O Rock De Luto
Renato insistiu até o fim em esconder a doença de seus milhares de admiradores. Mas no disco A Tempestade, lançado um mês atrás, mandou um recado de despedida na letra de Música Ambiente: "E quando eu for embora / Não, não chore por mim. "Em A Via Láctea, primeira música do mesmo CD a tocar no rádio, referiu-se explicitamente aos efeitos da AIDS: "Eu nem sei porque me sinto assim / Vem de repente, um anjo triste perto de mim / E essa febre que não passa." Para a família, reservou recordações ainda mais dramáticas, ao fazer o balanço de sua vida amargurada: "Mãe, eu só fui feliz na infância", confessou pouco antes de morrer.
Suicídio E Ritual
Houve quem não suportasse o
sofrimento e a morte do ídolo. No mesmo dia em que Renato
morreu, o baiano Luís de Souza Araújo, de 22 anos, suicidou-se
com um tiro na cabeça, dentro de um trem fantasma em que
trabalhava no município de Euclides da Cunha, a 314 km de
Salvador. Em carta, deixou registrado o desejo de encontrar-se no
além com o roqueiro. Dezenas de jovens, também desolados, foram
tentar se despedir de Renato no Caju. Entre eles, o publicitário
paulista Afonso Whitehead, 25 anos, era o único a manter o pé
no chão: "Não sou fã fervoroso, mas vim aqui fechar o
ciclo da minha adolescência." Como ele, que saiu de sua
cidade só para cumprir o estranho ritual, milhares foram os
adolescentes de todas as idades que ficaram órfãos. "Ele
falava as coisas que eu pensava, antes mesmo de eu pensar",
resumiu o estudante Eduardo Ferro, que acompanhou aos prantos a
vigília pelo ídolo, junto com a irmã Renata.
A escalada de Renato Russo até o coração da juventude
brasileira começou em 1984, quando a Legião lançou seu
primeiro homônimo disco, quase sem divulgação. Aos poucos,
muito graças aos shows que fazia no Circo Voador (Rio) e em São
Paulo, as canções encontraram seu alvo: meninos e meninas
carentes de alguém que expressasse as suas inquietudes.
"Quando nascemos fomos programados / Pra receber o que
vocês / Nos empurraram com os enlatados / Dos USA, de nove às
seis", recitava Renato em Geração Coca-Cola, um dos
maiores sucessos na parada radiofônica do ano de 1985.
"Eu Sou Diferente"
Outras músicas, inconformadas,
porém, líricas, como Tempo Perdido, Quase Sem Querer e Índios,
vieram em seguida, credenciando o vocalista como um dos grabdes
(e raros) poetas do rock que despontava no começo dos anos 80
com Cazuza, Lobão, Titãs e Ultraje a Rigor. Os oito discos
lançados pela Legião Urbana venderam até agora cerca de cinco
milhões de cópias.
Nascido em 1960, no Rio de Janeiro, Renato Manfredini Júnior,
foi um menino recluso e tímido, que, como lembrou com carinho
sua mãe, Maria do Carmo: "Se trancava no quarto para ouvir
música clássica, ler a Enciclopédia Britânica e a coleção
Os Pensadores." "Eu dizia: 'Júnior, vai jogar bola,
vai namorar.' "Ele ria baixinho e dizia: 'Não adianta,
mãe, eu sou diferente'." Aos 15 anos, ficou mais diferente
ainda. Já morando em Brasília, Renato recebeu um pino de
platina na perna, afetada por uma doença na cartilagem, e teve
de se trancar em casa nos dois anos seguintes. Quando voltou a
andar normalmente, fez a descoberta que iria mudar de vida: o som
punk dos Sex Pistols, Ramones e Sham 69.
Admirador do chamado progressivo, rock de inspiração
sinfônica, Renato viu naqueles garotos rasgados, que faziam
canções curtas e rápidas com três acordes, um exemplo a ser
seguido: todo mundo poderia ter uma banda. E fundou, com os
amigos André Pretorius e Felipe Lemos (futuro integrante do
Capital Inicial) o Aborto Elétrico, um dos pioneiros de
movimento punk-rock de Brasília, uma ousadia numa época em que
a cidade ainda vivia o amordaçamento do regime militar. Nessa
época, ele adotou o sobrenome Russo, uma homenagem coletiva aos
filósofos Jean Jaques Rousseau e Bertrand Russel e ao pintor
Henri Rousseau.
Trovador Solitário
Desfeita a banda, depois de muitas mudanças em sua formação, Renato não deixou cessar sua inquietação musical. Em 1981, com violão em punho , foi mostrar suas canções recém-compostas nos bares de Brasília. Ele intitulava-se o Trovador Solitário. Em seu repertório, estavam Química, Eduardo e Mônica e algumas outras músicas que mais tarde seriam sucesso em todo o Brasil. Enquanto isso, educava jornalismo no CEUB - Centro de Ensino Unificado de Brasília -, dava aulas particulares de inglês e tentava a carreira de radialista, comandando um programa sobre jazz. Um dia, Renato conheceu o baterista Marcelo Bonfá e com ele iniciou o projeto de uma nova banda: a Legião Urbana. Depois de alguns desencontros, os dois resolveram chamar para a guitarra um garoto que jamais havia tocado tal instrumento, Dado Villa-Lobos. A Legião tanto que fez que acabou caindo nas graças da EMI Odeon, que lançou o primeiro disco da banda.
Contestação
Desde os primeiros dias de sucesso,
Renato Russo era um estranho no Rock Brasil, com sua postura
absolutamente rebelde e política, de sinceridade extrema. Além
disso, numa época em que Paulo Ricardo adotava o modelito
roqueiro e arrancava suspiros das meninas com o RPM, Renato fazia
o contraponto, mergulhava fundo na contestação e encarnava o
anjo muito louco. "Acho muito fácil as pessoas sentarem
suas bundas gordas na cidade e ficarem definindo a juventude.
Não tenho que saber como é a cabeça do jovem. Tenho é que,
como cidadão, ajudar as pessoas que vem depois de mim",
dizia. Em 1986, ele reforçou suas intenções ao gravar Música
Urbana 2, de intenso realismo à la Tom Waits - "Nas ruas os
mendigos com esparadrapos podres / Cantam música urbana."
Em 1987, foi a vez de Que País é Esse - "Nas favelas, no
Senado / Sujeira pra todo lado / Ninguém respeita a
Constituição / Mas todos acreditam no futuro da Nação."
Sua sensibilidade lhe custou caro na vida pessoal. Renato nunca
escondeu seus problemas com a depressão, as drogas e a bebida.
Em 1984, por causa de uma rescisão de contrato com a gravadora,
ele tentou suicídio cortando os pulsos. Perdeu temporariamente o
movimento das mãos e teve que passar o baixo para Renato Rocha,
vulgo Negrete, que gravou os três primeiros discos da Legião.
Três anos depois, o vocalista confessou em entrevista:
"Nunca bebi pelo gosto, mas para ficar louco. Bebia Contreau
em copo de requeijão. "Pouco depois, Quatro Estações,
disco de 1989, abria com a frase "Parece cocaína, mas é
só tristeza." Era uma história de dependência química
que Renato tentou purgar no fim da vida. "Passei 15 anos da
minha vida me destruindo com drogas e álcool. Eu estava que nem
Kurt Cobain (do conjunto Nirvana, que, viciado em heroina, acabou
se matando em 1994). Estava muito deprimido."
Alvo de uma veneração quase doentia por parte de seu público,
Renato nem sempre soube lidar com as pressões do star system. E
os shows eram seus pontos mais fracos. Em 1988, no Estádio Mané
Garrincha, em Brasília, ele perdeu o controle e discutiu com os
seguranças, encerrando a apresentação poucos minutos após seu
início. Foi a senha para uma baderna que acabou com 385 pessoas
feridas e 60 presas. Nos camarins, após o incidente, a banda
chorava. Renato levou a culpa e, desde então. Resolveu nunca
mais se apresentar na cidade onde a Legião nasceu. No dia da
morte de Cazuza - 7 de julho de 1990 -, num show no Jockey Clube
Brasileiro, no Rio, ele foi mais feliz. Os fãs pegaram areia na
pista e começaram a fazer uma verdadeira guerra. O tumulto só
não foi maior porque Renato deu uma bronca e conseguiu parar a
brincadeira de mal gosto. Mas as apresentações da Legião se
tornaram cada vez mais raras. Houve uma miniturnê para divulgar
o disco V (1991) e outra mais curta ainda para Descobrimento do
Brasil (1993), mesmo assim , só um ano depois que este tinha
sido lançado. Em 1995, Renato Russo passou a sofrer síndromes
de pânico que o impediram de voltar aos palcos.
Em 1990, Renato Russo decidiu quebrar o silêncio sobre um
assunto que sempre aparecia velado em suas letras: suas
condições de homossexual. "Revelar que está na contra
mão da heterossexualidade normativa é uma questão difícil,
às vezes. Cada pessoa tem sua decisão." Se no primeiro
disco, esta era detectada penas ao se ler nas entrelinhas (Nossas
meninas estão longe daqui / Não temos com quem chorar e nem pra
onde ir / Se lembra quando era só brincadeira / Fingir ser
soldado a tarde inteira?"), em 1989 ela já começava a
ficar mais explicita. "E eu gosto de meninos e
meninas", dizia em alto e bom som em Meninos e Meninas, de
As Quatro Estações.
Daí em diante, Renato não parou, tornando-se um ativista pela
questão homossexual. Em 1994, ele gravou seu primeiro disco
solo, The Stonewall Celebration Concert, em homenagem ao célebre
levante gay ocorrido em 1969, nos Estados Unidos. O CD, aliás,
teve como inspiração o fim do namoro com um americano que ele
havia conhecido anos antes em San Francisco. No segundo disco
solo, o italiano Equilíbrio Distante (95), o encarte trazia uma
foto do músico fazendo cabo-de-guerra com jovens musculosos. A
Tempestade, por sua vez, tem a canção Leila - "E você diz
daquele seu jeito: Ai, preciso de um homem / E eu digo: Ah,
Leila! Eu também". Renato porém não se limitava a
defender a questão homossexual com letras e declarações: ele
freqüentava as sessões do grupo Arco íris e chegou a doar 10
mil dólares para a organização da Conferência Internacional
de Gays e Lésbicas, em setembro do ano passado. "Na época,
ele tinha acabado de terminar com o namorado, mas estava
superaltoastral. Em janeiro, ele começou a ficar arredio,
disfarçando a voz no telefone", revela Raimundo Pereira,
vice-presidente do grupo de defesa gay Atobá.
A Aids, que acabou consumindo o líder da Legião Urbana, já
tinha sido tema de uma de suas canções: Feedback Song For a
Dying Friend, que na tradução de Millôr Fernandes, incluída
no encarte de As Quatro Estações, ficou como Canção de
Retorno Para Um Amigo à Morte. "Alisa a testa suada do
rapaz / Toca o talo nu ali escondido / Protegido nesse ninho
farpado sombrio da semente / Então seus olhos castanhos ficam
vivos", diziam os primeiros versos. O amigo à beira da
morte era Cazuza, com quem Renato Russo dividia o título de
poeta máximo do rock Brasil dos anos 80. Mais ou menos na mesma
época em que a canção era lançada, o próprio Renato se
contaminou com a Aids.
Compondo Ópera
Os boatos sobre a saúde do
vocalista começaram a correr cerca de mês atrás, quando a
Legião Urbana lançou seu sétimo disco de estúdio, A
Tempestade sem dar entrevistas e sem fazer divulgação. A foto
de Renato no encarte era de arquivo, da época de Equilíbrio
Distante. Isto tudo, somado a letras como a de Natália
("Vamos falar de pesticidas / E de tragédias radioativas /
De doenças incuráveis"), despertou a curiosidade dos lãs.
"O Renato está bem, em casa, compondo uma ópera",
garantiu na quarta-feira passada a MANCHETE o empresário da
Legião, Rafael Borges.
Menos de dois dias depois, a morte de Renato era anunciada. Um
punhado de fãs, a sua maioria meninas adolescentes, se reuniu na
porta do prédio do líder da Legião, para chorar, ouvir suas
músicas em walkman e esperar a saída do corpo para o Caju.
"Não acreditei quando ouvi a notícia, saí quebrando
tudo", disse Talita Alencar, 15 anos, que veio com as amigas
Roberta Schneider e Gabriela Rodrigues, da mesma idade. As três
vestiam camisas com o nome de Renato Russo escrito a mão.
Antes da cremação, a família do músico optou por uma
cerimônia religiosa simples, à qual compareceram só os amigos
mais íntimos, como a cantora Marina e as atrizes Denise Bandeira
(que chegou a namorá-lo) e Ana Beatriz Nogueira. Marco Nanini,
amigo de Renato há quatro anos, chegou atrasado.
Coincidentemente, era dia de Nossa Senhora Aparecida, santa da
qual o roqueiro era devoto.
Nenhum dos membros da Legião presenciou o culto. Dado
VilIa-Lobos foi ao cemitério no dia anterior e Marcelo Bonfá
viajou para Fortaleza. "0 Marcelo está muito deprimido. A
viagem não vai adiantar, porque a dor está dentro da
gente", comentou Leda Bonfá, mãe do músico. Outra
ausência foi a do filho de Renato, Giuliano, de sete anos, que
era criado pelos avós em Brasília. Renato dizia tentar
preservá-lo do assédio da mídia e nunca revelou quem teria
sido sua mãe. Comenta-se que era uma modelo paulista que morreu
num acidente de automóvel.
Do lado de fora da capela, na janela os fãs se acotovelavam,
tentando ver pela última vez o ídolo. O operador de áudio
Emerson Gonçalves, de 21 anos, que perdeu uma perna aos 12 e
carrega uma tatuagem da Legião no braço, era um dos mais
emocionados, citando um trecho da canção Love In The
Afterntoon, do disco Descobrimento do Brasil "É tão
estranho / Os bons morrem jovens / Assim parece ser".
Morador de Maricá, ele passou a noite no cemitério e escreveu
um poema para Renato. As cinzas do músico, segundo a família,
serão espalhadas em um parque florido no Rio, cidade que ele
dizia amar.
Com Renato Russo, vai-se mais um pedaço insubstituível da
música brasileira, entre os muitos que morreram nos últimos
anos: Raul Seixas, Cazuza, Gonzaguinha Tom Jobim e Mamonas
Assassinas. "0 Renato foi o poeta mais talentoso da
geração dele, junto com o Cazuza e o Arnaldo Antunes. Ele faz
muita diferem Foi um grande cantor, o maior geração dele",
disse o produtor Nelson Motta. "Ele era uma pessoa muito
carinhosa, muito afetuosa, por quem vou sentir muita saudade, uma
admiração eterna e um respeito eterno", acrescentou a
amiga Marina Lima.
O Maior Legado
Renato deixa uma série de gravações inéditas, que fariam parte de A Tempestade, caso este tivesse sido um disco duplo, como ele queria. Existem também registros ao vivo dos últimos shows da Legião. Seu maior legado, porém, já está na boca dos jovens, que continuarão cantando suas canções, como A Via Láctea. "Quando tudo está perdido / Sempre existe um caminho / Quando tudo está perdido / Sempre existe uma luz."
Nada De Novo. Só Mudaram As Estações
Eram meninos e meninas que
comungavam idêntico vazio ante um Brasil do qual eles não foram
chamados a opinar. Eles existem em algum momento nebuloso entre
as Diretas Já e os caras-pintadas. Morrer pela pátria não
passava na cabeça de ninguém e gritar que "Somos os filhos
da revolução / Somos burgueses sem religião" eram
palavras de ordem mais cheias de som do que sentido. Rebeldes sem
causa versão shopping-center, vestiam grifes jovens tipo Company
e Cantão e velhos jeans apertados no bumbum das garotas. A
Geração Coca-Cola bebeu e comeu do mau e do pior. Por falta de
dinheiro, derrubava-se cachaça, conhaque ou traçados para dar
onda. Cerveja pouca. No fina de noite, quase sempre solitária ou
com amigos, o jeito era esperar o ônibus no ponto comendo com os
últimos trocados um hot-dog caprichado com refrigerante. Natural
só na praia, com frango desfiado, maionese e plus-vita.
Os namoros continuavam a existir, mas muita gente ficava. Fosse
sob os andaimes mal iluminados do Circo Voador ou no morro da
Urca (Rio), nas esquina, do shoppingGilbertinho e no Clube do
Exército (Brasília), ou na, arquibancadas do estádio da
Portuguesa (São Paulo), apertos e amassos distraíam os meninos
meninas que não tinham muito mais o que fazer. Dia seguinte iam
à aula. Os surfistas já gritavam "Içaaa". Naquele
tempo muita gente experimentou maconha. E ninguém usava
camisinha
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