Uma ona e o vasto mundo

 

            Quando tinha os meus dezoito anos, fiz uma viagem com dois amigos ao parque da Serra da Capivara, no interior do Piau. Seu Nilson, o guia at ento, conhecido por ser o nico capaz de sair do parque se colocado em qualquer ponto de seu territrio, nos levava por entre os boqueires, fendas geolgicas enormes que desvendavam toda uma riqueza ecica/espectral pela oposio de suas paredes irregulares, onde pequenas concentraes de gua podiam ser encontradas em suas junes, por seus becos e cavernas mais fechados e distantes. Nada semelhante acstica de uma caverna que contm um espelho de gua. As sonoridades ganham um movimento ressonante muito singular, tanto pelas reflexes como pelas filtragens produzidas pela gua e pela riqueza irregular das aberturas, cantos e muros esburacados.

Por toda a mata mais fechada, se no eram os caadores que deixavam seus rastros em pequenas clareiras era a famosa ona brasileira, cujas lendas j conhecamos de seu Nilson, que fora caador enquanto era permitido. Aps as tpicas conversas teolgicas com as quais sempre nos alimentamos diante de uma imensido natural que nos faz perceber nossa nfima significncia, passamos a caminhar na beira do planalto, no alto dos paredes esburacados. Algumas horas mais tarde, um de meus amigos, Tiago, v um rabo de macaco com sangue na ponta, estendido numa pedra, arrancado de seu dono. Mais dois minutos se passam e um rudo animal inacreditvel e momentneo se intercala ao silncio de maneira mais ou menos peridica. Naquele lugar, os arbustos cobriam a viso. A ona no era localizvel apenas pelo fato de estar invisvel, embora sua proximidade pudesse ser deflagrada atravs da riqueza sutil e heterognea de seus sons. E poder localiz-la atravs de seus rugidos tambm era difcil: muito embora a emisso de sons fosse formada por um espectro mais grave, a difuso provocada pela riqueza da mata refletora tambm no nos ajudava. Mas era tambm como se eles mesmos, sons, tivessem uma espacialidade interna cujos componentes se dissolviam em vrias direes no ambiente externo, se dissolvendo em vrias direes. Espacialidade interna que se espalhava ou se esparramava, por causa de sua complexidade prpria e de sua irradiao em movimento (a boca da ona). O som se tornava no-pontual. Todo mundo sabe que o medo daquilo que produz sons se torna bem maior quando a viso e/ou a escuta esto impotentes para definir o local da emisso. Aps alguns minutos, percebemos a razo fundamental da nossa sobrevivncia; em relao a ns, a ona apenas demarcou territrio: o seu almoo tinha sido o macaco.

Esse mesmo sentimento de limite de nossa potncia sensria e nossa conscincia em relao dimenso do espao em que estamos, o qual no podemos possuir e pelo qual somos afetados, promovem sensaes ricas e diversas. Tudo se assemelharia com o caminhar pela floresta, de Ernst Bloch. Segundo o filsofo, o caminhar pela floresta pode nos fazer sentir que somos aquilo que a floresta est sonhando, como relata no incio de seus escritos sobre msica:

 

Sonho

 

Ns ouvimos apenas a ns mesmos.

Porque nos tornamos gradualmente cegos para o mundo exterior.

Qualquer coisa a que damos forma remete a ns mesmos de volta.

Ela, coisa, no to exclusivamente auto-orientada, to confusa, flutuante, quente, escura e incorprea como o sentimento de estar simplesmente consigo mesmo, autoconsciente. material, experincia com filiaes externas. No entanto, andamos pela floresta e sentimos que somos ou podemos ser o que ela sonha. Passamos por entre os pilares dos troncos, pequenos, espirituais e invisveis para ns mesmos, assim como seus sons, como aquilo que no pode se tornar floresta novamente ou aparncia exterior do dia e da visibilidade.

Ns no a possumos, aquilo que est ao redor musgo, flores curiosas, razes, troncos e feixes luminosos ou significa porque somos a coisa em si e estamos muito prximos a ela, a natureza espectral e inefvel da conscincia ou interiorizao. Mas o som de ns incendeia, a nota ouvida, e no o som em si ou suas formas. Isto, no entanto, nos apresenta a trilha sem meios estranhos, nossa trilha histrica interior, como um fogo no qual, no o ar vibrante, mas ns mesmos comeamos a crepitar e lanar fora nossas cobertas.[1]

 

            Bloch, tambm compositor, alm de filsofo, nos oferece uma imagem sobre o desejo do homem pelo sonoro, atravs de uma sensao que provm da relao com o ambiente, com o espao ao redor, ao se cruzar com a interioridade. Essa imensido espacial que nos torna pequenos, espirituais e invisveis, como os prprios sons da floresta, procura esboar uma idia acerca de uma relao das mais fundamentais entre espao, sons e homens: a vontade de emitir o sonoro, a qual surge no apenas de uma tal identificao do homem na floresta com o nfimo, invisvel, efmero, ou com o que nunca mais ser floresta, e assim, com os sons dela mesma. Essa vontade tambm emerge de uma dialtica tensiva entre pertencimento e no-pertencimento quele ambiente: s-lo e ao mesmo tempo estar prximo a ele, quer-lo sem nunca poder possu-lo.

O som, uma vez por ns expelido, nos desmascara e revela nossa trilha interior, que talvez seja parte de tudo que est ao redor e no se possui. Ele ser uma forma de expresso, um motor de toda essa sensao rica em ambigidades e processos de identificao e diferena do homem num espao, num lugar que o envolve e que tambm o motiva a desejar produzir o sonoro, independentemente das formas estranhas, externas.[2]

Num certo sentido, o fato de a msica estar ao redor e nos invadir parece fazer com que no haja uma distncia, como temos com a visibilidade, que permita uma apreenso mais direta e imediata de algo como um objeto e que mantenha em ns uma interioridade mais intacta. -Diversos filsofos e pesquisadores j expuseram uma certa diferena entre o sonoro e o visvel, cada qual sua maneira. Por exemplo, uma idia de afeto em relao ao sonoro e percepto em relao ao visvel, mesmo que possa haver cruzamento ou mistura: um afeto visvel ou um percepto sonoro. No caber aqui entrar nos argumentos especficos de uma filosofia, mas preciso afirmar o seguinte. Talvez seja justamente estes aspectos no-formados[3] dos sons, daquilo que tem uma capacidade de invadir, afetar e estar ao redor ao mesmo tempo, o que participa como impulso de uma incrvel objetividade, muitas vezes latente na formao da msica, e que a erige em algo estruturvel e extremamente composto. Quero dizer, suas qualidades evanescentes, seus fluxos acsticos invasivos ou dificilmente delineveis, parecem motivar um intenso sentido construtivo, organizacional, seja estrutural ou objetual a produo de suas configuraes num sentido espacial edificado. E tudo o que organiza uma msica tem algum sentido espacial. A disposio de seus elementos de natureza espacial, extensiva e coordenada, seja ela programada ou no, seja ela estabelecida numa partitura, num instrumento musical ou tcnico.

 

 

 

 



[1] Bloch, Ernst. Geist der Utopie (Esprito da Utopia). Obras Completas. ?: Suhrkamp, 1923. vol. 3, p. 49.

[2] O rpido comentrio aqui explanado no tem a inteno de esgotar as possibilidades interpretativas do trecho citado. Talvez no seja intil afirmar que ao leitor deste trabalho caberia agir sobre suas foras inabarcveis e buscar tirar suas prprias concluses acerca do texto de Bloch.  

 

[3] No-formado significa aqui uma qualidade ao mesmo tempo penetrante e circundante, sem uma forma definida, como uma fumaa invisvel, da qual os sentidos por si mesmos no so capazes de fixar forma alguma.

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