Boletim Mensal * Ano VI * Julho de 2008 * N.º 61

           

FADO TAMBÉM É CULTURA  (19)

 

Alfredo Antunes

 

 

            Amigos e Compadres. Continuamos na marcha de volta, desde a antiguidade até hoje. Sobre a forma como o Fado se cantava há muitas centenas de anos, por exemplo, claro que não temos dados.  Apenas intuições, que o senso histórico e  comum nos possibilitam. Mas desde as épocas em que Lisboa e Sevilha eram os dois grandes interpostos comerciais com os mercadores genoveses, florentinos e venezianos; ou seja, desde os idos de 1400, quando o tráfico de escravos africanos era intenso, e moeda de troca nesses dois pólos de irradiação colonial, temos dados muito concretos e, por vezes, surpreendentes.

         Como já vimos, o Fado, nestas épocas, é muito mais evidente como dança do que como canção. Coisa estranha! Falava-se popularmente em fado batido e em fadista e, quase nunca, em fado cantado. Já mencionei, em momento anterior, o caso dos marinheiros que, no cerco de Ceuta (1415), “cantavam fados”. Existem menções recorrentes, da nossa lírica poética, a certos lamentos cantados, que expressam uma saudade atávica de amantes sem sorte, desde o rei-poeta Dom Dinis (1260), até Camões que, ali por 1550 já suspirava: “Com que voz cantarei meu triste fado!”.

         Embora escassas as referências explícitas à palavra Fado, enquanto canção, são, no entanto, contínuas, e seculares, as referências a “cantos” que reproduzem, agudamente, os elementos intrínsecos do Fado. “O Fado – dizia Palmeirim, já nos começos de 1800 – tem a poesia natural das grandes angústias, a tristeza que sofrem desamparados. É o hino da desgraça, o romance das mágoas obscuras, a epopéia do povo. Não há sentimento doloroso que a melancolia do Fado não reproduza, desde a saudade do tombadilho até à aflição da taberna. É o pensamento dos que não sabem exprimi-lo”. E sobre a guitarra portuguesa – a eterna companheira do Fado - escreve o mesmo autor: “Está acostumada a cantar tristeza desde a mais remota antiguidade”. Por isso dou razão a Pinto de Carvalho(1903), quando garante que a nossa guitarra – “por ser o instrumento do Amor” -  jamais morrerá. Também me apetece lembrar outro poeta dos idos de 1800, que diz: “Em ouvindo uma guitarra, / Paro, tirando o chapéu;/ Pois não me importa morrer,/ Se houver guitarras no céu”. Ou então, o jovem Celestino David, contemporâneo daquele, que assim justifica a imortalidade da guitarra: “Porque a alma portuguesa/ Suspira dentro de vós,/ Guitarras, onde se reza/ O Fado dos meus avós”. Já nem queria ir tão longe como foi a lendária Cacilda Romero, cantadeira da Mouraria, também nos idos de 1800: “Dai-me a guitarra e o Fado/ E bendirei minha sorte./ Quero ouvi-lo até na morte,/ Ser com ele amortalhado”.

         Por tudo isto, se vê que Fado e Guitarra são enamorados eternos e que , durante séculos e séculos, foram eles os confidentes dos cantares portugueses; sobretudo dos cantares “à disgrácia”, dos cantares da má Sorte, do Destino e do “Fatum”marcado, de cada um. Não precisamos, portanto, vincular, rigorosamente, o fado canção ao manejo explícito da palavra Fado. Ela está sempre subjacente na nossa psique. Quem a criou foram os latinos, e quem a herdou foram os portugueses. Dos gregos veio a crença, dos latinos a palavra, dos celtas, o sentimento, e da evolução milenar da história e da cultura, vieram todos os elementos que, hoje, se juntam no fado-arte, no fado-canção, no fado-liturgia, no fado português. Vamos acabar de vez com polêmicas estéreis! Vamos desistir de considerar o Fado como produto  do Séc. XIX, só porque, antes, raras vezes se menciona a palavra Fado-canto!

         Meus Amigos! O que nasceu no Séc XIX, foi simplesmente o Fado do Séc. XIX! Nada mais! Melhor: foi o jeito fadista correspondente àquela conjuntura cultural e expressiva; uma manifestação algo diferente daquele caudal secular que vem de longe, sempre  incorporando elementos novos. Esta saga de renovação seguiu seu curso no Séc. XX e já se vai anunciando diferente no século que vivemos. O Fado só é estático quanto ao conceito-crença. Quanto à expressão, é sempre diferente como diferente é a Vida e a História!   Chega a ser ridículo, do ponto de vista cultural, dizer que o Fado começou há 150 anos! Como se, de repente, e não mais que de repente, alguém, ali por 1820, aparecesse, do nada, falando de “fado de umbigada”, “fado batido” e “fado de aparar”, sem que, antes (e muito antes!), ninguém conhecesse a palavra “Fado” enquanto genuíno cantar histórico...

         Basta ir à Biblioteca da Ajuda, em Lisboa, e consultar um documento de 1700, onde um cantador de fados diz, com muita graça: “Mas depois de apanhar/ Quero fadar com Iaiá”. (Fadar = cantar o fado). Ou invocar o Visconde de Castilho que se refere a uma tal Vieira Luzitano (1699) que, numa festa, arrancava da guitarra “os acordes dulcíssimos de um fado”.

         Amigos. Como disse, estamos de volta. Estamo-nos aproximando do cantar da Amália, da Tereza de Noronha, do Marceneiro... do Compadre Henrique Dias. Já temos muitos elementos que nos ajudarão a compreender melhor este fenômeno cultural...Na próxima crônica vou situar-me justamente no polêmico Séc. XIX, para vermos o “ambiente” onde o  fado de agora se começou a “formatar”.Até lá, Compadres!

 

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