O Poeta Continua Aqui
"Se
eu tenho medo que me esqueçam? Não, eu estou com o público e
ele está comigo".
Renato Russo
Ao
longo dos 12 anos em que se manteve entre os primeiros lugares
nas paradas de sucesso, o cantor e compositor Renato Russo,
líder do grupo Legião Urbana, consolidou a fama de excelente
letrista, intérprete sensível e pensador polêmico,
conquistando milhares de admiradores em todo o país.
Indiscutivelmente, formou com Cazuza a mais brilhante dupla de
poetas surgida no balanço do Rock Brasil, cujos contornos se
tornaram mais nítidos no início da década de 1980.
Renato nasceu no Rio de janeiro, em 27 de março de 1960. Morou
vários anos com a família em Brasília, onde se formou em
jornalismo. Antes de chegar ao show business, foi repórter e
lecionou inglês. Apreciador dos escritores românticos e dos
poetas ingleses, Renato Manfredini júnior era um leitor voraz.
Por sinal, adotou o "Russo" de seu nome artístico em
homenagem ao pensador francês Jean-Jacques Rosseau, ao pintor
Henri Rousseau e ao matemático e filósofo inglês Bertrand
Russel. A sua bagagem cultural haverá de ter sido um dos fatores
que o levaram a se tornar um referencial de qualidade intelectual
entre os roqueiros nacionais.
Outra característica importante era o apuro estilístico de que
não abria mão, quando se tratava de produzir alguma nova
composição. A letra de "Índios", um dos hits do
disco Dois (1986), por exemplo, levou mais de um ano até ser
considerada pronta. Renato Russo começou a se embalar
definitivamente entre os acordes distorcidos das guitarras no
final dos agitados anos 70, na Capital Federal, com o grupo
Aborto Elétrico - experiência punk substituída pelo Legião
Urbana, que formou com Marcelo Bonfá, Dado Villa-Lobos e Renato
Rocha, o Negrete (que logo depois se desligou do grupo). O
primeiro LP, homônimo à banda, lançado em 1984, emplacou
sucessos até hoje executados nas rádios, como
"Soldados", "Ainda é cedo" e a já clássica
"Geração Coca-Cola". As canções tinham ritmo,
harmonia e melodia de fácil assimilação, e eram - todas -
complementadas por letras que destoavam das trivialidades e
irreverências juvenis de certos grupos de rock.
Enquanto a banda conquistava mais e mais fãs, Renato ia marcando
presença no cenário musical não apenas como letrista e cantor,
mas como cidadão participante. Suas sempre instigantes, às
vezes controversas visões de mundo, suas multifacetadas
experiências de vida, sua luta contra os excessos de álcool e
drogas e sua condição de homossexual assumido tudo isso
delineou, ao lado de uma genuína rebeldia, o mito Renato Russo.
Que sempre tinha o que dizer sobre política, comportamento,
música, literatura e, claro, o trinômio sexo, drogas e rock' n
'roll. Nada escapava ao crivo de suas opiniões, impregnadas de
traços que conformavam o imaginário das frações mais
críticas e indignadas (nem por isso menos românticas) de sua
geração. E não ficava apenas no discurso por uma sociedade
mais justa e fraterna. Os encartes de discos incluíam páginas
com a divulgação de entidades humanitárias e de defesa de
minorias. Em 1994, ele doou metade da receita obtida com a venda
do CD The Stonewall celeration concert para a Ação da Cidadania
contra a Miséria e pela Vida, liderada pelo sociólogo Herbert
de Souza (Betinho).
Renato Russo morreu no Rio de janeiro, em 12 de outubro de 1996,
por complicações decorrentes da AIDS. Segundo um dos médicos
que o assistiam, era soropositivo desde 1990. Ao contrário de
Cazuza, Renato jamais admitiu publicamente ser portador do vírus
HIV. Mas nos, belos versos de "A via-láctea",
incluída no CD A tempestade, ele traduziu - numa
auto-referência poética, já presente no título do disco - o
sofrimento que por certo lhe varava a alma: "Quando tudo
está perdido/Sempre existe um caminho / Quando tudo está
perdido / Sempre existe uma luz / Mas não me diga isso / Hoje a
tristeza não é passageira / Hoje fiquei com febre a tarde
inteira / E quando chegar a noite / Cada estrela parecerá uma
lágrima / Queria ser como os outros / E rir das desgraças da
vida / Ou fingir estar sempre bem / Ver a leveza das coisas com
humor / Mas não me diga isso / É só hoje e isso passa / Só me
deixe aqui quieto / Isso passa / Amanhã é um outro dia não é
/ Eu nem sei por que me sinto assim / Vem de repente um anjo
triste perto de min / E essa febre que não passa / E meu sorriso
sem graça não me dê atenção / Mas obrigado por pensar em mim
/ Quando tudo está perdido / Sempre existe uma luz / Quando tudo
está perdido / Sempre existe um caminho / Quando tudo está
perdido / Não quero mais ser quem eu sou / Mas não me diga isso
/ Não me dê atenção / E obrigado por pensar em mim."
Renato passou os últimos dias recluso em seu apartamento numa
rua arborizada de Ipanema, acompanhado apenas pelo pai e por um
enfermeiro. Já se recusava a prosseguir um tratamento à base de
coquetéis de drogas. Seu corpo foi cremado, conforme ele
desejava, e as cinzas espalhadas nos jardins do paradisíaco
sítio do paisagista Roberto Burle Marx, na zona oeste da cidade.
A expressiva discografia do Legião Urbana inclui: Legião Urbana
(1984), 550 mil cópias; Dois (1986), 1,1 milhão de cópias; Que
país é este (1987), 770 mil cópias; As quatro estações
(1989), 1,1 milhão de cópias; V (1991), 465 mil cópias;
Música para acampamento (1992), 270 mil cópias; O descobrimento
do Brasil (1993), 430 mil cópias; Por enquanto (uma
retrospectiva, em seis CDs), 20 mil cópias; A tempestade ou O
livro dos dias (1996), 400 mil cópias. Renato gravou ainda dois
trabalhos solo: The Stonewall celebration concert (1993), cantado
em inglês, que vendeu 200 mil cópias; e Equilíbrio distante
(l995), interpretado em italiano, 550 mil cópias.
A obra de Renato Russo - um legado de genialidade poética e de
integridade artística - permanecerá atual, influente e
inesquecível. Principalmente para aqueles tantos homens e
mulheres que, como ele, crêem que "é preciso amar as
pessoas como se não houvesse amanhã".
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