Madeira de Dormente

                        sensaes  e condues  oblquas              

                                                                                                             

                                                                                                  

Algumas peas resultantes desses anos de pesquisa, sendo a principal delas Madeira de Dormente, para orquestra, resultam da vida composicional regida pela intuio diagramtica(vide texto), em sintonia com o sonho sobre o sonoro. Se essa intuio em que se doa ou em que se faz, sem a necessidade constante de uma intencionalidade, a viga mestra da vida composicional, do esprito errante, no se renegar aqui algumas pequenas engrenagens logicizveis, de cunho intencional e dirigido, nas quais o material se regenera, transmuta ou se projeta. A determinao do comportamento sonoro segue primeiramente a potncia doadora da intuio diagramtica, ao pesquisar e elaborar formaes meldicas, harmnicas e timbrsticas, a partir de sensaes e intuies sobre a sonoridade e seu contexto. Mas algumas corporificaes sonoras se valem de condues oblquas, nas quais a intencionalidade ganha um certo terreno. Oblquas porque se tratam de procedimentos que atravessam a obra sem, no entanto, determin-la [1] . Formalizaes so realizadas e utilizadas, mas no respeitadas a ponto de configurar a prpria obra em sua totalidade. Assim como as sensaes oblquas que, como veremos, agem sobre a feitura de objetos, combinaes timbrsticas e seus contextos, esses procedimentos, que so pensados por meio de matemas ou formas racionais de conduzir a transmutabilidade do material sonoro, passam pela obra de forma que ela no seja plenamente criada ou planejada por eles.

Com essas duas vias, conduo e sensao, poderemos trabalhar no plano da aceitao mtua de um pensamento racional e de um pensamento no racional. Compor aqui no s ter idias sonoras representveis, tambm algo como estar na frente de uma classe de mais de quarenta crianas. Instrumentos-crianas. Individualmente, podemos pens-los como um que olha para o nada, um que grita com o outro e esquece, um que mais controlvel, mas com um potencial e um universo interior maravilhoso, desconhecido ou apenas recoberto, e assim por diante. Cada momento respeita uma potncia de vida que excede nossas formalizaes, as quais, por sua vez, no deixam de vingar de volta. Coletivamente, podemos comparar uma crianada com o grau de controle aqui proposto: comportamentos incitados como risada, dilogo, fala, gestos, manifestaes em cadeia ou isoladas, pequenas e muitas trocas, mesmo aquelas escondidas do professor.

            Duas das principais formas de conduo oblqua que vm sendo desenvolvidas nessa pesquisa so a velocidade figural e a velocidade qualitativa. Elas expressam uma vontade de conduzir e orientar localmente a distribuio energtica dos componentes timbrsticos na composio, na medida em que une, localmente e materialmente, consideraes de espao e tempo. No se considera mais a velocidade apenas um produto do andamento global, mas se v nela um potencial de conduo espao-temporal extremamente rico no interior do jogo de atualizao textura/figura, das respiraes sonoras, das frases ou objetos mais elementares. Por pens-la em termos mais qualitativos, tambm no poderamos vincular sua presena somente a linhas de duraes calculveis e sobrepostas, mas muito mais heterogeneidade de diversos fatores vetoriais que no dizem respeito apenas a parmetros temporais - ou seja, direo e salto meldicos, intensidades e dinmicas, conduo de tipos de ataque e modos de tocar, articulao tmbrica entre instrumentos idnticos e instrumentos diferentes, ou no interior de uma frase, atravs da mudana de modos de ataque e de toque. Pois a velocidade no apenas a relao entre tempo e espao, mas tambm uma direcionalidade em essncia e em potncia, ou seja, uma vetorialidade ainda sem clculo, e uma possibilidade material, que aponta para o futuro.

Partamos de um exemplo bem claro. fascinante, no plano sensvel, passar por perto dos sons de construo ou reforma de um prdio, o que no Brasil costuma ser algo relativamente comum, especialmente em grandes cidades como So Paulo. Alm da vivncia peculiar de uma rica experincia sonora do cotidiano, podemos captar o jogo de velocidades de cada toque de ferramentas e mquinas diferentes, na sobreposio de sons de maior ou menor massa tnica (mais ou menos ruidosos), todos mais ou menos peridicos e regulares. Essa condio diz respeito tanto temporalidade de repeties, quanto, no plano mais amplo, direcionalidade criada pelas diferentes constituintes de variao vetorial que podemos considerar: qualidades de timbre, intensidades, dinmicas, desvios em leves glissandos, pausas mais vividas do que calculadas etc. Essa sobreposio de velocidades mais ou menos regulares capaz de sustentar uma escuta atenta por bons momentos. como se o percurso de cada som de ferramenta, ou motor, traasse seu local ou vetor sonoro atravs de uma velocidade que, para se tornar perceptvel, depende tanto de graus de diferenciao espao-temporais quanto tmbrico-qualitativos.

Ao analisar alguma obra musical, muitas vezes falamos em accelerandos e ritardandos escritos - aqueles que so constituidos pelo jogo das figuras rtmicas e no por alguma notao verbal mais analgica do tipo accelerando ou ritardando. vlido notar porque o uso de uma escrita figural para velocidades , dependendo da preocupao, mais substancial composicionalmente do que a troca de andamento global calculado ou por palavras mais gerais de caracterizao (Andante, Lento, Presto etc). Uma vantagem mais evidente a de permitir planos paralelos de velocidades variveis, em certa medida independentes e com a possibilidade de gerar mais nuances temporais e vetoriais do que andamentos, que seriam mais globais. Enquanto certos percursos aceleram, outros podem retardar de maneira simultnea, detalhada, varivel e fragmentria. Isso no nenhuma novidade em composio, mas a associao consciente entre fragmentao do discurso sonoro e a considerao pelas velocidades como manipulao da sensao-percurso, com base na heterogeneidade de diversos parmetros e timbres, no tem sido enfocada, de maneira a tornar a questo das velocidades qualitativas e variveis mais presente, uma fora produtora e enriquecedora de um espao sonoro.

Uma constatao que pode parecer banal, porm se torna essencial para a compreenso do que estou expondo, o simples fato de a idia de velocidade sempre ter uma componente vetorial. Como foi dito, a velocidade no apenas uma poro de espao percorrido num determinado tempo mas tambm implica uma direcionalidade em essncia e em potncia, como possibilidade topolgica sensvel da relao passado/presente/futuro. tambm por causa dessa virtude que podemos caracterizar suas qualidades com elementos musicais no vinculados a parmetros puramente temporais e pens-la no campo mais local da diferena tmbrica e das figuras meldicas - portanto, no apenas no andamento ou nas duraes. Sentir que algo direcional significa manter certas qualidades corpreas em algum tipo de continuidade temporal. A qualidade mnima de uma nota, de um timbre, de um objeto recorrente, mesmo que em mutao, promove um percurso perceptvel e algum sentido de velocidade, que no dado apenas pelo jogo de duraes ou da rapidez de leitura, mas por qualidades de conduo energtica mais amplas e menos investigadas.

A velocidade figural e a qualitativa so, portanto, observveis em diversos nveis, e sua linearidade seria compensada por um desejo, aqui, de uma fragmentao contnua em relao ao plano da forma um pouco mais global, de sua dissoluo em uma textura ou mesmo na microforma. O desenvolvimento pleno dessas questes est apenas engatinhando. Pretende-se seguir pesquisando, ao longo dos anos, formas de conduzir uma verdadeira comunho de procedimentos em situaes tmbricas singulares, com base em tais velocidades fragmentrias.

Quanto aos procedimentos de clculo, ao uso de matemas mais especficos, pode-se partir inicialmente da anlise de propriedades vetoriais de qualquer frase musical composta e bem delinevel. Ela pode ser quantificvel atravs de um ndice de comparao entre os valores j quantificados da frase, ou atravs da quantificao e observao do comportamento global da direcionalidade ainda no dividida, como por exemplo, ao considerar o desenho meldico (saltos e direes) ou a ordem das duraes. 

Como processo de anlise quantificvel de figuras frasais j quantificadas (como as duraes ou o tempo entre ataques, por exemplo), nos valemos, no momento, de um ndice de desvio mdio, procedimento matemtico e mesmo musical bastante trivial, mas que pode ser aplicado a diferentes parmetros, podendo ser pensado, na evidncia sonora entre eles, com diferentes pesos de influncia. Tal anlise permite a comparao mensurada da variao da velocidade figural entre frases diferentes ou da mesma variao na transmutao de uma frase ou de um objeto composto nico. Uma operao mais intencional gera uma conscincia e uma possibilidade de conduo da energia sonora, ao ser gerenciada, por exemplo, por esse conceito de velocidade figural, podendo ser um recurso til para a composio.

Nesse sentido, a investigao do desvio em frases de duraes irregulares foi bastante realizada nesse perodo de pesquisa, com base no ndice de desvio mdio aplicado localmente, no globalmente. A aplicao em alturas ou intensidades pretende ser bem mais desenvolvida no futuro tal como as formas de relacionamento dos diferentes parmetros e timbres em relao velocidade.

Interessante observar, por exemplo, que a figurao rtmica (em notao musical) no nos fornece uma idia clara da variao de velocidade. Tal velocidade pode ser considerada, em um de seus aspectos, pela posio dos ataques em uma frase. Uma figura que demonstra maior regularidade ou repetio na notao no ter necessariamente um ndice mais baixo de desvio, ou seja, uma menor variao de velocidade. No entanto, ter um ndice mais alto no significa maior variao de velocidade no plano geral, o que depender de outros aspectos heterogneos (desenho das alturas e seus intervalos em um mesmo registro, dinmica, tipo de toque, articulao timbrstica etc).

Tomemos um primeiro exemplo:

A figura em cascata esquerda (3 tercinas e duas colcheias) obteve um ndice de variao da velocidade (desvio mdio) de 0.125, se considerarmos inclusive a ltima nota. A figura da direita (5:4 semicolcheias, 4 semicolcheias e uma tercina) obteve um ndice igual a 0.041. Ambas as figuras tm 12 notas. A primeira tem trs grupos de notas iguais e dois diferentes. A segunda tem trs grupos de notas diferentes. O ndice da primeira figura indica que, apesar da aparncia de maior regularidade figural (figuras repetidas), sua variao de velocidade maior, pois seu ndice mais alto. 

Se as considerarmos como figuras cascata escalares, com exatamente as mesmas notas, teremos uma igualdade no plano da direo das alturas e de seus intervalos. Se imaginarmos um descrecendo de mf at ppp em ambas as frases, teremos igualdade no comportamento da dinmica, bem direcional. Se a articulao, o tipo de toque e o instrumento forem os mesmos, teremos, idealmente, igualdade tambm nesses aspectos. Assim, o que diferenciaria as frases no plano da velocidade figural seria apenas o desvio mdio de suas duraes, a frase esquerda sendo mais varivel em velocidade.

A importncia de considerar cada elemento musical comea a aparecer aqui. Veremos a comparao de frases com outras variveis em jogo, e aos poucos vamos incluindo maior complexidade.

Sustentamos que tanto a alta regularidade quanto a alta irregularidade da figura reduzem o potencial de direcionalidade. Uma velocidade constante dilui sua prpria potencialidade de direcionar os elementos, o que na Fsica est relacionado ao que se chama de Inrcia. Por outro lado, a alta irregularidade da figura pode dissolver qualquer sentido de direcionalidade. Quanto maiores as distncias entre impulsos e seus valores paramtricos na ordenao seqencial de eventos, maior a perda de vetorialidade, do sentido de trajeto.  Mas o mbito da direcionalidade sensvel seria dificilmente determinvel pela combinao de tais ndices e clculos, principalmente no atual estgio de pesquisa, e tamanho o nmero de variveis que ainda permanecem livres de determinaes de peso confiveis, alm daquelas que ainda permaneceriam desconsideradas em um contexto de sobreposio de figuras musicais distintas. por isso que acreditamos na heterogeneidade das situaes sonoras, naquilo que escapa a uma tentativa logicista de unificar e provar a validade cientfica da velocidade na composio, sem, no entanto, deixar de calcular vrios nveis de sua atuao como instrumento de transmutabilidade do material e da observao deste nas formaes e manipulaes texturais.

Vejamos mais uma comparao simples entre as frases seguintes:

 

esquerda, temos uma figura em direo ao agudo de 5 notas, com valores rtmicos iguais. direita, vemos uma figura com duas direes, tambm de 5 notas, rumando globalmente para o agudo. Ambas possuem valores de durao idnticos. O desvio mdio nas duraes zero em ambas as figuras. Sendo assim, no critrio de diferenciao da variao de velocidade qualitativa. Considerando que todos os outros parmetros so iguais, veremos que apenas o sentido de direcionalidade das alturas ter uma variao: a segunda frase se compe de duas direcionalidades, enquanto a primeira tem apenas uma. Mas o que dizer de sua velocidade a partir disso? De fato, a quebra da direo propicia uma ambigidade, pois quanto mais se altera a direo das alturas de uma figura, mais a figura se decompe em vetores menores, gerando uma fragmentao de sua direcionalidade. Podemos at especular que, como vetores em direes opostas se subtraem, a resultante vetorial para o agudo da segunda frase acaba sendo menor que a primeira. como se a segunda frase tivesse uma quebra de movimento que a primeira no possui, o que pode ser sentido como um leve breque, titubeio ou hesitao. No entanto, ao final, ela chega at o mesmo ponto que a primeira, devido a um salto logo aps a mudana de direo. Sem dvida, um salto uma qualidade de velocidade considervel, pois ele pode refletir um maior espao percorrido em um mesmo tempo. Maior o salto em uma figura, maior pode ser a impresso de velocidade que lhe foi conferida. como se, tendo por referncia a continuidade do campo de alturas, tivssemos uma acelerao ou um maior percurso percorrido em um mesmo tempo.  Se no podemos constatar qual delas tem maior velocidade, podemos ao menos dizer com certa segurana que, mesmo tendo valores rtmicos idnticos, a frase com dupla direo resguarda um sentido de variao de velocidade maior que a frase unidirecional.

Muitos leitores vo se perguntar se o desafio aqui saber at que ponto essa discusso til, e mesmo se ela passvel de estabelecer relaes mais slidas, ao pesar tantas consideraes sobre a velocidade. Este exemplo procura apenas demonstrar at onde podemos chegar numa comparao local, no momento em que o ndice de desvio mdio das duraes idntico e no revela nenhuma diferena. Assim, podemos observar como a questo da sensao de variao da velocidade depender de aspectos e parmetros no puramente temporais.

Vejamos outras frases figurais:

Para figuras mais complexas, torna-se interessante calcular o ndice de desvio das duraes, o que, geralmente, proporciona uma comparao eficiente. A primeira figura tem ndice de desvio de 0.204 e a segunda, 0.1436.[2] Como sabemos, o fato de ter mais quilteras ou aparentar maior complexidade na escrita no corresponde necessariamente a uma maior variao de velocidade. Percebemos que o desvio mais alto na primeira figura, e que a segunda possui um nmero bem maior de valores iguais. A variao de velocidade figural maior na primeira figura, no plano das duraes. Como no h variao de alturas, esse parmetro no poderia ser considerado numa avaliao de velocidades.

A dinmica poderia ditar algumas diferenas. Crescendo e decrescendo do um sentido de direcionalidade muito claro para uma figura frasal. Ao se compor uma frase com extrema variao de dinmica, a tendncia sensvel pode ser dupla: que a figura perca seu carter direcional, seu sentido de direcionalidade e assim de movimento, ou ento que ela ganhe um tipo de agitao que seria sentida como alta variao de velocidade, dependendo do contexto e da heterogeneidade dos outros parmetros e caractersticas sonoras. Essa segunda qualidade de sensao remeteria idia de que a variao de dinmica d a iluso de variao da posio dos pontos sonoros no espao, enquanto que a primeira seria sentida menos como movimento de um traado que como cintilao ou fragmentao de uma energia mais localizada.

          Ao oscilar notas entre si, como se elas tivessem chegado a um mbito especfico, pode-se gerar um sentido de estaticidade que interrompe a velocidade, ou gera planos de continuidade separados que podem fragmentar a orientao vetorial nica em duas linhas paralelas mais lentas, alterando a sensação de velocidade. A acentuao, como modo de ataque diferenciado, a articulação frasal, o modo de tocar, todos colaboram para a distino de planos qualitativos (de timbre). E o salto, dependendo do timbre das notas envolvidas e de seu tamanho, alm de poder dar a idia de uma acelerao, tambm pode fragmentar o discurso em velocidades paralelas mais lentas, ao fazer oscilarem registros diferentes. Muito j se falou sobre o registro como um dos agentes de diferenciao timbrstica em um mesmo instrumento.

Concluímos também que uma certa inconstncia intervlica (das relaes de alturas) colabora para a noo de variao de velocidade, desde que dentro de um certo mbito de registro homogneo ou razoavelmente central, que mantenha timbricamente a qualidade de unidade do percurso. A repetio de um mesmo intervalo, ou uma oscilao em trilo e tremollo, por exemplo, gera um sentido de parada, de fixidez, de cristalizao objetual, mesmo que seja mais rpido, em termos de duraes figurais, que a linha que o precede ou sucede. Portanto, diferentemente do campo das duraes, uma irregularidade intervlica e da ordem de direes das alturas parece colaborar mais para o sentido de variao da velocidade. Já uma inconstncia no plano da acentuao e dos modos de tocar, e do timbre em geral, pode estar mais vinculada perda da fora de velocidade qualitativa que a seu destaque, pois a irregularidade tmbrica pode facilmente fragmentar o sentido de corpo necessrio para manter a qualidade de percurso do objeto delinevel no tempo. Isso depende da manutenção do timbre.

Se agora sabemos calcular figuralmente algo sobre o quanto uma velocidade qualitativa pode variar, podemos pensar tambm no como ela varia. Para tanto, preciso que se considere a ordem entre os impulsos, a ordem de suas caracterizaes paramtricas e assim, observar as distncias qualitativas em tais ordenaes. Por exemplo, uma frase que se inicia com um salto de quarta justa  para o agudo, durando dois segundos, com dinmica descrescente mf/mp, seguido de uma segunda menor para o grave, com intensidade constante e durao de ½ segundo, e  assim por diante. A ordem entre os elementos dos eventos que revelar algo sobre como a velocidade se efetua naquele local. Uma figura que acelera ou desacelera globalmente tem uma direcionalidade clara. Figuras que variam entre acelerar e desacelerar de maneira irregular so, evidentemente, mais ambguas em termos vetoriais.

Observa-se que na obra, no ato de composio, o interesse muitas vezes se encontra em uma tenso dialtica entre sensao-percurso e sensao-ponto. Tenho a impresso de que o pensamento sobre a velocidade nesse sentido local, figural e qualitativo, auxiliar a fabricar ou ao menos a pensar de outra forma tal tenso. Claro que no contexto de uma msica tais consideraes podem ser vistas como suprfluas se sobrepusermos diversas frases e objetos distintos, o que faria com que vrios sentidos de velocidade perdessem sua audibilidade. Mas pensar em como elas estariam relacionadas e como formam a questo da velocidade ao entrarem em choque tambm justamente o desafio da composio, e nada impede pensar frases simultneas como somas de vetores momentneos, dependendo do contexto textural. O fato de ser algo proposto como no-automatizável no desmerece o pensamento sobre a velocidade dessa forma; nada impede que seja esse mesmo pensamento aquele que tornar sensvel, com o tempo, certas relaes de velocidade e de timbre antes pouco consideradas ou escutadas.

Se h um rico potencial para a velocidade figural no campo operatrio da composio, no se pretende tornar a questo um amuleto servil do bom discurso, e nem mesmo uma soluo idealizada de uma obra musical. Em relao msica que estamos compondo, esta cons-cincia dever atingir o sonoro sem que se pretenda alguma Atualidade ou Virtualidade puras na experincia da obra. Questes sobre como esse recurso se tornaria criativamente determinvel na idealizao e no plano de uma macroforma ser um problema de cada obra. No caso de peas vinculadas pesquisa, esse recurso, como conduo oblqua, apenas ajuda a distribuir e conduzir a ao energtica nas texturas e percursos sonoros locais, de maneira mais consciente. Ele no o fundamento da msica, mas um recurso de explorao das condues oblquas, que esto submetidas doao mais vivida e geral da intuio diagramtica e do sonho sobre o sonoro. Poderamos estender a vrios exemplos e consideraes a questo da velocidade como conduo oblqua, tal qual foi efetuada na prtica da composio e nas peas resultantes, mas nos limitaremos aqui.

Cabe apenas expor alguns exemplos localizados do tratamento de velocidade em momentos texturais que se valem de encadeamentos de velocidades figurais e de questes qualitativas.

 

Incio de guaVolpiaMetal

 

A pequena pea para piano guaVolpiaMetal se inicia com um objeto especfico, uma tera menor, que sofre acelerao e desacelerao ao se fragmentar em pedaos, passando da mo direita para a esquerda. Ela se dissolve em outros objetos borrados pela ressonncia constante do pedal e pela fragmentao figural, rtmica, iniciada pela appoggiatura do segundo compasso e levada a cabo por pequenas notas repetivas em tempos diferentes[3]. No incio da pea, a velocidade figural aqui est relacionada tanto ritmia variada dos eventos como ambigidade mais ampla entre sensao tera menor e sensao oscilao entre d sustenido e mi. Essa ambigidade tambm se vale da heterogeneidade da dinmica e da intensidade, das appogiaturas e ligaduras de sustentao de notas, e finalmente da acentuao. Todas do riqueza e ambigidade sensao de velocidade numa textura ainda bem simples. Elas operam, assim, um certo pensamento composicional que considera a velocidade pelas qualidades sonoras e no apenas por formalizaes temporais. Um certo efeito de refrao harmnica pode ser notado quanto as notas iniciais d sustenido e mi so substitudas pelas notas d natural e mi bemol do compasso 6.

Como parte de um andamento bastante rpido e com muitos outros instrumentos participando, as velocidades abaixo so constituintes da textura tmbrica das clarinetas em um objeto mais global que percursos propriamente singulares a serem percebidos. Uma irregularidade de repeties e de relaes rtmicas como essa pode enriquecer o objeto perceptvel ou no mnimo instigar a escuta. Mas aqui poderemos pensar na maneira de conduzir tais situaes sonoras atravs do questionamento sobre a velocidade. Temos camadas de notas fixas diferentes, com ndices igualmente diferentes. A maior regularidade da terceira clarineta esconde uma maior variao de velocidade, seu ndice sendo bastante alto (0.28). As duas camadas superiores possuem o mesmo nmero de eventos (13) at a cabea do terceiro compasso, sendo que a segunda tem um ndice de desvio levemente mais baixo (0.143 contra 0.186 da primeira) - portanto, uma variao de velocidade figural ligeiramente mais baixa. Podemos ento perguntar: mas isso importa, uma vez que no iremos ouvir necessariamente esses trajetos todos? Claro que estamos aqui no plano da figuralidade e que a interferncia tmbrica e, portanto, vetorial entre as camadas dever ser considerada tanto entre clarinetas, como na relao delas com outros instrumentos. O que nos propomos aqui tambm ter uma idia mais racionalizada dos percursos localizados na composio de uma textura, inclusive naquela que percebida mais globalmente e no como linhas independentes. A diferenciao tmbrica ser, sem dvida, um fator importante na sensao de velocidade e depender de cada contexto analisvel e componvel.

 

Trecho de Clarinetas em Madeira de Dormente, fabricado com cálculos de desvio.

 

Outra conduo oblqua por velocidades figurais baseada na idia de gerar um certo grau de ciclicidade no interior das velocidades. Para tanto, nos valemos da Lgica da Minhoca (Earthworm Algebra), discutida pela primeira vez por Clifford Pickover. Essa lgica se baseia na poda do algarismo da direita, ao ultrapassarmos determinada casa (dezenas, centenas, milhares etc). Tambm decidimos aqui adotar a idia de tambm poder podar o algarismo da esquerda. Aps a poda, re-estabelecemos o mesmo crescimento numrico de antes, at aparecer a repetio de um nmero, fechando um ciclo. Podemos combinar como se d o passo de crescimento de uma srie de nmeros, seja por soma ou por uma frmula especfica, seja ele constante, com variaes diferenciadas de crescimento e decrscimo etc.

Vamos nos valer de alguns exemplos para tornar isso mais claro. Iniciamos, por exemplo, com o nmero onze ao qual ser somado sucessivamente o nmero 30 at ultrapassar a casa das centenas. Ento podamos o algarismo da direita ou o da esquerda e seguimos a mesma seqncia. Temos assim: 11, 41, 71, 101. Podando-se o 1 da direita, temos 10, 40, 70, 100, e 10 novamente, fechando o ciclo ao ser um nmero repetido. Devido regularidade do passo, podemos combinar sries com passos diferentes e em progresso geomtrica, gerando um grau de irregularidade atravs de ciclos de passos diferentes combinados.

Por exemplo, podemos ter ciclos de valores combinados com passos e ordens diferentes a partir de 15 e 17, podados na casa das centenas: (15-30-60-12-24-48-96-19-38-76-15), podando-se o algarismo da direita, e (17-34-68-36-72-44-88-76-52-04-8-16-32-64-28-56-12) podando-se o algarismo da esquerda. Um resultado da combinao em compasso simples 4/4 e andamento igual a 60 bpm pode ser quantizado numa figura do seguinte tipo, utilizada no violoncelo do compasso 105 de Madeira de Dormente:

 

 

Uma simples figura como essa pode ser submetida a suaves mutaes ao alterarmos uma ou outra constante para um valor vizinho, seja o nmero de incio, seja a lgica de crescimento dos passos, seja a relao estabelecida entre as sries diferentes (leitura seqencial, filtro de nmeros idnticos, leitura retrogradada etc).

Falamos sobre algumas formas de conduo oblqua na composio. Agora vale algumas palavras breves sobre as sensaes oblquas. As sensaes oblquas atuam na vida e no momento da composio, como uma instigao ativa na feitura de objetos e na intuio doadora que, como afirmamos no captulo sobre intuio diagramtica, no necessariamente de cunho intencional, ao dar lugar a elementos musicais. Elas se alimentam de uma sensibilidade circunstancial, como aquela experimentada nas linhas sonoras das ferramentas de construo, no ritmo de uma cano do rdio que incorporado textura orquestral, na sugesto dada pelo ronco da cafeteira e pelo aroma do caf que se anuncia. A sensao no se confunde com a sensibilidade. A sensibilidade tratada aqui como uma habilidade em relao ao que sensvel (sendo que "sensível" diz respeito apenas à capacidade de absorção dos sentidos). A sensao est mais para um plano de ao energtica de um sujeito, sendo nem puramente material, nem puramente mental ou espiritual. O sujeito pode ser o compositor, o ouvinte, ou mesmo a obra: aquilo ou aquele que age. A sensao oblqua na medida em que a composio no a toma como aquilo que a rege ou constitui, mas como aquilo que, assim como as condues oblquas, atravessa a obra. Mas como? Um elemento vivido trazido para dentro das formulaes e das texturas musicais, como uma espcie de extrato do sensvel, selecionado pela intuio diagramtica, contaminando as formaes de velocidades e qualidades musicais disponveis, expostas num dado momento do ato de composio. 

Aqui voltamos s consideraes do incio, ao dizer que tais condues e sensaes se pretendem oblquas. Elas no constituem a obra de maneira determinada. Elas a atravessam. O sonho sobre o sonoro, a intuio diagramtica, as condues e sensaes oblquas operam um pouco como diferentes foras de apelo, como as do caminho do campo heiddegeriano, onde o retorno ao simples e ao mesmo no traz monotonia, mas permite criar algumas fendas no que est sempre a.



[1] Esta idia de fazer o procedimento atravessar a obra sem que ele a determine algo comentado por Alain Badiou sobre Mallarm. Ela est no captulo sobre o poeta francs no livro O Pequeno Manual de Inesttica.  So Paulo: Estao Liberdade, 2002.

[2] Todos os clculos de ndices foram feitos manualmente ou efetuados por configuraes em Patchwork, antigo software do Ircam, baseando-se no princpio matemrico seguinte: uma mdia entre os valores efetuada, seguida da diferena efetuada entre essa mdia e cada valor da lista inicial. Logo depois, extramos uma mdia dessa lista de diferenas e obtemos assim o resultado do ndice de desvio mdio.  Accelerandos e ritardandos figurais tambm vm sendo calculados numericamente com o uso do mesmo programa, alm de recursos de ciclicidade das duraes baseados na lgica earthworm, apresentada por Clifford Pickover, que auxilia a gerar velocidades figurais cclicas.

[3] assim que, no compasso 6, o borro sonoro provocado pelo deslocamento coletivo das figuras rtmicas sobrepostas, que aparentam uma escrita tambm borrada, barroca ou mesmo inadequada.

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