O QUE PRETENDE O ANARQUISMO

Essa propaganda, agitada com uma forte energia viril, não podia deixar de produzir seus frutos. Em agosto de 1872 Montecaules-Mines era teatro de grandes tumultos revolucionários e a igreja de Bois-du-Verne incendiada por meio de dinamite. Em 21 de outubro uma formidável bomba explodia no teatro de Bollecour, sendo Civoet apontado como o autor desse atentado.
O governo, que assistia amedrontado o progresso rápido das idéias libertárias, procurou imediatamente um pretexto para sufocar o movimento que ia fazendo seus triunfos. E, em 1883, 66 indivíduos, entre os quais se achava Pedro Kropotkine, preso em Thonon, eram levados ao tribunal correcional de Lyon, acusados de pertencer a uma associação internacional de malfeitores. O júri, composto de burgueses covardes e infames, foi inexorável: dos acusados 47 foram condenados a alguns anos de prisão, outros expulsos, etc. Esse processo é um dos mais importantes episódios da história revolucionária.
E a declaração que diante o tribunal fizeram os acusados um documento eloqüente que jamais ficará esquecido. Ei-lo integralmente:
O que é a Anarquia, o que são os anarquistas, nós vamos dizê-lo:
Os anarquistas, senhores, são cidadãos que, num século em que se prega por toda a parte a liberdade de opinião, crêem do seu dever recomendar liberdade ilimitada. Sim, senhores, somos pelo mundo alguns milhares, alguns milhões talvez - porque não temos outro mérito que não seja dizer muito alto o que a multidão pensa baixinho - somos alguns milhões de trabalhadores que reivindicam a liberdade absoluta, nada que não seja a liberdade, toda liberdade!
Queremos a liberdade, quer dizer, reclamamos para todo o ser humano o direito e os meios de fazer tudo o que lhe apraza e não fazer o que lhe não agrada; de satisfazer integralmente todas as suas necessidades, sem outro limite que não sejam as impossibilidades naturais e as necessidades dos seus vizinhos igualmente respeitáveis.
Queremos a liberdade, pensamos que a sua existência é incompatível com a existência de um poder qualquer, quaisquer que sejam a sua origem ou a sua fama, seja eleito ou imposto, monárquico ou republicano, que se inspire do direito divino ou do direito popular na Providência ou no sufrágio universal.
A história aí está para nos ensinar que todos os governos se parecem e se equivalem. Os melhores são piores. Se uns são mais cínicos, mais hipócritas são os outros! No fundo, sempre as mesmas palavras, sempre a mesma intolerância. Não há, até nos mais liberais em aparência, que não tenha em reserva, sob a poeira dos arsenais legislativos, alguma pequena lei contra a Internacional, para uso das oposições importunas.
O mal, noutros termos, aos olhos dos anarquistas, não reside em tal forma de governo antes que em tal outra. Ele está na própria idéia governamental, está no princípio de autoridade. A substituição, numa palavra, nas relações humanas, do livre contrato, perpetuamento revisível e solúvel, à tutela administrativa e legal, à disciplina imposta, tal é o nosso ideal.
Os anarquistas propõem, pois, ensinar ao povo a passar sem governo, do mesmo modo que ele começa a aprender a passar sem Deus. Ele aprenderá igualmente a passar sem proprietários. O pior dos tiranos, com efeito, não é aquele que nos encarcera, é aquele que nos mata de fome; o pior déspota não é aquele que nos prende pela
gola, mas o que nos prende pelo ventre.
Nada de liberdade sem igualdade! E liberdade não pode existir numa sociedade em que o capital é monopolizado por uma minoria que vai cada vez mais se reduzindo e em que nada é igualmente repartido, nem mesmo a educação pública, paga entretanto com o dinheiro de todos.
Nós entendemos que o capital, patrimônio comum da humanidade, pois que ele é o fruto da colaboração das gerações passadas e das gerações contemporâneas, deve estar à disposição de todos, de tal maneira que ninguém possa ser excluído, e que ninguém possa também açambarcar uma parte em prejuízo do resto. Queremos, finalmente, a igualdade de fato, como corolário ou antes, como condição primordial da liberdade.
De cada um segundo as suas faculdades, a cada um segundo suas necessidades - eis aqui o que queremos unicamente, energicamente; eis o que será, pois não há presunção que possa prevalecer contra reivindicações legítimas e necessária. Eis aqui porque se quer atirar-nos a todas as ignomínias.
Celerados que somos! Clamamos o pão para todos, a ciência para todos, para todos também a independência e a justiça. O anarquismo, porém, apesar do encarceramento dos seus propagandistas mais entusiastas, porque o pensamento é intangível, não ficou ainda, nessa ocasião, amordaçado: a propaganda continuou, com o mesmo impulso, com o mesmo entusiasmo e com a mesma violência.
Notou-se mesmo, como afirma Paul Desjardin, que, depois desses atos de repressão, o exército anarquista tinha crescido na proporção de um para mil. Não era mais possível extirpar uma idéia que já tinha dominado todos os corações generosos do tempo, possuía raízes sólidas, dir-se-ia orgânica, na consciência moderna.

Elysio de Carvalho - O Amigo do Povo / São Paulo / 30-01-1904.

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