RAZÃO E PAIXÃO NA EXPERIÊNCIA ANARQUISTA

I
Em primeiro lugar, algumas definições sobre o que é ANARQUISMO. É necessário clarear alguns conceitos como anarquia, poder, governo e socialismo. Anarquia significa ausência de poder ou de autoridade constituída. Há uma diferença sutil no discurso, mas importante na realidade, entre poder político e poder social. O primeiro exerce o poder de coação: uma ou mais pessoas têm o poder de obrigar outras a fazer o que não desejam. Ocupam os governos do Estado, o KRATOS, o poder político no sentido grego, qualquer que seja a sua forma, teocracia, aristocracia, monarquia, oligarquia, democracia, em todas as suas instâncias. É contra este poder hipertrofiado nos Estados Nacionais modernos que os anarquistas lutam hoje. Os anarquistas sabem e todos os estudos históricos o demonstram que o exercício deste poder sempre corrompe seus detentores, que acabam exercendo-o em benefício próprio, de uma forma ou de outra, em diferentes graus, sempre em detrimento do povo.
O outro poder, o poder social, é participado, exercido por todos nas decisões coletivas: o poder de uma assembléia de tomar decisões. Exemplo de proporções enormes foi o poder que tinha a CNT espanhola, com milhões de afiliados, durante a Guerra Civil, de decidir pela organização autogestionária e pelas experiências práticas do anarquismo durante a revolução. É o poder que é exercido por todos em qualquer prática autogestionária, nas decisões realmente coletivas.
O termo Governo tem o sentido de autoridade diretora e o sentido restrito é o de governo político, centralizador do KRATOS social. Mas, por extensão, tem o sentido de gestão, organização, ordenamento. As expressões desgoverno (avião ou carro desgovernado) tem o sentido de desorganização e é análogo ao sentido pejorativo de anarquia. A proposta anarquista é pela organização e, neste sentido, pelo autogoverno, como sinônimo de autogestão.
Não há expressão mais aviltada do que o termo SOCIALISMO. Assim como para a imensa maioria das pessoas é inconcebível as sociedades humanas se organizarem sem Estado, tal a desinformação, para a maioria das pessoas, socialismo passou a ser sinônimo de estatização. Intelectuais das mais variadas tendências, nas universidades, na imprensa escrita e em todos os meios de comunicação repetem a mesma pregação. Tudo o que se refere a socialismo passa pelo Estado.

II
Quando dizemos que o anarquismo é antes de tudo sinônimo de socialismo, temos que dar um mínimo de clareza ao nosso conceito de socialismo: daí a expressão socialismo libertário. Socializar é tornar a propriedade e os instrumentos de trabalho, enfim toda a riqueza e o que a produz, disponível à sociedade, acabando com a exploração do homem sobre o homem. Mas, para o socialismo libertário, não basta socializar os bens materiais: é preciso socializar o saber, a informação e todos os bens culturais. Mas, o que é fundamental, jamais haverá socialismo se não se fizer a socialização do poder ¾ a primeira coisa a ser socializada é o poder, que começa com a autogestão das lutas. Destruir o poder político e fortalecer o poder social, eis o que significa autogestão, a real igualdade e liberdade em todo o processo de transformação.
O anarquismo não é uma doutrina rígida, com artigos de fé, tábuas da lei, com profetas, com excomunhões, processos de heresia e sanções. É antes um conjunto de doutrinas e princípios cujos postulados básicos são convergentes, e que está sempre aberto a novas contribuições. Estes postulados básicos formam um fundo comum que, no amplo universo das múltiplas e alternativas atividades libertárias, são o anarquismo propriamente dito.
O sentido de justiça e eqüidade, a revolta contra a exploração econômica do homem pelo homem, o combate ao Estado com a consciência plena de que é a instituição que garante o regime de exploração e privilégio como fonte geradora de opressão e violência sobre o indivíduo e a coletividade. Tendo a liberdade como um dos mais altos valores humanos, liberdade e autonomia plenas a partir do indivíduo para a associação livre fundada na solidariedade e no apoio mútuo.
O anarquismo combate todas as formas de autoritarismo, combate todo o poder de coação, tudo o que restringe, limita, sufoca e asfixia o potencial criativo do ser humano.

III
Todo o ser humano tem necessidade de desenvolver seu físico e sua mente em graus e formas indeterminadas; todo o ser humano tem o direito de satisfazer livremente essa necessidade de desenvolvimento; todos os seres humanos podem satisfazer essas necessidades por meio da cooperação e da vida associativa voluntariamente aceita. Cada indivíduo nasce com determinadas condições de desenvolvimento. Pelo fato de nascer com aquelas condições tem necessidade — em termos políticos, tem o direito — de se desenvolver livremente. Sejam quais forem suas condições, ele terá a tendência de expandir integralmente. Ele terá o desejo de conhecer, saber, exercitar-se, gozar, sentir, pensar e agir com inteira liberdade. Esta necessidade é inerente ao próprio ser. Se o crescimento físico fosse limitado por qualquer meio artificial, tal fato seria qualificado de monstruoso. Também a limitação do desenvolvimento de sua sensibilidade, do seu desenvolvimento intelectual, moral e afetivo, anulando o seu potencial criativo seria lógico considerar-se uma monstruosidade. No capitalismo esse absurdo se dá em todas as instâncias da vida social e ninguém considera isso um absurdo, somente os anarquistas.
A descentralização, a autonomia e o federalismo são as vias pelas quais o anarquismo propõe a construção de uma nova sociedade. A descentralização máxima é o indivíduo. Da plena liberdade e autonomia individuais para a organização segundo os interesses e as necessidades, para as instâncias mais complexas até a completa malha social, os princípios não se alteram. Começando pelo indivíduo como unidade celular da sociedade até o mais amplo tecido social, o princípio da autonomia está presente. Os interesses específicos de cada instância não ultrapassam a própria esfera e não sofrem nenhuma interferência. Os interesses comuns de diferentes níveis e setores — profissionais, de produção de bens, planejamento, geográficos[1], etc. — resolvem-se pelas federações que as necessidades práticas indicarão. A união de interesses com objetivos comuns, sem quebra da autonomia é a característica básica do federalismo. Assim, as uniões locais se organizam em nacionais até confederações internacionais.

IV
Em todos os atos, ante todos os fatos, o ser humano analisa, estima, aceita ou repudia o que se dá, o que acontece, formulando um juízo de valor. O tema é vastíssimo e seu estudo pertence à ontologia. Apenas alguns conceitos para nos situarmos enquanto anarquistas. As vias de nosso conhecimento são a sensibilidade, a intelectualidade e a afetividade. Temos portanto uma intuição sensível, uma intuição intelectual e uma intuição páthica (do grego paqoV = afeto, paixão). Há uma interatuação entre elas. Podemos racionalizar um sentimento de simpatia ou de antipatia[3], como podemos, através de uma dedução lógica provocar a nossa santa fúria.
Quase todos colocam os valores numa escala hierárquica: uns num grau mais elevado que outros. O filósofo alemão MAX SCHELER (1874-1928) apresenta a seguinte ordem, que não é aceita por todos:

Valores religiosos (santo e profano)
Valores éticos (justo e injusto)
Valores estéticos (belo e feio)
Valores lógicos (verdade e falsidade)
Valores vitais (forte e fraco)
Valores utilitários (conveniente e inconveniente)

Há variáveis na subordinação dos valores, que se refletem de pessoa para pessoa ou até na mesma pessoa conforme o momento, mas sempre, na maioria das circunstâncias que a vida oferece, um prevalece sobre os outros. Para o anarquista todos os valores se subordinam aos valores éticos, porque todos os atos humanos são passíveis de juízo ético.
O que é ser anarquista? Ser anarquista é antes de tudo uma atitude ética. Ante a iniqüidade, um ímpeto de justiça leva o anarquista a romper racional e afetivamente com o sistema vigente. Romper com a autoridade é afirmar a própria independência humana. Ser anarquista é procurar realizar no quotidiano a plenitude do ato humano, e o ato humano só o é quando livre, fundado na vontade, no conhecimento dos fins e no poder de realizá-lo. Contra todo o viciamento do ato humano a luta anarquista não tem limite. Ser anarquista é lutar pela liberdade de todos, tendo a consciência de que a liberdade dos outros aumenta a própria e não a limita.

V
As paixões humanas sempre foram objeto de estudo dos anarquistas. Apenas para ilustrar, vamos citar as teses apresentadas no 2o. Certâmen Socialista, realizado no dia 10 de novembro de 1889 no palácio de Belas Artes de Barcelona.
Proposta do Círculo Operário de Barcelona: “Supondo uma sociedade verdadeiramente livre ou anarquista e sendo a instrução elevada ao grau máximo concebível, podem ser causas de desarmonia social as chamadas paixões humanas?” Foram apresentados seis trabalhos escritos sobre tal questão. No primeiro, apresentado por Teobaldo Nieva, é destacado o papel das paixões no desenvolvimento físico e mental da humanidade e como as religiões, as correntes filosóficas, os poderes político e econômico tem sufocado esta energia criadora. O autor se estende na crítica às religiões, a todas as formas autoritárias e repressivas e conclui que, apesar de tudo, elas continuam a ser a seiva vivificante da vida. As paixões são definidas e, ao contrário dos pecados capitais que são sete (orgulho, avareza, luxúria, etc.), as paixões são infinitas: o amor sexual, a paixão pelo belo, pela arte, pelo bem comum, etc. E, na sua essência, as paixões são benéficas, libertam. O desequilíbrio e as injustiças que o capitalismo e o autoritarismo provocam são as causas dos desvios e das práticas viciosas.
Proposta do Centro de Amigos de Reus: “Benefícios ou prejuízos que a humanidade obteria adotando o amor livre”. Foram apresentados dois trabalhos, o primeiro de Soledad Gustavo. O trabalho começa acrescentando EM PLENA ANARQUIA (?). A autora considera que o amor livre na atual sociedade seria desastroso, uma desmoralização. Seria irrealizável. Uma sociedade plenamente livre e igualitária, perfeitamente justa teria como base de todas as liberdades a união livre dos sexos. Considera que só a comunidade assumindo a subsistência das mulheres e crianças resolveria o problema da dissolução das uniões. Só uma sociedade anarquista possibilitaria a escolha livre. Para a autora, a maioria considera o amor livre uma variedade de prazeres sensuais. Pura ignorância do que significa liberdade.
Já Anselmo Lorenzo, em seu trabalho, faz uma incursão nas civilizações antigas rasteando as diferentes formas e costumes que envolvem a união dos sexos. Desde povos que viviam na mais absoluta promiscuidade, aos que adotaram a poligamia e a poliandria, até a monogamia e os padrões que regem o casamento na atual sociedade, para concluir que não se tem direito nenhum para afirmar que o conceito atual de casamento e família seja original, legítimo e unicamente natural. Havendo liberdade e igualdade os indivíduos e a sociedade se organizarão e praticarão a forma que mais lhes convenha.
A expressão amor livre, hoje eivada de conotações pejorativas, se confunde com a amizade colorida dos anos 70, por isso preferimos a expressão amor libertário. Simplesmente a união de dois seres que se amam, sem injunção de espécie alguma. Sem interferência do Estado, da Igreja, da família, dos fatores econômicos, etc. sem preconceitos de espécie alguma. O amor sexual é como uma florescência da vida. Suas práticas são tão diversas, tão diferentes seus graus de desenvolvimento, como imenso é o campo da afetividade. Impossível reduzir o amor a uma definição concreta. Impossível determiná-lo por condições particulares fixas. Nada mais variável. O amor sexual se apresenta sempre impregnado do sabor particular de cada associação humana; sujeito a normas, formalismos e rituais que variam com o organismo social. O amor sexual desprovido de ritualismos ridículos, fórmulas jurídicas, só será possível quando a sociedade tiver superado as contradições que a impedem de resolver os problemas que afetam as necessidades básicas das pessoas.

VI
A história do movimento anarquista é pontilhada de extremos de paixão e lucidez, de amor e de heroísmo, que seria impossível registrá-los todos aqui.
Há no ser humano um desejo inerente de ir além, de ter uma vida diferente da que vive. Há assim um ímpeto utópico. O desejo de alcançar uma realidade que ainda não existe. Há as utopias de evasão, que expressam um desejo de afastamento da realidade vivida, que denominamos fuga da realidade, e há utopias de superação, que condensam o desejo de alcançar estágios superiores ainda não vividos. Para que o homem alcance uma superação constante de si mesmo (o que seria a efetivação de uma revolução permanente não só em si, como também em seu meio) é necessária uma dose de utopia, porque sem o desejo de tornar tópicos os valores mais altos é impossível estimular a criação. Os que julgam que o ímpeto utópico é uma fraqueza, resultado de uma deficiência humana, poucos sabem de psicologia.
É preciso muito sonho, muito desejo, muita crença nas possibilidades de cada um e na de todos para que possamos superar os obstáculos, vencer dificuldades, construir possibilidades remotas, tornar em ato o que parecia um sonho impossível.
A história do anarquismo é, como dissemos, pontilhada destes atos de lucidez, paixão, heroísmo e amor que sempre foram e serão muito gratificantes para os que viveram tais momentos de plenitude libertária.

Jaime Cubero

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