Leituras cotidianas nº 347, 21 de agosto de 2007.
Quatro
frases sobre Ecologia que fazem crescer o nariz do Pinóquio
Capitalista
Eduardo Galeano
Escritor uruguaio; autor de “As veias
abertas da América Latina”, entre outros livros.
1.
Somos “todos” culpáveis pela ruína do planeta.
A saúde do mundo está um asco.
“Somos todos responsáveis”, clamam as vozes de alarme universal, e esta
generalização absolve: se todos nós somos responsáveis, ninguém o é. Tais como
coelhos, reproduzem-se os novos tecnocratas do meio ambiente. É a taxa de natalidade
mais alta do mundo: os peritos geram peritos e mais peritos, que se ocupam em
envolver o tema no papel celofane da ambigüidade.
Eles fabricam a brumosa linguagem
das exortações ao “sacrifício de todos” nas declarações dos governos e nos
solenes acordos internacionais que ninguém cumpre. Essas cataratas de palavras
– inundação que ameaça converter-se numa catástrofe ecológica comparável ao
buraco na camada de ozônio – não se desencadeiam gratuitamente. A linguagem
oficial afoga a realidade para conceder impunidade à sociedade de consumo, a
qual é imposta como modelo em nome do desenvolvimento e das grandes empresas
que lhes extraem o sumo.
Mas as estatísticas confessam. Os
dados ocultos debaixo do palavrório revelam que 20 por cento da humanidade
cometem 80 por cento das agressões contra a Natureza – crime a que os assassinos
chamam suicídio –, e é a humanidade inteira quem paga as conseqüências da
degradação da terra, da intoxicação do ar, do envenenamento da água, do
enlouquecimento do clima e da dilapidação dos recursos naturais não-renováveis.
A senhora Harlem
Bruntland, que dirige o governo da Noruega, comprovou
recentemente que se os 7 bilhões de habitantes do planeta consumissem o mesmo
que os países desenvolvidos do Ocidente, “fariam falta 10 planetas como o nosso
para satisfazer todas as suas necessidades”. Uma experiência impossível. Mas os
governantes dos países do Sul que prometem a entrada no Primeiro Mundo,
passaporte mágico que tornará ricos e felizes todos
nós, não deveriam apenas ser processados por roubo. Não estão apenas nos
gozando, não: além disso, esses governantes estão cometendo o delito de
apologia do crime. Porque este sistema de vida que se apresenta como paraíso,
fundado na exploração do próximo e na aniquilação da Natureza, é o que nos está
enfermando o corpo, envenenando a alma e nos deixando sem mundo.
2.
É verde o que se pinta de verde.
Agora os gigantes da indústria
química fazem a sua publicidade em cor verde, e o Banco Mundial lava a sua
imagem repetindo a palavra ecologia a cada página dos seus relatórios e
tingindo de verde os seus empréstimos. “Nas condições dos nossos empréstimos há
normas ambientais estritas”, esclarece o presidente do supremo banco do mundo.
Somos todos ecologistas, até que
alguma medida concreta limite a liberdade de contaminação. Quando o Parlamento
do Uruguai aprovou uma tímida lei de defesa do meio ambiente, as empresas que
lançam veneno para o ar e apodrecem as águas sacaram subitamente a sua
recém-comprada máscara verde e gritaram a sua verdade em termos que poderiam
ser assim resumidos: “Os defensores da Natureza são advogados da pobreza,
dedicados a sabotar o desenvolvimento econômico e a espantar o investimento
estrangeiro”.
O Banco Mundial, em contrapartida,
é o principal promotor da riqueza, do desenvolvimento e do investimento
estrangeiro. Talvez por reunir tantas virtudes, o Banco manejará, junto à ONU,
o recém-criado Fundo para o Meio Ambiente Mundial. Este imposto sobre a má
consciência disporá de pouco dinheiro – 100 vezes menos do que haviam pedido os
ecologistas – para financiar projetos que não destruam a Natureza.
Intenção inquestionável, conclusão
inevitável: se esses projetos requerem um fundo especial, o Banco Mundial está
a admitir, de fato, que todos os seus demais projetos fazem um fraco favor ao
meio ambiente. O Banco se chama Mundial, assim como o Fundo Monetário se chama
Internacional, mas estes irmãos gêmeos vivem, cobram e decidem
Sendo, como é, o principal credor
do chamado Terceiro Mundo, o Banco Mundial governa nossos países cativos que a
título de serviço da dívida pagam aos seus credores externos 250 mil dólares
por minuto, e lhes impõe a sua política econômica em função do dinheiro que
concede e promete.
A divinização do mercado, que
compra cada vez menos e paga cada vez pior, permite estufar de quinquilharias
as grandes cidades do mundo, drogadas pela religião do consumo, enquanto os
campos se esgotam, apodrecem as águas que os alimentam e uma crosta seca cobre
desertos que antes foram florestas.
3.
Entre o capital e o trabalho, a ecologia é neutra.
Pode-se dizer tudo
de Al Capone, mas ele era um cavalheiro: o bom Al
sempre enviava flores aos velórios das suas vítimas. As empresas gigantes da
indústria química, petrolífera e automobilística pagaram boa parte das despesas
da Eco
E essa conferência, chamada Cimeira
da Terra, não condenou as transnacionais que produzem poluição e dela vivem, e
nem sequer pronunciou uma palavra contra a ilimitada liberdade de comércio que
torna possível a venda de veneno. No grande baile de máscaras do fim do
milênio, até a indústria química veste-se de verde.
A angústia ecológica perturba o
sono dos maiores laboratórios do mundo, que para ajudar a Natureza estão
inventando novos cultivos biotecnológicos. Mas esses
desvelos científicos não se propõem encontrar plantas mais resistentes às
pragas sem ajuda química; procuram, sim, novas plantas capazes de resistir aos
praguicidas e herbicidas que esses mesmos laboratórios produzem. Das 10 maiores
empresas de sementes do mundo, seis fabricam pesticidas (Sandoz,
Ciba-Geigy, Dekalb, Pfiezer, Upjohn, Shell, ICI). A
indústria química não tem tendências masoquistas.
A recuperação do planeta ou o que
nos resta dele implica a denúncia da impunidade do dinheiro e a liberdade
humana. A ecologia neutral, que se parece antes com a jardinagem, faz-se
cúmplice da injustiça de um mundo onde a comida sã, a água limpa, o ar puro e o
silêncio não são direitos de todos e sim privilégios dos poucos que podem
pagá-los.
Chico Mendes, operário da borracha,
caiu assassinado em fins de 1988, na Amazônia brasileira, por crer naquilo que
acreditava: que a militância ecológica não pode ser divorciada da luta social.
Chico acreditava que a floresta amazônica não poderá ser salva enquanto não se
fizer a reforma agrária no Brasil. Cinco anos depois do crime, os bispos
brasileiros denunciaram que mais de 100 trabalhadores rurais morrem
assassinados a cada ano na luta pela terra, e calcularam que quatro milhões de
camponeses sem trabalho vão para as cidades abandonando as plantações do
interior.
Adaptando os números de cada país,
a declaração dos bispos retrata toda a América Latina. As grandes cidades
latino-americanas, inchadas até arrebentar pela invasão incessante de exilados
do campo, são uma catástrofe ecológica: uma catástrofe que não se pode entender
nem mudar dentro dos limites da ecologia, surda perante o clamor social e cega
perante o compromisso político.
Nos seus 10 mandamentos, Deus
esqueceu de mencionar a Natureza. Dentre as ordens que nos enviou do monte
Sinai, o Senhor teria podido acrescentar, por exemplo: “Honrarás a Natureza da
qual fazes parte”. Mas isso não lhe ocorreu.
Há cinco séculos, quando a América
foi apresada pelo mercado mundial, a civilização invasora confundiu a ecologia
com a idolatria. A comunhão com a Natureza era pecado. E merecia castigo.
Segundo as crônicas da conquista, os índios nômades que usavam cascas para se
vestir jamais descascavam o tronco inteiro, para não aniquilar a árvore, e os
índios sedentários plantavam cultivos diversos e com períodos de descanso, para
não cansar a terra.
A civilização que vinha impor as
devastadoras monoculturas de exportação não podia entender as culturas
integradas na Natureza, e confundiu-as com a vocação demoníaca ou a ignorância.
Para a civilização que se diz ser ocidental e cristã, a Natureza era uma besta
feroz que era preciso domar e castigar a fim de que funcionasse como uma
máquina, posta ao nosso serviço desde sempre e para sempre.
A Natureza, que era eterna,
devia-nos escravatura. Muito recentemente soubemos que a Natureza se cansa,
como nós, seus filhos, e soubemos que, como nós, pode morrer
assassinada. Já não se fala em submeter a Natureza;
agora, até os seus verdugos dizem que há que protegê-la. Mas tanto num como
noutro caso, Natureza submetida e Natureza protegida, ela está fora de nós.
A civilização que confunde os
relógios com o tempo, o crescimento com o desenvolvimento e o grandote com a
grandeza, também confunde a Natureza com a paisagem, enquanto o mundo,
labirinto sem centro, dedica-se a romper o seu próprio céu.
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br/content/view/709/68/