alguém lhe dedicou um fado que terminava: “Em nascendo malfadada/ Torna-se a mais criminosa/ Como foi a viciosa/ A Borboleta, citada”).

              Mas retomemos. Isto de ver, no seu cantar, a Pátria, não é novo. Já nos idos de 1700, uma cançonetista francesa (uma tal Thérèse) dizia: “Por vezes a canção é a Pátria”. No caso do Fado, não tenho dúvida. É “um piedoso legado dos nossos ancestrais”, nas palavras de Pinto de Carvalho (1903). E, já antes dele, escrevia Rocha Peixoto: “...o fado e o que, nele, se diz de sonho, de sombra, de amor, de ciúme, de ausência, de saudade e, principalmente, de conformação com o cru e negro Destino, eis o que exprime dramaticamente a feição da alma nacional. O fado é português, é toda uma mentalidade, é toda uma História”. Quem não vê, aqui, algo de paralelo entre o Fado-Pátria e o “minha Pátria é a língua portuguesa”, de  Fernando Pessoa?

              Há, em ambas situações, um onírico instinto de identificação e, mais do que isso, de “personificação”. É como se o Fado deixasse de ser apenas música, para transcender-se numa condição arquetípica. Teixeira de Pascoaes, sentia  isto mesmo acerca da Saudade. Deu-lhe corpo, fê-la História. Transformou-a naquele sopro divino que “ia à proa das caravelas” para inspirar Portugal a eternizar-se em heroísmo. Já em 1908, no 1º número da revista “A Águia” -  com a qual se inicia a chamada “Renascença Portuguesa” -  Pascoaes exclama:  “Saudade é Afonso Henriques, Saudade é Ourique, Saudade é Vasco da Gama, Saudade é Camões...”. E, em número seguinte da mesma revista, o filósofo Leonardo Coimbra continua: “Em Camões, a Saudade adquiriu um valor universal e cósmico; em Frei Agostinho da Cruz, um valor divino. Mas esse valor alcançou um poder artístico definitivo, quando a Saudade irrompeu do mármore e se evolou em música no céu da Lusitânia”. E, surpreendentemente, conclui: “Em mármore, é a estátua do Desterrado; em música, é o Fado. Na estátua e no Fado, vemos e ouvimos a Saudade, plasticamente revelada!”.

              É difícil, caros Compadres, uma intuição tão feliz e tão profunda. Segundo este grande filósofo da “Renascença Portuguesa”, é possível escutar-se a Saudade. Como? Escutando o Fado! Aqui temos, meus Amigos, o Fado e a Saudade, encantados mutuamente, desde que nossa Raça se formou. E do mesmo modo que há Fado triste e alegre (embora sempre imposto por uma força inelutável), também a Saudade é  uma “dor que tem prazeres”, um“ gosto amargo de infelizes”, um “ delicioso pungir” – como escreve Almeida Garrett.

              Que o Fado é português, e tão antigo como nós, não creio ser mais necessário insistir. Mas também não precisamos  exagerar, como fez aquele fadista do século 19, quando cantava, com graça: “Quem criou o nosso fado/ Foi Adão no Paraíso/ Era um poeta de escacha/ Um fadista com juízo”. E, muito menos, andar por aí repetindo o que outro cantador entoava pela Mouraria, logo que a Severa morreu: “Até o próprio São Pedro/ À porta do céu sentado/ Ao ver entrar a Severa/ Bateu e cantou o Fado”. Pelos vistos, parece que o Fado era, para essa fadistagem boêmia, qualquer coisa de gostoso e de invejável. Talvez como compensação da desgraça... Tão bom, que chegava até a causar inveja ao Papa! : “Se o Padre Santo soubesse/ O gosto que o Fado tem/ Viria de Roma aqui/ Bater o Fado também”.

Mas, Compadres. Quero terminar, falando sério. Sobre a campa rasa da Severa, seus amigos escreveram: “Aqui jaz quem era o Fado”. Pode ser este o mote final para esta crônica: o Fado não é só canto; é como se fosse “pessoa”. O verdadeiro Fado é  um  Povo, uma História, uma soma ancestral de Vida e de Paixão. É, repito, esse rio caudaloso que traz, em sua milenar correnteza, toda a força de uma  Gente que, presa embora à crença num Destino fatal, luta,  cantando, por superar-se e vencer. Até à próxima, Compadres!

 

 

 

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