Intuio diagramtica e o sonho sobre o sonoro

 

Leonardo Aldrovandi

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As sombras fibrilam e o ar ao redor, palpitando levemente, eria nossas orelhas, ativa a pele e a realidade proprioceptiva em meio a centelhas de quase nada. As aes, nas quais se incluem as mais utilitrias e repetitivas, j no se esparramam mais inconseqentemente, e tambm no apontam a necessidade de alguma invariabilidade corretora. Quando as misturas que emergem so menos suspensivas, anuviadas ou evanescentes, mais tangveis no tratamento, como a soma de duas cores que gera uma outra cor muito diferente, os tecidos passam a esbanjar uma dana bbada de suas fibras sobre algum mrmore voltil de entalhadura, formando teias cintilantes, produtos de um desejo ativo menos controlvel que a prpria conduta-sensao que lhes manuseia e que lhes externa.

Mas para no nos embriagarmos tanto antes da hora, momentaneamente repousamos os teares e passamos a apontar alguns revlveres para a escurido. De um lado, a avaliao dada por medidas, cifragens e engrenagens faria fenecer algumas razes das poucas idias, gerando algumas outras. De outro, a extrao de um elemento circunstancial do vivido, como um pequeno ritmo do rdio ou a gravao da pororoca, seria capaz de provocar uma outra onda de contgio lancinante em alguma disposio material ou mesmo abstrata que ali se encontra no momento.

 

            O ronco da cafeteira traz o aroma na garupa. Preeminncia deliciosa. Mas compor tambm algo como querer fazer um pneu ou uma ponte diferenciados - o pneu s gira com um certo formato e a ponte s conduz seus passantes se no os deixa cair. No se trata somente de sua funcionalidade ou de construtivismo, mas do flanco material constantemente esboado para a vida dos homens. E, sobre isto, fala-se tanto dos alicerces, das mquinas, das fontes energticas, sempre mais que da fuso e da fisso parcialmente cega e surda de suas disposies, seus materiais e suas matrias.

 

Um olhar de canto resgata uma figura antes valorizada e hoje quase esquecida, enquanto o bilhete do metr oferece seu forte trao negro, bem mais visvel. O ronco da cafeteira se anuncia, trazendo o aroma na garupa. A intuio o motor da doao, da seleo e da disposio em meio ao controlado e ao no-controlado de uma atividade presente e circunstancial[1]. Ela age na leve hesitao que se d na conduta e na sensao. Forma de pensamento sim que, embora no seja racional, tambm capaz de ativar a obra, soprando sobre a linha tnue entre a memria e a des-memria e anunciando, com o passar do tempo, certos traos das mesmas.[2]  

Fibras cintilantes, talvegues da matria sonora, sensibilidade txtil das disposies. Entalhe.  A colheita e o plantio se do segundo a memria e a futuridade material da terra, no espao concreto formado pelo teor passageiro e pela disposio do que plantado, pela materialidade revoluteante e efmera da terra. So atividades diagramticas, disposies de relaes de fora da vida. Se uma atividade se funda em uma memria e em uma esperana na materialidade, ela deve conter consigo os traos de algo dado e de algo a ser transformado, de algo a ser acrescido, disposto, e de algo a ser escolhido e retirado.

H uma intuio diagramtica da qual a vida composicional se vale como um de seus motores mais sbrios e mais violentos. Fichte dizia ser impossvel perceber uma sensao sem situ-la no espao, e que a divisibilidade deste s poderia ser dada pelo pensamento. Assim, em qualquer percepo externa ou objetivada encontraramos no reverso da moeda a intuio intelectual que, para ele, seria o fundamento da conscincia.[3] Mas, longe de querer provar sua validade fundamental ou existencial, at porque no se trata de entrar aqui no campo da filosofia, apontamos por intuio diagramtica o motor de doao, seleo e disposio da vida da composio em seu estreito raio de ao.

Mas antes de falar em diagrama ou de sua associao intuio, elaboremos um pouco mais sobre intuio por si mesma. O que costumamos considerar com a palavra intuio uma tentativa de expressar a forma de pensamento e de conhecimento[4] que, embora no seja racionalizada, est profundamente aliada experincia material do espao circunstancial do compositor, onde atuam foras vividas: os sons e as experincias que o rodeiam, os elementos visveis, lingsticos, as centelhas, os esboos, esquemas, imagens, a captao e a escolha de elementos, de lgicas, de meios e materiais. A partir de tudo isso, constata-se uma atividade de seleo e disposio no puramente racional no ato da composio. Ao falarmos em intuio aqui no se pretende estabelecer uma oposio em relao razo ou ao racional, mas antes procuramos apontar talvez uma mutualidade, pois a razo nos leva a articular e reconfigurar formas selecionadas e tambm a pr-definir um ou outro campo de possibilidades de uma atividade de seleo e disposio. Seria preciso apenas pensar a intuio em composio fora de uma idealidade mistificadora, na qual ela costuma ser ancorada talvez por se valer da f, daquilo que no se comprova e demonstra; por isso, to vlido lev-la para o plano da materialidade, da doao, da ao composicional seletiva e distributiva, da vitalidade espacial da obra.

O que se chama aqui de vida composicional ou da composio no a glria biogrfica, nem remete a alguma capacidade virtuosa, tcnica ou literria de um compositor: a chama fusional do que est em obra, da qual ele apenas participa como um ator singular, do que se est fazendo a partir do que se fez por si mesmo e vice-versa.

O compositor (como um agente singular) e a obra (como outro agente singular) do algo a uma matria ou material, doam, selecionam e dispem qualidades e elementos sensveis, podendo se valer de concepes de tempo e espao. Essas doaes no necessariamente intencionais podem promover certas situaes sonoras ou at serem descritas por idias que soam, idias sonoras peculiares. No que um caminho no possa partir da idia (de forte cunho intencional) e ento traar um curso. No seriam justamente as idias sonoras, ou a idia que se faz do sonoro, as que so vistas como marcas mais ou menos conservveis da msica ao longo das geraes?

O esprito errante do compositor (podemos nos valer aqui de um sentido prximo quele que Luigi Nono atribuiu ao erro na composio[5], como necessidade que desfaz regras) e uma vida dos atos composicionais parecem desenvolver uma espcie de intuio espacial que no diz respeito apenas forma ou visibilidade. Quando falarmos em errncia no se trata de uma liberdade idealizada, mas da viagem tortuosa por um caminho que vai sendo aberto, gerando uma potncia de descobertas e inveno ao ser percorrido. Tortuosa na medida em que no se sabe de antemo por onde ir ou aonde chegar, e tambm pelas dificuldades de um trabalho ardente, ao ceifar as matas do caminho: zig-zag irregular na interseco entre a liberdade circunstancial e o inevitvel.

            Essa intuio da qual falamos aqui no diz respeito apenas distribuio ou sobreposio de elementos ou signos musicais num espao miditico, numa tela de computador ou em uma folha de papel. Ao mesmo tempo, parece necessrio haver um sonho sobre o sonoro que se desenvolve, talvez por contgio, em intuies espaciais sobre as qualidades sonoras, lugares e altitudes para os significantes. Falamos em contgio pois esse sonho parece provocado pelo cruzamento do espao da escritura (que inclui meios diversos) com os espaos visveis e invisveis, ensolarados ou pantanosos, do esprito e da vitalidade circunstancial, todos processados e misturados. nesse espao operatrio, no somente o do papel ou instrumento tcnico, nem somente o da mente/corao, que as doaes e selees vo ocorrer doaes que j no so necessariamente intencionais. Trata-se ao final da atitude de dar caminho aos elementos, selecion-los, orient-los, posicion-los segundo o sabor de suas prprias consistncias ou mesmo da iluso formal e sensvel sobre elas.

Por que ento essa espacialidade da intuio deve se aliar idia de diagrama? Muitas pesquisas acerca do diagrama, mesmo quando este tratado por elas apenas como figura externa a ser vista (o diagrama num meio externo), apontam para a sua potncia pr-intencional (em contraposio proposio verbal) e para a sua caracterstica de criar um campo operatrio de possibilidades.[6] Tambm por isso propomos aqui uma intuio diagramtica. Intuio para criar campos de possibilidades e atuar neles, mas tambm para mergulhar na vitalidade momentnea de elementos espacialmente dispostos ou disponveis aos sentidos.

Podemos at tomar de emprstimo o entendimento e a recriao que Deleuze faz do diagrama de Michel Foucault, embora provenha tambm de ares no-musicais e de um contexto totalmente diferente, sociolgico: a exposio das relaes de fora (...) definindo prticas e estratgias.[7] Ora, uma exposio como essa, mesmo que delimitada ou teorizada, pode nos servir de imagem registradora da espacialidade prpria e dinmica que abriga e potencializa as aes da intuio e da razo - por entre materializao sonora, idias, experincias, instrumentos concretos e abstratos, ela mesma se torna justamente aquilo que descreve e prolifera o campo do possvel onde o compositor opera, intui, raciocina e participa, no qual ele seleciona e dispe, mas tambm no qual ele se anula como sujeito que determina, em funo de algo maior que ele, a ao da obra, a obra como o verdadeiro sujeito, como o trabalho vivo em que ele se dissolve e participa.

No raro o diagrama ser atribudo a uma situao objetivada, fora do mbito de um agente singular, e na qual este pode ser considerado ou no como um participante nas relaes de fora que o diagrama expe: uma espcie de espao minimamente historiado de multiplicidades circunstanciais a-pessoais cujas foras se relacionam. Mas se o diagrama j contm a intuio como uma condio pressuposta, implcita a si mesmo, por que ento falar de uma intuio diagramtica no caso da composio musical? Porque queremos aqui, de alguma maneira, vislumbrar a descrio da experincia do compositor-como-agente-singular em meio ao espao circunstancial e memorial que o rodeia em um momento peculiar da composio, em toda a materialidade dinnimca da feitura da obra. Momento movente no qual ele se dispe a uma ao particular em que a intuio emerge, soprando entre memria e des-memria. A partir desse movimento fludo de disponibilidade e delicadeza, no qual se sentem fibrilaes sutis, quase-nadas atravs dos sentidos, ele passa a agir sem a necessidade constante do raciocnio (intuitivamente), mas em meio ao diagrama: aquele que o atravessa, aquela multiplicidade circunstancial das relaes de fora ao alcance dos sentidos, da memria e da des-memria, da qual ele apenas participa, selecionando, dispondo, doando e doando-se, deixando-se ser atravessado. Assim, com intuio diagramtica, falamos de aes de captao, seleo, disposio, doao do compositor, um de seus agentes singulares, na exposio das relaes de foras. Estas, por sua vez, mltiplas e possivelmente simultneas, do origem tanto a sensaes como a condues mais intencionadas, e nas quais se intervm e se desfaz, doa-se e se Ҏ doado, ao mesmo tempo. 

            evidente que o papel ou a tela, os meios externos em geral, so espaos que permitem a disposio dos elementos em jogo; da mesma forma, algo como uma partitura tambm seria diagramtico em um sentido mais comum. Mas o compositor opera suas doaes e intenes sobre esses meios, assim como estes agem sobre ele (o que costuma ser mais difcil de ele admitir...). nesse sentido de situao dinmica que se fala em intuio diagramtica, sendo o diagrama um veculo (...) que v o interior do futuro ao insinuar um horizonte de pensamento.[8] O diagrama de um papel ou da tela pode expor elementos que o esprito vai guiar. Mas ele no existe sem a intuio que seleciona seus elementos, que os usa, degenera e regenera, e que no diz respeito apenas visibilidade ou a uma objetividade til como a da geometria/topologia, da programao ou mesmo da Fsica, para dar alguns exemplos. A intuio diagramtica pode se valer do espao do papel e de alguma programao ou conduo mais objetiva, mas ela tambm algo que possibilita a explorao das relaes de fora nas condues e sensaes a respeito dos sons e suas formas, em situaes dinmicas tornadas at mesmo invisveis e inenarrveis em sua espessura, pelo movimento por ela gerado na pelcula sutil entre memria e des-memria. 

 

 

 

 

 

 

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:

 

BERGSON, Henri. Conferncias. In: Os pensadores. So Paulo: Abril, 1974.

DECARTES, Ren. Description dun noveau Monde; et des qualits de la matire dont il est compos. In: Discours de la Mthode. Paris: Garnier-Flammarion, 1966.

DELEUZE, Gilles. Foucault. So Paulo: Brasiliense, 1998.

FOUCAULT, Michel. O pensamento do exterior. So Paulo: Princpio, 1990.

JOHNSON-LAIRD, Philip. Space to think. In: Language and Space. Cambrigde, MA: MIT Press, 1996.

KNOESPEL, Kenneth. Diagrams as piloting devices in the philosophy of Gilles Deleuze. In: Deleuze-chantier. Paris: Instaprint, 2001.

LALANDE, Andr. Vocabulrio Tcnico e Crtico da Filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 1999.

LYOTARD, Jean-Franois. Discours, Figure. Paris: Klincksieck, 1971.

NONO, Luigi. crits. Paris: Christian Bourgois, 1993.

 

 

 

 



[1] Disposio e seleo talvez sejam termos mais facilmente associveis composio. Quanto doao, vale dizer que ela aquilo que se entrega no espao, como um ser singular de sensao. J. F. Lyotard expe meticulosamente a diferena entre doao artstica e inteno artstica, em  Discours, Figure (Paris: Klincksieck, 1971, passim). assim que o filsofo ir afirmar que Czanne doa sua ma, sem inteno de representar uma ma de verdade. Ele cria uma outra, que se torna a ma de Czanne.

[2] O que entendo por des-memria algo como colocar a memria entre parnteses, sem neg-la ou querer subtra-la da vida composicional. No se trata de uma situao de anulamento da memria mas de trat-la como algo relativo, no absoluto.

[3] Lalande, Andr. Vocabulrio Tcnico e Crtico da Filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 591.

[4] Henri Poincar, em Science et Mthode, afirma que, em relao aos objetos da geometria, a lgica demonstra e a intuio inventa. Apud. Lalande, Andr. Op. cit., p. 596. Para Antnio Damsio, por exemplo, baseando-se em premissas de Henri Poincar, dentre outros, a fonte da intuio o mecanismo da deciso sem raciocnio, com base em inibio e ao. Haveria uma pr-seleo, que levada a efeito sem a necessidade constante do raciocnio, por vezes de forma oculta, outras no. Ver O Erro de Descartes. So Paulo: Schwarcz, 1994. p. 220-2. Nesse contexto, possvel afirmar que o que tratado por intuio neste trabalho remete a seu entedimento relacionado dinmica da espacialidade. Portanto, estamos remando numa direo oblqua tanto em relao a Bergson, cujo conceito vivenciado como um fluxo contnuo da durao real, o devir sem suporte, quanto a Decartes, que embora o conceba em alto grau de espacialidade, provavelmente diferiria muito quanto ao modo de tratar a vitalidade irracionalizada de uma circumstncia.

[5] Lerreur comme necessit. crits. Paris: Christian Bourgois, 1993. p. 256.

[6] Ver: Diversos. Language and Space. Cambrigde, MA: MIT Press, 1996. Sobre o diagrama em particular, ver o artigo de Philip Johnson-Laird chamado Space to Think, nesse mesmo livro.

[7] Ver Deleuze, Gilles. Foucault. So Paulo: Brasiliense, 1998. p. 46-8, 80-81, passim.

[8] Em Knoespel, Kenneth. Diagrams as piloting devices in the philosophy of Gilles Deleuze. Deleuze-chantier. Paris: Instaprint, 2001. p. 148.

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