Gustavo Bayerl Lima

Acadêmico de Direito da CSVV/UVV


 

 

Maquiavel: Um pensador para além de seu tempo

 

Insistentemente se tem falado e escrito, pela mídia a respeito da crescente e visível tendência do Poder Executivo federal, hoje, de aumentar a sua esfera de influência sobre os demais poderes de Estado, e sobre a própria macrossociedade, a ponto de gerar, de um lado, processos de absorção e consunção sobre atribuições ou segmentos de doer do Legislativo, e, de outro lado, mecanismos que se traduzem, de maneira latente ou manifesta, em verdadeira rota de colisão com o terceiro poder, que é o Judiciário. O que se pretende é tomar o momento histórico como referencial para um outro tipo de análise, sucinta como possa ou deva ser, relativa aos reflexos imediatos, e até futuros, da maneira unipessoal com que vêm sendo conduzidos os destinos da nação, por um dos poderes, à revelia, ou com a convivência, dos poderes-gêmeos.

É mais do que simples truísmo afirmar-se que o governo de um país terá, de modo geral, queira-se ou não, a face do seu governante do momento. Abstraídos, por óbvios demais, os exemplos estrangeiros, encontrar-se-ão, aqui, ilustrações suficientes do que se pretende dizer: o Brasil já teve a face de Vargas, a de Juscelino, a de Jango, a dos militares, e assim por diante. Extrapolando para a realidade nacional de hoje o universo político ao qual Maquiavel dedicou pelo menos quinze anos de sua melhor atividade, poder-se-ia dizer que o governo atual não foge à regra. Ou seja, este governo possui, como (exceções à parte) todos os que o antecederam, a face do seu ''príncipe''. Não por acaso, a obra mais conhecida e citada do mestre florentino veio a ser, significativamente, dedicada ao príncipe que lhe foi contemporâneo.

Semelhante afirmação, todavia, problematiza-o. Admitido, ao menos por acordo semântico, que o Poder Executivo - representado pelo governo, encarnado pelo governante, encenado pelo estilo unipessoal do presidente - ensaia arroubos de ''coup de main'', nem sempre puramente retóricos, sobre as demais fatias não partilháveis do poder de Estado, verifica-se que algumas variáveis interferem na equação, passando a funcionar como complicadores: entre elas, podem citar-se o inusitado e inédito dos arroubos de poder, em si mesmos considerados, no contexto de um Estado ''soi disant'' democrático de direito, e à luz das lições da História; bem como a auto-atribuição, por parte do chefe de Estado, de uma verdadeira ''mise-en-scène'' em que, propositadamente ou não, tudo o que se faz e/ou se diz, contra ou a favor do Estado, é visto como se tivesse sido feito, e/ou dito, contra ou a favor do ''governante''.

Esta incompreensível e anacrônica síndrome do ''L'Éat c'est moi'', do mote ''Tudo pelo Estado, tudo no Estado, nada fora do Estado'', incompatível com um Estado que se quer mínimo e se diz ''neo-liberal'', vem como não poderia deixar de ser, acompanhada de outra, que parece afetar o imenso séquito de sicofantas do poder, travestidos, a esta altura, todos, de ''seguranças pessoais ideológicos'' do chefe de Estado, independentemente da importância maior ou menor de suas funções na administração pública. Assim, se o Judiciário concede 28.86% de reajuste a uma dúzia de servidores, ''eles (os juizes) não pensam no Brasil'', se o governo corre o risco de ter a venda da Vale - a esta altura, já vendida - bloqueada por liminares concedidas pelo Judiciário, este último estará ''quebrando a independência dos poderes'' ... (?!). E assim por diante.

Segundo o professor Godofredo da Silva Telles, em declaração recente à TV (março/97), ''a Constituição mais parece um trapo de papel ...'' Já o juiz federal Antônio Souza Prudente, em peroração na inauguração dos cursos da Escola Superior da Magistratura-DF (abril/97), desassombradamente afirmou que ''o governo submete o Brasil a complicado pré-operatório...'' Entenda-se: a consciência política nacional, o inconsciente coletivo e até o imaginário social da nação estão sendo ''anestesiados'', num processo que Félix Guattari, referindo-se aos meios de comunicação, chamou de ''laminação dessingularizante. Num gigantesco arremedo do clássico procedimento, ''morde e assopra'', o governo federal, na esteira da onipotente e incontestável ''voluntas'' presidencial, ora violenta a consciência política e jurídica da sociedade civil - com a incestuosa conivência da sociedade política -, pelos processos de força das medidas provisórias, ora anestesia essa mesma consciência pela encenação televisada das benesses que supostamente estaria proporcionando à inconsciente e alienada massa de cidadãos despolitizados.

Dessa forma, qualquer atitude de contrariedade ao governo, ainda que legal e juridicamente fundamentada, passa a ser considerada uma versão moderna do antigo crime de ''lesa-pátria'', conhecido, ao tempo das Ordenações Filipinas, e até antes delas, como crime de ''lesa-majestade''. Seria de indagar-se, nesse passo, numa figura semelhante à reconvenção, se o governo está, ele próprio, realmente pensando no Brasil; caso positivo, em que ''Brasil'' ele pensa; e se o Brasil em que ele supostamente pensa é o mesmo em que pensam o povo brasileiro e os juizes, que, nomeados pelo povo, somente a ele devem contas de sua relevantíssima atividade de defesa dos direitos constitucionais e legais dos cidadãos.

Como declarou o ministro Celso de Mello, novo presidente do Supremo Tribunal Federal, em entrevista à Veja (ed. 1.485, 5/mar/97, p.10), sobre o avanço do executivo em outras áreas: ''Como cidadão, preocupa-me essa crescente apropriação institucional pelo presidente da República do mais expressivo poder que a Constituição garante ao Congresso. Não se pode ignorar que a medida provisória tem um componente autoritário indiscutível. Ela traduz a manifestação unilateral do governante. É a vontade unipessoal do príncipe que se impõe sobre toda a coletividade sem prévio debate parlamentar. Ela é impositiva e, dessa forma, permite ao presidente da República que dite sua vontade. Nem mesmo a Constituição outorgada pela ditadura militar conferiu em matéria de decreto-lei tantos poderes ao presidente. O presidente pode virtualmente tudo, e isso não é aceitável num regime democrático''.

Nesse quadro, em que os parlamentares, também eleitos pelo povo, deveriam igualmente prestar-lhe - porque lhe devem - contas de suas ações e omissões, a voz isolada de alguns congressistas, ou de e que nos grupos deles já não se faz ouvir em meio ao tropel dos ''acordos de lideranças'', das manipulações das ''bancadas'', das ''representações'' de partidos e casas congressuais junto ao governo. Aquele que seria, por excelência, o ''lugar da fala'' do povo, está-se tornando, a cada dia, mais silente; mas a outra tribuna do povo, o Judiciário, esta não deve calar-se, nem pode calar-se. Pelas vias legais e legítima do mandado de segurança, das ações populares, das ações civis públicas, das ações de inconstitucionalidade, das liminares, e de outros tantos remédios judiciais, os cidadãos sabem que o seu acesso à Justiça não pode ser negado; e que a Justiça, comprometida ideologicamente com os mais altos valores morais, éticos e sociais que alimentam a vida de relação, não poderá deixar de atender aos reclamos daqueles que ''têm fome e sede de justiça”, e que ''serão saciados''.

 


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