O Transexual e a cirurgia de redesignação de sexo
por Enéas Castilho Chiarini Júnior*
O presente
trabalho tem por objetivo analisar a possibilidade jurídica do
pedido, formulado por transexual, de autorização para realização de
cirurgia de redesignação de sexo.
Conforme lembra
Luiz Alberto David Araújo, "não há dúvida de que o transexualismo é
uma alteração da psique. Essa alteração, se examinada em cotejo com
o padrão de regularidade (identificação do sexo psicológico com o
sexo biológico), dificulta a integração social, que deve ser vista
sob o prisma do transexual (como sujeito de direitos e obrigações
como todos nós) e não sob o prisma da maioria, que, num primeiro
momento, segrega, rejeita e impede essa integração."
Seguindo-se a
linha apontada por este jurista, será demonstrado que, na realidade,
ocorre um conflito apenas aparente entre a lei e a possibilidade
jurídica da autorização da cirurgia de ablação de sexo, de forma que
o que deve prevalecer, neste caso, além do direito à intimidade e à
vida privada do indivíduo transexual, é, principalmente, o direito
sagrado que este têm à felicidade.
O transexual,
segundo a CID-10 (10ª Revisão da Classificação Internacional das
Doenças), que corresponde ao item F64.0, caracteriza-se por: "um
desejo de viver e ser aceito como um membro do sexo oposto,
usualmente acompanhado por uma sensação de desconforto ou
impropriedade de seu próprio sexo anatômico e um desejo de se
submeter a tratamento hormonal e cirurgia para seu corpo tão
congruente quanto possível com o seu sexo preferido."
Segundo ainda
Luiz Alberto David Araújo, "...No Manual diagnóstico e estatístico
de transtornos mentais, o transexualismo está no capítulo de
transtornos de identidade de gênero. O Manual inicia com
'características diagnósticas', dizendo: '...há dois componentes no
Transtorno da Identidade de Gênero, sendo que ambos devem estar
presentes para fazer o diagnóstico. Deve haver evidências de uma
forte e persistente identificação com o gênero oposto, que consiste
no desejo de ser, ou a insistência do indivíduo de que é do sexo
oposto.' Segue: '...também deve haver evidências de um desconforto
persistente com o próprio sexo atribuído ou de uma sensação de
inadequação no papel de gênero deste sexo. O diagnóstico não é feito
se o indivíduo tem uma condição intersexual física concomitante (por
ex. síndrome de insensibilidade aos andróginos ou hiperplasia
adrenal congênita). Para que este diagnóstico seja feito, deve haver
evidências de sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no
fundamento social ou ocupacional em áreas importantes da vida do
indivíduo.'"
Delton Croce
explica que: "no transexualismo não ocorre nenhuma alteração
anatômica ou hormonal; a genitália externa e os testículos ou os
ovários mostram desenvolvimento normal. Aqui sucede discordância ou
conflito entre os caracteres orgânicos e psíquicos do sexo (sexo
psicológico). A cromatina de Bar, colhida por esfregaço bucal, não
proporciona resultados conflitantes para a determinação da
identidade sexual. Chamado hermafroditismo psíquico...situada na
'cadeia contínua' ou seqüência da intersexualidade como uma das
formas de transição entre o hermafroditismo masculino e o
homossexualismo masculino, nos casos de transexualismo masculino ou
entre o hermafroditismo feminino e o homossexualismo feminino, nas
de ocorrência de transexualismo feminino, na qual o invertido
psicossexual se identifica com o sexo oposto, negando assumir a
identidade do seu verdadeiro sexo anatômico, exigindo, com
insistente determinação compulsiva, ao cirurgião plástico, a
operação de reajustamento sexual a fim de poder assumir a identidade
de seu verdadeiro gênero. Dessarte, é nossa opinião concorde com
Harry Benjamin: os transexuais não são doentes, mas são normais sob
todos os aspectos, além do que a sua identidade de gênero é bem
definida e normal." e continua mais adiante "Pode acarretar uma
conduta homossexual reprimida, com a adoção de comportamento social
característico do sexo oposto, bem como o irrefreável desejo de uma
alteração cirúrgica para completar os impulsos sentidos...Do ponto
de vista psicológico, o transexual masculino é verdadeiramente 'um
homem com cérebro de mulher'. Desse modo, não há de ser sempre a
cirurgia mutiladora, desnecessária e fixadora irreversivelmente da
doença mental do transexual, a forma ideal de tratamento e cura da
ansiedade de castração delirante, gerada de enorme inferioridade
sexual de um homossexualismo coibido e cujo sentimento de culpa é
punido pela angústia". Mais adiante, explica que, referente à
cirurgia de redesignação de sexo: "..quando, todavia, o cirurgião a
comete sem dolo, não infringe a legislação vigente, nem o Código de
Ética Médica, sendo a sua responsabilidade a mesma referente a
qualquer outra atuação cirúrgica. Isto porque a intenção do médico
não é causar dano, mas curar ou minimizar o sofrimento físico ou
mental do transexual."
Homossexualismo, como nos ensina Delton Croce, é "a atração erótica
por indivíduos do mesmo sexo", podendo o homossexual praticar atos
libidinosos ou apenas exibir fantasias sexuais com relação à
indivíduos do mesmo sexo, apresentando certa indiferença ou
repugnância por indivíduos do sexo oposto. Pode atingir ambos os
sexos, de onde recebe a denominação de masculina, se praticada entre
homens, ou feminina, se praticada entre mulheres.
Para Orlando
Soares, apud Luiz Alberto David de Araújo: "Homossexualismo é a
anomalia sexual que consiste na prática ativa, passiva ou
ambivalente, de atos libidinosos, entre indivíduos do mesmo sexo.
Denomina-se inversão sexual."
Não existe um padrão comportamental típico que defina o
homossexualismo, apresentando-se na prática, diversas gradações no
aspecto físico, que podem ir, no caso de homossexualismo masculino,
por exemplo, desde a completa efeminação exteriorizada por gestos e
maneiras de se comportar, até a exterior aparência viril e
heterossexual.
O
homossexualismo masculino costuma receber as denominações de
uranismo, pederastia e sodomia; e o feminino é conhecido por safismo
ou lesbianismo e tribadismo. Não se trata de termos sinônimos,
embora na prática seja comum empregar-se estes termos sem nenhuma
distinção.
A diferença que
existe entre homossexual e o transexual é, portanto, justamente o
desconforto psicológico que este possui com relação ao seu próprio
sexo genético, de maneira que o transexual não aceita o próprio
corpo, chegando até mesmo, em alguns casos, a tentar realizar, por
si mesmo, a cirurgia de ablação de sexo (conforme narra Luiz Alberto
David Araújo); "a realidade do transexual é difícil, pois convive
permanentemente com um quadro de infelicidade. Não pode ser feliz
enquanto não 'corrigir' o erro da natureza."; enquanto que o
homossexual, normalmente, não possui qualquer desconforto com seu
sexo, muito pelo contrário, embora tenha uma atração por indivíduos
do mesmo sexo, deseja continuar pertencendo ao seu sexo.
Como
encontramos na obra de Luis Alberto David Araújo, sexo "...para o
Dicionário Flammarion, 'é o conjunto de características estruturais
e funcionais que distingue o macho da fêmea.'" e mais adiante "Odom
Maranhão assim define sexo: 'Não se pode mais considerar o conceito
de sexo fora de uma apreciação plurivetorial. Em outros termos, o
sexo é a resultante de um equilíbrio de diferentes fatores que agem
de forma concorrente nos planos físico, psicológico e social' e na
seqüência: 'Assim, fatores genéticos, endócrinos, somáticos,
psicológicos e sociais se integram para definir a situação de uma
pessoa em termos sexuais. As implicações jurídicas serão decorrentes
dessa integração.'"
De um modo
geral, os autores ressaltam que para a determinação do sexo de um
indivíduo, é necessário que se conjuguem todos estes critérios, o
cromossômico, o fenotípico, o gonadal e o psicológico, sendo que
"Havendo desarmonia entre eles [os componentes para determinação do
sexo], o componente que apresenta maior relevância é o psicológico."
(Tereza Rodrigues Vieira, citada por Luiz Alberto David Araújo)
É possível,
analisando-se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
agosto de 1789, perceber os traços básicos do moderno direito de
liberdade, no artigo 4º, segundo o qual, qualquer indivíduo pode
fazer tudo o que não afete a liberdade dos demais.
"Sem
pretendermos exaurir todo o conteúdo do direito à vida privada,
porém atentos às lições do Direito Comparado, podemos apresentar os
seguintes componentes definidores desse conteúdo: liberdade sexual;
liberdade da vida familiar; intimidade; além de outros aspectos de
intercessão com outros bens ou atributos da personalidade." (José
Adércio Leite Sampaio)
Uma boa idéia
do conteúdo do direito à vida privada, foi dado pelo Encontro de
Juristas Nórdicos, de Estocolmo em 1967, segundo o qual, o direito a
vida privada seria o "...direito a viver a própria vida com um
mínimo de ingerência externa. Dito de forma mais ampla, significa: o
direito de o indivíduo viver como preferir..." (José Adércio Leite
Sampaio)
Conforme os
ensinamentos de José Adércio Leite Sampaio, "integra a liberdade
sexual a faculdade de o indivíduo definir a sua orientação sexual,
bem assim de externá-la não só de seu comportamento, mas de sua
aparência e biotipia. Esse componente da liberdade reforça a
proteção de outros bens da personalidade como o direito à
identidade, o direito à imagem e, em grande escala, o direito ao
corpo. De Cupis define identidade sexual, no desdobramento do
direito à identidade pessoal, como o 'poder' de aparecer
externamente igual a si mesmo em relação à realidade do próprio
sexo, masculino ou feminino, vale dizer, o direito ao exato
reconhecimento do próprio sexo real, antes de tudo na documentação
constante dos registros do estado civil."
Segundo José Adércio Leite Sampaio, o disposto no artigo 5º, inciso
X da Constituição Federal, que diz serem "...invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas...",
poderia ser apresentado como uma "regra e princípio", que poderia
ser expressada da seguinte maneira: "Estão proibidas as intervenções
do Estado na esfera da intimidade e da vida privada das pessoas, se
não forem previstas em lei ou se não forem necessárias ao
cumprimento dos princípios opostos que, devido às circunstâncias do
caso, tenham precedência frente ao princípio da inviolabilidade da
intimidade e vida privada."
Como todo o
ordenamento jurídico emana da constituição, esta deve conter os
princípios básicos norteadores de todo o ordenamento jurídico
positivo do país. Por isso, ao se interpretar uma norma qualquer,
deve-se, sempre, levar em consideração as normas constitucionais,
que constituem o ápice da pirâmide normativa.
Para Celso Ribeiro Bastos, "os princípios constitucionais são
aqueles que guardam os valores fundamentais da ordem jurídica. Isto
só é possível na medida em que estes não objetivam regular situações
específicas, mas sim desejam lançar a sua força sobre todo o mundo
jurídico..."
Elencado como
princípio fundamental da República Federativa do Brasil, no artigo
1º, inciso III da Constituição Federal de 1988, a "dignidade da
pessoa humana" é, portanto, um dos mais importantes princípios da
nossa legislação.
Para Celso Ribeiro Bastos, "embora dignidade tenha um conteúdo
moral, parece que a preocupação do legislador constituinte foi mais
de ordem material, ou seja, a de proporcionar às pessoas condições
para uma vida digna, principalmente no que tange ao fator econômico.
Por outro lado, o termo 'dignidade da pessoa' visa a condenar
práticas como a tortura, sob todas as suas modalidades, o racismo e
outras humilhações tão comuns no dia-a-dia de nosso país."
Ou seja, pelo
princípio da dignidade, eleva-se a pessoa humana à uma condição de
valor em si mesma, devendo ser respeitada a sua liberdade, sua
intimidade e vida privada, além de outros direitos básicos, os quais
foram devidamente garantidos pela nossa Constituição de 1988, e que
serão analisados à seguir.
A Constituição
Federal, além de trazer a liberdade como objetivo fundamental da
República Federativa do Brasil, na tentativa de "construir uma
sociedade livre" (artigo 3º, inciso I), traz ainda, em vários
momentos a idéia de liberdade; como é por exemplo o caso do caput do
artigo 5º que apresenta "...aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito [...] à
liberdade...", ou, também é o caso da "livre manifestação do
pensamento" (artigo 5º, inciso IV), da "liberdade de consciência e
de crença" e do "livre exercício dos cultos religiosos" (artigo 5º,
inciso VI), da "livre expressão da atividade intelectual" (artigo
5º, inciso IX), do "livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou
profissão" (artigo 5º, inciso XIII), da "livre locomoção no
território nacional" (artigo 5º, inciso XV), da "plena liberdade de
associação para fins lícitos" (artigo 5º, inciso XVII). Isto apenas
para apresentar-se alguns exemplos, ficando, apenas, com alguns
direitos do artigo 5º. Fica claro, desta forma, que a Constituição
Federal de 1988, traz expressamente o princípio da liberdade como
fazendo parte dos "direitos [...] individuais e coletivos".
Liberdade quer dizer poder fazer as coisas conforme a sua própria
vontade, sem interferência externa, desde que isto não implique em
prejuízo para as outras pessoas. Desta forma, o transexual deve ser
livre para realizar a cirurgia de redesignação de sexo, segundo a
sua própria vontade, sem interferência de ninguém, nem mesmo do
Estado, pois este tem como obrigação somente proibir o estritamente
necessário ao bem comum.
A
transexualidade não implica em prejuízo à ninguém e nem à sociedade.
Não prejudica à outros indivíduos, pois somente são atingidos pela
união que envolva um transexual os dois cônjuges e ninguém mais. Não
procede também a vã tentativa de apontar a transexualidade como mal
exemplo para a sociedade, sobretudo para os jovens; pois, todo mal
exemplo cai frente à uma boa educação e aos esclarecimentos
referentes ao tema. Um jovem bem informado, só experimenta drogas se
ele assim o desejar, não será usuário, apenas porque os amigos usam.
Da mesma maneira, o jovem bem esclarecido e informado, somente se
entregará ao desejo de se submeter a cirurgia de redesignação de
sexo se for, interna e anteriormente, um transexual.
O princípio da legalidade é apontado pelo inciso II do artigo 5º da
Constituição Federal, que afirma: "ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Desta forma,
pode-se considerar válida a norma que Bobbio chamou de "norma geral
exclusiva", e que é uma das premissas do pensamento kelseniano,
segundo a qual "tudo o que não está expressamente proibido, está
implicitamente permitido", e que constitui uma maneira "fácil" de se
evitar lacunas no ordenamento jurídico.
Uma vez que o
legislador é impossibilitado, pela própria natureza intrínseca de
ser humano, de prever todas as possibilidades de ações, este mesmo
legislador preferiu, implicitamente, reconhecer que tudo o que não
for expressamente normatizado através do ordenamento jurídico
positivo, enquadra-se na categoria de ações "facultativas", as
quais, podem, ou não, ser realizadas, de acordo, única e
exclusivamente, com a vontade do indivíduo diretamente interessado,
posto que é um princípio intimamente ligado com o da liberdade.
Sendo que, assim, deve ser considerado o direito do transexual à
cirurgia de redesignação sexual como uma ação facultada, que está
permitida implicitamente pelo ordenamento jurídico uma vez que este
não a proíbe.
Segundo o
inciso IV do artigo 3º da Constituição Federal, um dos objetivos da
República Federativa do Brasil é "promover o bem de todos". Isto
significa que, o governo, em sentido estrito, e todo o país, em
sentido amplo, deve procurar beneficiar à todos, e não à este, ou
àquele grupo de pessoas. Um dos fundamentos da democracia, é levar
em consideração, também a minoria, e não só a maioria.
Outro exemplo, sobre a necessidade de se procurar o bem comum, desta
vez infra-constitucional, é dado pelo artigo 5º da Lei de Introdução
ao Código Civil, que é tido como norma geral de hermenêutica,
segundo o qual "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins
sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum."
Deve-se lembrar, ainda, do artigo 60 da Constituição Federal de
1988, o qual traz, em seu parágrafo 4º, o que os doutrinadores
chamam de "cláusulas pétreas", ao dispor que "não será objeto de
deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] IV - os
direitos e garantias individuais". Ou seja, os direitos e garantias
trazidas pela Constituição não podem ser revogados enquanto esta
mesma Constituição estiver em vigor. Por força deste dispositivo,
qualquer projeto de emenda que procure impedir ou restringir tais
"direitos e garantias individuais" não poderá nem mesmo ser votado.
Com isso, a própria Constituição, mais uma vez, mostra parâmetros
válidos para a questão de conflitos entre direitos fundamentais,
elevando estes a uma categoria de direitos que deverão permanecer
inatingíveis enquanto a Carta Magna estiver em vigência.
Cumpre
ressaltar que no final de 1985 travou-se um grande debate em torno
da escolha entre duas espécies de Assembléia Constituinte, a
Assembléia Constituinte autônoma, e a Assembléia Congressual
Constituinte, aquela sendo eleita única e exclusivamente para
elaborar a nova Constituição, e esta sendo formada pelos integrantes
do Congresso Nacional, que deveriam votar a Constituição, além de
cumprir seu mandato normal.
Segundo João
Baptista Herkenhoff, "a Constituinte congressual tenderia a ser mais
conservadora do que uma Constituinte exclusiva, por dois motivos: 1º
porque facilitaria a eleição dos velhos políticos, ligados às
máquinas eleitorais, e desencorajaria a participação de elementos
descompromissados com esquemas [...] 2º porque um Congresso
Constituinte, que já nasce sem liberdade de discutir a própria
estrutura do Poder Legislativo, tenderia a reproduzir tudo o mais,
ou fazer mudanças apenas superficiais e periféricas..."[sic]
O mesmo autor
lembra também que "o aspecto mais chocante da decisão governamental,
que optou pela Constituinte congressual e, ao mesmo temo, [sic] uma
das razões mais fortes para que o Governo tomasse essa decisão,
consistiu no fato de que a Constituinte congressual teria a
participação, como constituintes, dos senadores eleitos em 1982.
Esses senadores, de direito, não poderiam ser membros natos da
Constituinte, pois ninguém pode ser constituinte sem mandato
específico."
Diante deste quadro histórico, é fácil notar que a Assembléia
Nacional Constituinte de 1988 não tinha a liberdade necessária para
aprovar a Constituição conforme deveria, sendo influenciada pelo
regime militar que na época dava seus "últimos suspiros".
Se o Poder
Constituinte não possuía a liberdade necessária para seu trabalho,
fica fácil compreender porque não existe em toda a Constituição
vigente qualquer norma explícita que proteja o transexual, tendo
sido feita a tal proteção apenas indiretamente por meio de
princípios-garantias gerais de liberdade e de não-descriminação em
função de sexo. Por outras palavras, não é lícito afirmar que caso o
Poder Constituinte quisesse proteger o transexual teria feito de
forma explícita, uma vez que não possuía a liberdade necessária para
fazê-lo.
Para reforçar tal argumento, cumpre trazer o texto que fora aprovado
pela subcomissão dos Negros, Populações Indígenas e Pessoas
Portadoras de Deficiência do Congresso Constituinte para o que seria
o artigo 2º da Constituição Federal, que, ao final fora substituído
sob o argumento de "enxugar" o texto da Constituição. O texto era o
seguinte: "Art. 2º - Todos, homens e mulheres, são iguais perante a
lei, que punirá como crime inafiançável qualquer discriminação
atentatória aos direitos humanos e aos aqui estabelecidos. Parágrafo
1º - Ninguém será prejudicado ou privilegiado em razão de
nascimento, etnia, raça, cor, sexo, trabalho, religião, orientação
sexual, convicções políticas ou filosóficas, ser portador de
deficiência de qualquer ordem e qualquer particularidade ou condição
social..." (Justificação da Proposta de Emenda à Constituição
Federal, nº 139 de 1995, in União homossexual: o preconceito e a
justiça, Maria Berenice Dias)
Assim, é fácil
concluir que houve a tentativa de se fazer constar na Constituição
Federal de 1988 a proteção aos transexuais, porém, devido à falta de
técnica do Poder Legislativo, tal proteção terminou por ser
"enxugada".
Aliás, tais argumentos valem também para o Novo Código Civil que
entrará em vigor em 2003, uma vez que seu projeto vem de 1975, ou
seja, desde a época da Ditadura Militar, não tendo sofrido grandes
alterações de lá para cá.
Beccaria, sobre
o contrato social de Rousseau, afirma que "...somente a necessidade
obriga os homens a ceder parcela de sua liberdade; disso advém que
cada qual apenas concorda em pôr no depósito comum a menor porção
possível dela, quer dizer, exatamente o que era necessário para
empenhar os outros em mantê-lo na posse do restante."
Darcy Azambuja,
afirma que "...Se a vontade geral, criada pelo contrato, fosse
ilimitada, seria criar o despotismo do Estado, ou melhor, das
maiorias, cuja opinião e decisão poderia arbitrariamente violentar
os indivíduos..."
O próprio Rousseau revela que "...o maior bem de todos, que tal deve
ser o fim de todo o sistema de legislação, achá-lo-eis resumido
nestes dois objetos principais, a liberdade e a igualdade; a
liberdade, porque toda a dependência particular é outra tanta força
tirada ao corpo do Estado; a igualdade, porque sem ela não pode
subsistir a liberdade."
É fácil
concluir, portanto, que o Estado não pode estipular restrições à
liberdade individual que não sejam estritamente necessárias ao bem
comum, de forma que deve prevalecer a liberdade de orientação
sexual, sob pena de quebra do contrato social, o que legitimaria ao
povo se levantar contra o próprio Estado, a fim de voltar ao
primitivo estado de natureza.
Segundo Darcy
Azambuja, "a quase totalidade dos escritores confunde, infelizmente,
os conceitos de fim e de competência do Estado, e daí uma série de
dificuldades irremovíveis, chegando muitos à conclusão de que são
tão variáveis, no tempo e no espaço, os fins do Estado, que é
impossível determiná-los. Ora, o que varia sem cessar não são os
fins do Estado, e sim a espécie de atividade, os meios empregados,
os objetos da ação do Estado para atingir os seus fins [...] O fim
do estado é o objetivo que ele visa atingir quando exerce o poder.
Esse objetivo, podemos antecipar, é invariável, é o bem público. A
competência do Estado é variável, conforme a época e o lugar [...]
Quando alguns pensadores afirmam que o fim do estado é realizar para
o indivíduo uma vida melhor, ou o seu aperfeiçoamento físico, moral
e intelectual, ou ainda a civilização, é lícito entender que todos
eles, afinal de contas, assinalam como fim do Estado o bem público"
"Não obstante o
bem geral vem a ser o bem dos indivíduos, ele não se confunde com o
bem individual ou o bem de cada um. Os homens têm aspirações e
necessidades diferentes, e o Estado não poderia realizar a
felicidade de cada um, ainda que dispusesse de poderes e recursos
infinitos. O bem público, de outro lado, não é a simples soma do bem
de todos os que formam a sociedade estatal, pois, no bem público não
entram os interesses ilegítimos dos indivíduos, que neles vêem no
entanto seu bem particular, e não entram também certos interesses
lícitos, ou porque não está no poder do Estado realizá-los ou
porque, em certas circunstâncias, o bem particular de alguns tem de
ser sacrificado ao bem mais importante de todos ou outros. Catherein
assim definiu o bem público: 'complexo de condições indispensáveis
para que todos os membros do Estado - nos limites do possível -
atinjam livremente e espontaneamente sua felicidade na terra.'"
(Darcy Azambuja)
"...Toda a
intervenção do Estado é nociva ao bem comum; ele apenas deve dar
segurança aos indivíduos e não intervir na vida social senão para
manter a ordem. Liberdade de profissão, liberdade de trabalho,
liberdade de comércio, toda a atividade livre: o Estado não deve
pretender conhecer melhor do que eles próprios os direitos dos
indivíduos. [...] Salvo no que diz respeito a segurança interna e
externa, cuja manutenção não poderia nunca ser deixada aos
particulares, a competência do Estado é supletiva, isto é, ele só
faz quando os particulares não podem fazer..." (Darcy Azambuja)
Se o fim do
Estado é, conforme a Nossa Constituição a realização do bem comum,
com a criação de uma sociedade justa e solidária, sem distinção de
qualquer natureza, então, novamente mostra-se claro que o direito de
liberdade de opção sexual deve ser respeitado, acolhendo-se a
possibilidade jurídica do pedido de autorização de realização da
cirurgia de redesignação de sexo.
Conforme
demonstrado, todos têm direito à liberdade e seus desdobramentos -
intimidade e vida privada -, além de que, e principalmente, o estado
tem como finalidade auxiliar o indivíduo na busca de sua felicidade,
de maneira que não é aceitável, do ponto de vista jurídico, que seja
negada ao transexual a autorização da realização da cirurgia de
redesignação de sexo. É neste sentido as mais acertadas decisões de
nossos tribunais, como por exemplo o acórdão do TJMG, que afirma:
"A realização
de cirurgia plástica reparadora de genitália deformada e indefinida
(disforia de gênero ou transexualismo), cuja necessidade é
demostrada por diagnósticos, não depende de autorização judicial,
sendo de absoluta competência da medicina e resolvendo-se dentro dos
princípios da ética, da necessidade, da conveniência para o
paciente, segundo o prudente critério do cirurgião. A lesão
corporal, nessa cirurgia, não se identifica na tipicidade criminosa
definida na lei, dada a falta do dolo específico e a plena
justificativa de sua realização como meio indispensável ao resultado
benéfico." (4ª CC TJMG, Apelação Cível n. 75.874/4. Voto vencido do
Desembargador Francisco Figueiredo. Apelantes: J.R.M.C. e C.M.G.;
Apelado: o Juízo, j. 16.06.1988).
Cumprindo
ressaltar que o voto vencido, do Des. Francisco Figueiredo, é no
sentido de que "Por se tratar de cirurgia transmutativa, a acarretar
mudança de sexo, não pode a Justiça ficar à margem do fato, tanto
assim que, para qualquer alteração que se faça no registro civil de
nascimento, é necessária a autorização judicial. Assim, é de se
autorizar a expedição do alvará para a cirurgia plástica reparadora
da genitália, observada toda a integralidade da ordem e ética
médicas, o que propiciará ao paciente sua integridade física,
biológica, sexual e psicológica e condicionará sua vida num estágio
superior de felicidade, estágio de escopo da Justiça e do Direito."
Portanto, o voto vencido não nega a possibilidade da cirurgia,
apenas levanta a questão da posterior alteração do registro civil de
nascimento do transexual.
Cabendo aqui os
argumentos do Juiz José Fernandes Lemos de Recife - o qual julgou
procedente o pedido de um transexual para, "deferindo-o, autorizar
se proceda no assentamento do registro civil do requerente a
modificação do sexo, de masculino para feminino, e no prenome, de
SRA para SRA, mantidas as demais qualificações" - , que lembra que
"a questão deve ser vista sob o aspecto patológico e humano, como
enfermidade, nunca voltada para avaliações em que critérios de
moralidade, dogmas e ética se sobreponham em primeiro plano, porque,
quase sempre impregnados de preconceitos rígidos, e no mais das
vezes, informados por mentalidades retrógradas e reacionárias,
impediriam uma apreensão imparcial do caso" (Autos n. 2098/89).
"...O
psicanalista Jurandir Freire, em entrevista ao Jornal do Psicólogo,
de abril/95, indagado sobre algumas questões de seu mais recente
livro, intitulado Homoerótico, respondeu: 'Minha proposta é que
deixemos de identificar socialmente pessoas por suas preferências
sexuais [...] Porque nos interessamos tanto pela preferência sexual
das pessoas, a ponto de julgarmos muito importante identificá-las
socialmente por este predicado? Quem disse que este mau hábito
cultural tem de ser eterno? É isto que, a meu ver, importa. Quando e
de que maneira poderemos ensinar, convencer, persuadir as novas
gerações de que classificar sociomoralmente pessoas por suas
inclinações sexuais é uma estupidez que teve, historicamente,
péssimas conseqüências éticas. Muitos sofreram por isso; muitos
mataram e morreram por essa crença inconseqüente e humanamente
perniciosa.'" (Rodrigo da Cunha Pereira)
Para que um país possa deixar de figurar entre os "países de
terceiro mundo", e passe a integrar o chamado "primeiro mundo", é
necessário que este país emergente procure seguir os ensinamentos
vindos dos países desenvolvidos, não apenas "copiando" os planos
econômicos, ou o liberalismo político de um ou outro país, mas, ao
contrário, e principalmente, espelhando-se nos princípios que
norteiam tais países desenvolvidos, e assimilando, conforme as
características locais, seus ideais. Sendo de conhecimento geral,
que a maioria dos países de "primeiro mundo" buscam, de alguma
forma, e em diferentes estágios, a legalização de tais cirurgias,
posto que trata-se de um desmembramento do direito à liberdade
individual, resta que, em nosso país, seja igualmente buscada tal
legalização, afim de que possa haver uma menor discriminação entre
os indivíduos que aqui residem, para que possam ser atingidos os
ideais aspirados pela nossa Constituição Federal em seu artigo 3º.
Deve-se lembrar ainda que a grande maioria dos atentados terroristas
que acontecem no mundo, inclusive os ocorridos no dia 11 de setembro
de 2001, e que deram origem à guerra entre os EUA e o Afeganistão,
assim como a Segunda Guerra Mundial, são fruto da intolerância, e
esta sim, deve ser completa e definitivamente banida de todo o
ordenamento jurídico, pois como já dizia a Declaração dos Direitos
Humanos, todo indivíduo nasce livre.
Um Estado só se
torna uma grande nação, quando o povo que o compõe, age por amor à
pátria. Só é possível amar, e respeitar um Estado, respeitando e
admirando seus governantes (entendendo-se governantes no sentido
mais amplo da palavra, abrangendo os poderes Executivo, Legislativo
e Judiciário). E, para isso, é necessário que os governantes sigam
os ideais deste povo, sejam ou não, contrários aos seus próprios
ideais particulares. Só assim, quando os governantes de um Estado,
ouvem o clamor do povo, e agem conforme os anseios de seus súditos,
mesmo contrariando suas convicções pessoais (jogando por terra a
teoria de Marx e Engels), é que conseguirão a admiração e respeito
por parte dos governados, para que possam, juntos, governantes e
governados, formarem, definitivamente, uma grande nação.
Por fim,
gostaria de citar meu grande professor Dr. Paulo Duarte Lopes
Angélico (Juiz de Direito titular da 3ª Vara Cível da Comarca de
Pouso Alegre/MG), que pergunta de maneira incisiva:
"Deve existir
lei que limite a capacidade de amar? Quem pode afirmar ou firmar
este dogma?" (in Boletim Universitário do 3º Simpósio da Faculdade
de Direito do Sul de Minas - Inovações no Direito Material Civil -
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*
Enéas Castilho Chiarini Júnior é pós-graduando em Direito
Constitucional pelo IBDC (Instituto Brasileiro de Direito.