Doce-Amargo Retrato De Um Anti-Herói Que Não Quer Ser Quixote

Mesmo que quisessem, as meninas não conseguiriam suspirar com sua presença. Óculos pequenos, barba, uma certa (des)elegância desengonçada, fazem de Renato Russo, 28 anos, vocalista e principal compositor da Legião Urbana, uma espécie de antídoto. Suas letras ácidas ganharam o Brasil e tornaram-se ameaças de tremores nos estádios do país. "Que País É Este?" e "Faroeste Caboclo" fizeram-se o retrato do país dos sonhos murchos. Como pano de fundo, rock, poesia e desobediência, uma fórmula incontestável de sucesso. (...)

O que te levou a ser um roqueiro?
RR - Sempre gostei de música como forma de expressão. Os românticos de antigamente como Casimiro de Abreu, escreviam poesias quando tinham 20 anos. Depois, no início do século XX, vieram os pintores e escultores na Semana de Arte Moderna. Teve o pessoal que fazia teatro coletivo na década de 60 aqui no Brasil. Pra gente, o rock foi o caminho ideal. É mais fácil compor uma canção e cantar do que escrever um livro. Qual a outra alternativa? Fazer um vídeo? Isso é outra área, outra geração. Como sou muito verbal, nenhuma outra forma iria traduzir o que eu queria dizer.

Qual é a maior contribuição do rock enquanto fenômeno de massa no Brasil?
RR - Um resgate da memória nacional.

Memória do quê?
RR - Memória do que está sendo feito. Por exemplo, se você pegar a carreira da Rita Lee, verá que ela é muito melhor documentada que a do Capinam, e eles eram contemporâneos. O rock é uma arte bastarda que está ligada ao mecanismo de massa, à informação, documentação. Não é como Herivelto Martins, Noel ou Pixinguinha, sendo que os dois últimos morreram e a gente não sabe mais nada. Se você quiser saber o que foi a Bossa Nova, que foi um movimento muito mais importante, não vai ter informação. Eu já vi retrospectiva da Legião Urbana na televisão, quer dizer, são informações de arquivo e a gente tem apenas três anos de carreira. A geração rock coleciona muito, preza muito a informação, é o maníaco de história em quadrinhos. Outra contribuição é a possibilidade do jovem brasileiro se conhecer e perceber que, mesmo dentro da igualdade de um protótipo - todos eles usam jeans e vão ao shopping center - existem diferenças regionais. E se pode ter um retrato mais amplo da juventude brasileira. De repende, tem um conjunto que fala daquilo que você sente e é o mesmo que as pessoas sentem. E descobre que não está sozinho.

Por que a juventude está tão paralisada?
RR - Quem não tem uma rede embaixo, não var tentar um triplo mortal. O movimento das esquerdas nos anos 60 não deu em nada. Agora tem que tentar um novo caminho sem ter nenhuma saída: o povo está sem educação, sem alimentação, e a estrutura política está totalmente sem base ética, então fica muito difícil. Não tem modelo, não tem referencial, nem mentores que indequem o caminho. Porque as gerações anteriores, além de estarem totalmente desiludidas, jogam toda essa desilusão nos próprios jovens. Um cara como o Ferreira Gullar dizer que a gente é uma geração sem caráter, é de perder a confiança. O Baden Powell também falou isso. E eram pessoas que eu respeitava. Então, em quem é possível confiar? Em Caetano Veloso, mas ele também está fora disso. O máximo que você pode fazer é tentar se interiorizar, buscar algo mais tribal, de sobrevivência mesmo, tanto a nível psíquico-emocional como intelecutal, informativo, social, político, sexual, tudo. A questão sexual tem a Aids. E a Aids coloca toda e qualquer ação humana sob outro prisma.

A Legião vem de Brasília, o centro do poder e, em contrapartida, usa a linguagem do rock, que é antes de tudo uma atitude de transgressão. Como é viver esses dois lados da moeda?
RR - A gente não está mais em Brasília, mas foi divertido porque éramos filhos de classe média com casa, comida, papai e mamãe e falando mal de tudo. Mas vingou porque o pessoal do Rio de Janeiro, quando foi reclamar das mensalidades das escolas, cantou músicas da Legião Urbana, Ultraje, Titãs. Então todos aqueles ataques feitos a rock, de que era sem consciência, irresponsável, caiu por terra. A garotada cantava "Que País é Este?", "Inútil" do Ultraje ou então "Desordem" dos Titãs. Quanto a Brasília, eu não sei explicar direito, porque a gente está mudando, somos mais adultos, não somos mais adolescentes. Eu diria que a proximidade do poder faz com que se você quiser ter uma postura rebelde, irresponsavelmente, é muito mais fácil. (...)

Além das preocupações espirituais, tens o lado bem poético que se mostra nas tuas letras.
RR - Me considero um letrista e não um poeta. Tenho um certa preocupação com o que eu escrevo, é lógico, sempre gostei da palavra, fui um bom aluno em literatura e gramática. Tenho uma formação católica, sou pequeno burguês mesmo, minha família é burguesa, fui educado pra fazer as coisas bem feitas, o melhor que puder.

Tua formação é luterana?
RR - Luterana, não, Deus me livre. Luterana é pior ainda, não estou querendo julgar ninguém, mas eles são muito mais disciplinadores. A minha história é uma coisa de imigrante italiano, de você tentar fazer o melhor. Aí, no momento em que escrevi as letras e descobri que poderia também trabalhar rimas ricas, fui tentando aprimorar. Tanto é que neste último disco tem uma desculpa: "Olha, as letras estão no original, com signos pobres e tudo". Houve críticas em relação a isso. Eu, pessoalmente, vou tentar não rimar verbo no intrasintivo com verbo no transitivo. Vou tentar fazer algo bom porque vou ficar mais satisfeito e o trabalho será mais duradouro se tiver qualidade.

E o papel político que o artista representa através dessas letras?
RR - Eu não gosto de comentar sobre essas coisas. Às vezes, penso se não concordo com Platão. Na República, ele fala que os artistas são nocivos para uma sociedade.

Mas ao mesmo tempo esta República do Platão coloca que a sociedade deveria ser governada pelos sábios, e o artista tem a sabedoria da sensibilidade.
RR - Eu sei, mas não consigo verbalizar isso tudo. Acho que a função do artista está mais ligada a pão e circo. Mesmo que seja pão e circo emotivo, uma coisa que vá te alimentar psiquicamente. Entendo que o artista não deve se envolver em política partidária. Faço uma política diferente: falo de coisas que interferem na minha vida. Em outra época, talvez não estivesse falando "Que País é Este?". Para mim vai ser muito fácil fazer uma música para alguém que perdeu o emprego porque estou vendo isso, tenho muitos amigos nessa situação. São coisas que me tocam emocionalmente. Chego então nesses assuntos ligados à política do Estado através da emoção. Simplismente, fui tocado pelos fatos e isso filtra nas músicas, embora eu não tenha nenhum plano e não entenda de política.

E a época do Geraldo Vandré?
RR - Foi há vinte anos e o Vandré ficou louco.

Tu refletes o pessimismo do país nas letras, numa tentativa de denunciar e puxar a situação para cima. Há um desgaste geral dos discursos mais políticos e a realidade é completamente outra? Não há mais condições de ninguém virar um mártir, como nos anos 60?
RR - Condições existem mas eu não sei como isso vai satisfazer meu ego. Porque eu acho que tudo é satisfação a nível de ego. A gente está em outros tempos. Se eu morrer em nome da arte, não vai dar em nada.

E a postura do Lobão, no ano passado, que abriu uma discussão em torno da droga?
RR - O Lobão sabe manipular muito bem isso. Se ele não soubesse, já teria morrido.

Não estás a fim de entrar nessa?
RR - Não estou a fim de ser levado pela bola de neve, pela correnteza.

A guinada para outro lado. Disseste que tens procurado uma vida mais saudável, dormir mais cedo.
RR - Isso é muito difícil, eu não consigo domir cedo nem ser espiritual. Falo isso, mas é a coisa mais difícil do mundo, minto, faço milhões de coisas erradas. Mas ao menos cheguei ao ponto de verbalizar o que eu quero, estou tentando, não saio mais tanto, dou menos pulinhos aqui e ali. É porque a gente também deu muita sorte, teve a chance de fazer o que gosta e ser remunerado por isso, então você vê as coisas diferentes. Passamos pelo primeiro e pelo segundo disco. Cantei "Será" para vinte pessoas e 30 mil pessoas. Visitamos o Brasil inteiro, conhecemos o país e os lugares. Através das entrevistas sabemos das questões que estão sendo colocadas. Temos lido jornal, estamos com as antenas ligadas. E depois que o tempo passa e você consegue manter uma certa perseverança em seu trabalho, isso faz com que você cresça. Então é a tal história, se da primeira vez me queimei porque a sopa estava muito quente, da próxima vez vou pegar a colherinha e soprar até esfriar. Então tem certas coisas que a gente viu. É como se estivéssemos antes no pré-primário e agora na segunda série. (...)

Não tens mais paciência para cair na estrada e na vida, como as outras gerações. A saída é mesmo apenas espiritual?
RR - Acho que a minha geração nunca entrou nessa.

Mas tu entraste neste pique e agora está saindo.
RR - Sempre fui rebelde. Mas nossa geração é totalmente careta. Tanto é que o pessoal das bandas de rock de hoje é justamente a exceção. Agora é ao contrário, todo mundo gosta de rock. Na época da adolescência, éramos os loucos, não tinha aquele espírito dos anos 60. Fomos as ovelhas negras, mesmo. Agora a coisa está mais aberta, sei que esse pessoal de 14, 15 anos, cheira loló, mas isso está se diluindo porque todo mundo percebe que não leva a lugar nenhum, a partir do momento que não está trazendo nem prazer. É uma bobagem falar assim porque talvez seja totalmente errado. Parei não foi por medo nem nada, simplismente não tinha mais prazer em tomar um ácido, me sinto bem quando estou feliz e careta. Antigamente, quando estava feliz, usava a droga para exacerbar a me sentir melhor ainda. Bebida também não é a solução. As coisas estão de tal maneira que o que vai te dar felicidade é justamente ficar careta porque todo mundo está louco. (...)

Quais as tuas referências em termos de poesia?
RR - Fernando Pessoa, Drummond, na música Caetano Veloso e gosto muito de sonetos.

Esses sonetos são bem romantismo?
RR - É, não gosto muito da temática deles, mas eu gosto do jeito que eles falam, sabe, aquele negócio "o gosto amargo do teu corpo ficou na minha boca". Gosto de Adélia Prado e dois poetas ingleses, tenho tara por Shakespeare. Leio pouca coisa dele porque tenho dificuldade de ler o inglês antigo, é muito onírico, tem muita nota de rodapé. Gosto mais dele quando vai para o lado do amor, ele tem muitas musas. Tem também um poeta chamado W. H. Auden que acho legal.

Todo o escritor ou compositor que a simplicidade para ficar na história. Tua achas que a arte, quando fica complexa, é antipopular ou ela deve buscar um caminho de ligação com o futuro que é em síntese, a vanguarda. Te preocupas com a questão da estrutura das letras e com a busca da universalidade do teu trabalho?
RR - A gente tenta e nunca consegue. A questão central é o tempo. O tempo passa e você vê que os modernistas estão assimilados. Um quadro cubista, por exemplo, não vai surpreender, mas eu duvido que uma pessoa tenha realemente a essência básica para entender aquilo. Tenho dificuldade para entender certos quadros abstratos. Prefiro o naif, que veio com a pintura moderna, algo ingênuo, aquelas casinhas. Isso eu entendo. Um artista como Andy Warhol é moderno, mas o que ele faz é super-simples, todo mundo entende. Claro que precisou ter um tempo para você saber o que são aquelas latas de sopa que ele retrata. O simples atinge mais o coração das pessoas do que algo mais abstrato, embora os meios de comunicação de massa façam coisas cheias de signos. As pessoas de hoje em dia têm a capacidade de entender as coisas muito mais rápido do que antigamente. Um programa como o TV Pirata, cheio de alusões, exige um certo nível cultural para ser entendido e todo mundo entende. A nível de arte acontece a mesma coisa. Se você pegar um texto abstrato, uma poesia concreta, hoje em dia qualquer garoto de 12, 13 anos vai saber o que está ali. Talvez não sinta e nem goste, mas percebe. Só que ainda sou pelo mais simples.

Trechos da entrevista a Renato Lemos Dalto, O Estado, Florianópolis (SC), 17 de julho de 1988.

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