Ok, estamos num impasse

Envolvido num conflito que resultou em 385 atendimentos médicos e um processo movido pelo governo do Distrito Federal, o líder do grupo de rock Legião Urbana, Renato Russo, 28, ex-funcionário do Codecon (Coordenadoria de Defesa do Consumidor), renega a pecha de incitador e o papel de messias: "Se eu souber que não tenho respostas, já tenho muita sorte". (...)

A pergunta é inevitável: na sua opinião o que aconteceu em Brasília?
RR - Eu não sei o que aconteceu em Brasília. Mas acho o que houve foi uma espécie de catarse coletiva, levada para um lado errado. As emoções das pessoas vieram à tona, foi uma coisa muito visceral. (...) No caso da banda, a gente entrou inocentemente, a gente realmente achava que ia ser uma festa, sem pensar que seria perigoso juntar 50 mil pessoas em Brasília. A gente se esqueceu do bardenaço que teve em Brasília, que foi o mais violento de todos no país. O que aconteceu foi o seguinte: perdeu-se o controle. Todos perderam o controle. Todos têm uma parcela de culpa.

E qual a parcela da banda?
RR - Ter feito o show. Acho injusto as pessoas dizerem que o que aconteceu foi porque a banda, principalmente eu, incitou a platéia. Porque agora já é sabido que os atos de violência já estavam presentes antes mesmo de se pensar em atraso de show. Às seis da tarde, na rodoviária, já estavam quebrando ônibus. Antes das nove e meia, horário marcado, já tinha gente tacando morteiro nas outras pessoas, gente com as pernas fraturadas, com a clavícula quebrada. (...)

Talvez Brasília seja um tambor do país. Você acha que o público jovem é um rebelde sem causa?
RR - Eu acho que a questão da violência é uma questão do planeta. A humanidade é violenta. Mas quando o Estado consegue fazer com que o cidadão se sinta útil, quando o cidadão confia no Estado, esses momentos de violência ficam mais esparsos. Sobre a violência do psicótico, a do ladrão, mas não é uma violência contra o cidadão. No Brasil, essa violência contra o cidadão, além de ser traduzida como violência, como na Rocinha ou nos jogos de futebol, envolve a agressão ao cidadão no sentido de você não ter uma base, uma segurança. A questão da inflação, a própria Constituinte não resolvida. Quando a perplexidade se confronta com ela mesma, numa ocasião de festa como o show da Legião Urbana, num lugar onde ela é naturalmente exacerbada por causa da proximidade do poder e das próprias características de Brasília como cidade - ou seja, um feudo cercado de Brasil por todos os lados -, a coisa se torna realmente uma panela de pressão.

Você acha que há um fenômeno cultural nessa violência? O rock induz à violência?
RR - Eu acho que o rock induz, como outras coisas induzem, à ação, à energia. Dependendo da têmpera de cada indivíduo, essa energia vai ser expressa de forma violenta, através da indiferença ou através de uma forma positiva. O fato de você estar fazendo com que a pessoa sinta alguma coisa, grite, cante, não implica que de repente ela vai cantar e dançar simplesmente. Algumas pessoas vão dançar e dar porrada na pessoa do lado, ou tacar coisas no palco. Algumas vão fumar seu baseado quietas e outras vão incomodar outras pessoas.

Qual é o papel da droga?
RR - Há um consumo muito grande em apresentações de rock, isso é notório. Uma coisa muito comum entre a juventude de Brasília é o loló, e ele leva à violência. Sou contra qualquer tipo de drogas. É como a gente diz em "Conexão Amazônica": "Alimento pra cabeça nunca vai matar a fome de ninguém".

Quando os Titãs cantam "Porrada", por exemplo, isso não é um estímulo, uma incitação?
RR - Não. Isso já seria o aspecto do background cultural do público. Em Brasília, de certa forma, as pessoas não têm grande informação como nos grandes centros. Quando os Titãs cantam "Porrada" no Rio ou em São Paulo, as pessoas vão ter background necessário para saber qual é o código que está sendo usado.

Qual é o código?
RR - É justamente utiliza a violência não para inspirar as pessoas, mas para se inspirar na violência. Você não está incitando. Mas o material usado para se expressar são justamente as coisas violentas que você vê. Trabalhar isso e fazer isso - no caso eu não diria arte porque consumo de massa não é arte -, expressão. Quando os Titãs cantam &qquot;porrada", quando o Lobão canta "sangue e porrada na madrugada", quando Cazuza canta "eu quero uma ideologia", a gente não está necessariamente incitando à violência, a gente está expondo uma situação, dando nossa interpretação do fato.

Mas vocês estão falando para o público consumidor urbano, parte dele marginalizado economicamente, que, portanto, não dispõe desses códigos. Vocês, autores, sabem que eles não dispõem desses códigos?
RR - Mas eles dispõem. É tudo interligado. Existe a televisão. Existem os anúncios de jeans. O próprio ato físico de ligar o rádio já implica numa civilidade. Se ela não souber ligar o rádio, aí sim, eu acredito que ela não vai estar sabendo que quando se canta "a violência é tão fascinante" que estou realmente falando assim: "Olha, não por aí." (...)

Num tempo sem crenças, algumas pessoas pegam o que você fala, o Arnaldo Antunes e alguns outros, como se fossem palavras iluminadas. O que há de benéfico e maléfico nesse messianismo?
RR - O maior perigo é para o público. Um belo dia, ele vai descobrir que seu ídolo tem pés de barro, é uma coisa muito dolorosa porque messias não existem.

Mas você pretende estar expressando...
RR - O que eu penso e o que eu sinto. Só. Quando eu falo essas coisas não é para mudar a cabeça de ninguém.

E se você levar isso para a sua música, que as pessoas compram, elas compram por quê?
RR - Eu gosto de acreditar que elas compram porque elas sentem e percebem que eu sinto e percebo exatamente aquilo que eles sentem e percebem. Se a Legião tiver uma força é a de ser igual ao público.

Mas esse é o caminho do messianismo. Primeiro, você estabelece uma identificação com as suas ovelhas e depois você as conduz.
RR - Se eu realmente estivesse num caminho messiânico teria controlado aquele show. Eu tenho a minha individualidade, não sou um messias, eu vou chamar de babaca. Pessoalmente, eu busco pontos de referência.

E quem poderia ser ponto de referência?
RR - Eu sinto a dor de Millôr Fernandes de não poder falar com os jovens. E não é porque a gente não tá ouvindo, não. É porque nós não vamos ter como ouvir. Porque essas pessoas não vão poder falar: "Nós fizemos assim e nós podemos ter errado, mas nós tentamos e pelo menos teve resultado". Mas não teve resultado nenhum. Você tentou construir uma casa e nem chegou a delimitar o terreno. Como você vai ensinar o mais jovem a construir uma casa? Porque ele vai virar r vai falar assim: "Tudo bem, eu até admiro que você queira me ensinar, mas você não tem capacidade, porque você tentou desesperadamente e não conseguiu".

Tudo bem, eles tentaram. E vocês, estão tentando?
RR - Se a gente está tentando, está tentando de bobo que a gente entrou nesse trem de bobo. A gente entrou nesse trem achando que ele ia pra Disneylândia e depois ele foi pra Auschwitz, porque eu nunca saí da minha casa pra cantar rock'n'roll pra tá falando essas coisas aqui. Nunca. Eu queria era sexo, drogas e rock'n'roll. Ok, estamos num impasse. Não adianta mais fingir.

Trechos da entrevista a Arthur Dapieve e Paulo Adário, Caderno "B", Jornal do Brasil, 27 de junho de 1988.

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