A Marinha Grande     projecto Museu do Vidro
   

A produção de vidro na Marinha Grande inicia-se em 1748, com a instalação na localidade de uma unidade manufactureira. Este facto decorre, como o demonstram vários documentos, do encerramento algum tempo antes da Real Fábrica de Coina, situada a sul do Tejo. Era então administrador da referida fábrica o irlandês John Beare que, descontente com o estado a que chegara a situação (1744), e não baixando os braços perante a decisão régia, empreende a transferência da fábrica para outra localidade.

Escolhida a Marinha Grande para a nova unidade fabril, Beare transferiu-se então com operários, técnicas e instrumentos.

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A produção de vidro na Marinha Grande prolongou assim, desde os primeiros tempos, a tradição de Coina, como de resto o provam as descobertas arqueológicas ali efectuadas, confrontadas com os desenhos a sanguina patentes em dois catálogos setecentistas (os mais antigos conhecidos em Portugal), atribuídos até recentemente aos irmãos Stephens, fundadores da nova Real Fábrica de Vidros, em 1769, de que Beare foi precursor. 

[nota: estes valiosos catálogos encontram-se na posse de um particular e as nossas diligências para os transferir para o acervo do Museu foram infrutíferas, principalmente, devido à indisponibilidade da tutela municipal para pagar o preço pedido]

 

Esses catálogos dão-nos uma ideia clara do tipo de artigos então produzidos, destinados a suprir um relativamente largo campo de necessidades, numa época em que o consumo de vidro se começa a generalizar, quer entre as classes mais abastadas, quer entre as classes populares.

 

Na Real Fábrica de Guilherme Stephens, o primeiro forno que se acendeu, em Outubro de 1769, destinou-se à produção de vidraça, fabricada pelo processo de cilindros soprados (mangas). Durante bastante tempo a vidraça constituiu a principal mercadoria da fábrica, o que decorre em grande medida da necessidade de reconstruir Lisboa, e parte de outras cidades, a partir de novas orientações urbanas e arquitectónicas, após o violento terramoto de 1755. À semelhança de outros países europeus, também em Portugal, com a industrialização, e a produção em série de vidraça, nascia a era na qual a luz do Sol deveria atravessar as paredes e penetrar toda a casa.

 

 

O forno de cristal acendeu-se corria o ano de 1770.

Os artigos fabricados na fábrica eram variados mas, no essencial, eram objectos de utilidade comum, em vidro sódico. Produziam-se, porém, vidros de maior qualidade, em que se aplicavam técnicas decorativas que faziam o gosto da época, principalmente, a lapidação e a gravação, estimuladas pela descoberta moderna do cristal plúmbeo em Inglaterra, mais apto para a decoração por incisão.

 

Os artigos fabricados destinavam-se a usos muito diferenciados: vidros de mesa e cozinha, vidros para taberna, para botica e laboratório, para higiene e uso pessoal, para iluminação...

Vejamos a lista de artigos referidos nos catálogos, os quais coincidem na sua maior parte com a pauta de preços, elaborada por Guilherme Stephens, e incluída numa sua exposição ao Governo datada de 25 de Junho de 1772:

 

Agulheiros

Almofariz

Almofarizes, de vidro verde, com mão

Apartadores

Areeiro

Argaos

Asucareiros

Bacia

Bandejas

Bebedouro

Bebedouro coberto

Bebedouro de repuxo

Bispote

Bispote com aza

Bombas

Boyoens

Bule

Bules com asa tampa e bico

Cabaças

Cabaças com rolha

Caixas para Hostias

Campainhas

Caneca ingleza com azas

Caneca Portuguesa

Caneca Portuguesa com tampa aza e pes

Canecas inglezas

Canudilho

Canudos

Canudos para barometros

Castiçal

Ceboleiro

Chicara para agoardente

Chicara para gelea

Chicaras

Cobertas para pratos

Copo com pé de Salva

Copo de 1/2 quartilho

Copo de calix de 1/2 quartilho

Copo de canada

Copo para limonada

Copo Xato

Copos

Copos com aza ou pe de Salva

Copos de 1/2 canada

Copos de 3 ao quartilho

Copos de Calix

Copos de calix

Copos de Calix com pe esmaltado

Copos de molde novo fundos grossos

Copos de quartilho

Copos para agoardente

Coraçoes para agoa de cheiro

Coracoes para agor de cheiro, com rolha

Cylindros

Frasco

Frasco chato

Frasco para agoa de melissa

Frascos com rosca para tabaco

Frascos octavados com rolha

Frascos para conservar animays em espirito

Frascos para tabaco

Frascos quadrados

Frascos quadrados com rolha

Frascos xatos

Frasquinhos redondos com rolha

Funil

Galheta para meza

Galheta de Mafra

Galhetas de Mafra com pe aza e tampa

Galhetas para mesa com pe aza e tampa

Galhetas para missa

Galhetas para talher

Galhetas unidas

Galhetas unidas com pe de Salva

Garrafa

Garrafão

Garrafas de pezo adiamantadas

Garrafas delgadas chamadas de Florença

Garrafas moldadas com pe de Salva e rolha

Garrafas outavadas

Garrafas para capiler

Garrafas para Solimao

Garrafas para tabernas e lojas de botica

Garrafas quadradas com rolha

Garrafas redondas

Globos para a machina electrica

Jarra de 6 bicos com ornatos

Jarra para flores

Jarras de 4 bicos com ornatos, sem azas

Jarras para agoa das maos com pes e aza

Jarras para flores com azas e pes

Jarro

Lambiques

Lambiques com suas cabeças

Lampedas de trez cadeyas

Lampioes

Mamadeiras

Mangas abertas para luzes

Mangas fechadas

Mangas para as dirandelas

Mangas para imagems

Mangas para luzes

Moldes para velas

Mosqueiros

Ourinoes

Ourinoes Inglezas

Peras para botica

Pias para agoa benta

Pipas com aza

Poeira

Potes ou Asucareiros

Potes para pomada

Pratinhos

Pucaros

Pucaros com pe tampa e duas azas

Purificadores

Recipientes

Redoma

Redomas com pe e rosca ou rolha

Retortas

Saleiros

Salvas

Sanguisugueiro

Seboleiros

Sanguisugeiros

Telhas de vidro

Tijelas para lavar as maos

Tinteiros

Tinteiros para papeleiras

Vaços para doce com pe e tampa e azas

Vaços para lavatoria

Vazo para doce

Ventozas

Vidrassa

Vidrassas

Vidros para relogios

Vidros para candieiros

Vidros para lampedas

Vidros para lanternas de furto fogo

Vidros para lampedas

Vidros para lavatorio

Viveiros para peixes

Xaropeiras

 

Desde os finais do século XVIII, a vidraria foi-se instalando progressivamente na cultura material, integrando as colecções de artigos das casas aristocráticas e burguesas, a par das baixelas, das porcelanas..., tornando-se popular e acessível, entrando no quotidiano doméstico, apetrechando as tabernas e as casas de pasto, as farmácias e os laboratórios...

 

Contudo, durante muito tempo, o consumo de vidro permaneceu ainda limitado a certos meios, ou habitats sociais (a burguesia, os meios urbanos) ou domínios específicos da actividade humana, como a farmácia e o laboratório. A revolução industrial permitiu a sua difusão, mas o processo foi lento. No início do século XIX, em várias regiões, o uso do vidro era quase desconhecido. Por esta época, mesmo a vidraça estava longe de se ter generalizado em todo o território, principalmente nas zonas rurais. «Até aos fins do século XVIII, apesar de uma maior divulgação do uso da vidraça, muitas habitações dispunham apenas de portadas de madeira ou adufas, enquanto outras usavam placas de mica, papel ou pano embebido em óleo. Mais tarde usaram também folhas de flandres com orifícios».

Também José Leite de Vasconcelos nos dá conta, na sua Etnografia Portuguesa, que já no início do século XX, em certas regiões, nas habitações populares, nem sequer para iluminação o vidro era usado, limitando-se muitas vezes a uma lanterna de azeite ou mesmo apenas ao fogo da cozinha.

 

Muitos dos artigos oferecidos ao mercado, em princípio todos os que constam nos referidos catálogos de setecentos, destinavam-se a usos arcaicos, como os lampiões, os frascos para Solimão, os tinteiros ou os mosqueiros. Outros destinavam-se a funções ainda hoje actuais, como certas garrafas, mas retratam um estádio da cultura material, onde, por um lado, a relação forma-função dos objectos devia ainda muito às tradições, sobretudo à cerâmica, e, por outro lado, o aperfeiçoamento técnico ainda dispensava a mecanização. Alguns desses objectos revelam também uma associação progressiva entre o vidro e outros materiais, designadamente, metais de suporte e complemento funcional, o que faz ligar o desenvolvimento tecnológico nesta área a outras, nomeadamente, à metalurgia.

 

A influência de tradições morfológicas e decorativas é patente em vários desses artigos, e manter-se-ia ainda por muito tempo, prolongando-se pelo século XIX, até à actualidade. Observa-se, por um lado, a permanência de modelos estruturais, seculares, que vinculam estes objectos a núcleos culturais muito antigos, como é o caso das formas acabaçadas, onde é perceptível a influência mourisca. Por outro lado, observa-se a influência das correntes europeias veneziana (almofariz com carrancas), inglesa (cálices com haste contendo espiral branca) e boémia (caneca com asa).

Segundo Matos Sequeira, ao longo do século XIX, a maior parte da produção da Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande terá sido o vidro industrial comum: «À primitiva produção, com certo carácter artístico, imitando os cristais ingleses que foram moda no fim do século XVIII e segundo os modelos tradicionais - o copo do sino invertido, a talha, o galheteiro, o púcaro [...] - sucedeu a produção variada, de feição absolutamente industrial, sem de longe tentar o fabrico de coparia fina, reproduzindo sempre os mesmos modelos e não acompanhando a moda que incessantemente variava, buscando novas formas. O quantitativo da produção foi o que sempre interessou mais à oficina da Marinha Grande».

 

Crendo nalgum exagero do autor, sobre este ponto, recorde-se a influência de outros centros de fabrico no consumo nacional. Já Guilherme Stephens se queixava da grande tendência verificada para o consumo de vidro estrangeiro, na sua altura, sobretudo, da Boémia.

Essa tendência implantara-se nos séculos XVI e XVII: «Os cristais finos, cofres e relicários, e outros vidros faceados e lapidados, tão comuns nos enxovais e espólios da nobreza realenga eram de origem Flandreza, Catalã e Veneziana. D. Manuel apreciava, como um Príncipe da Renascença, os vidros de Veneza. Da Itália, da Catalunha e da Baixa Alemanha é que nos vinham essas maravilhas, principalmente daquele país, que veio abarrotar o nosso mercado caro com todas as perfeições da vidraria fina. Os vidros de Veneza foram uma verdadeira mania no século XVI. As "galantes" de então endoideciam com os "cristalinos", como se dizia, e coleccionavam-nos perdulariamente»

 

Apesar dessa tendência antiga (sentida também noutros pontos da Europa, devido à enorme influência de centros de fabrico como Murano ou Boémia) e que terá perdurado durante o século XIX, a produção nacional foi sendo absorvida, ombreando com o vidro importado. O vidro liso, os serviços de mesa, com decorações gravadas ou lapidadas, os vidros de fantasia, o vidro moldado e prensado (estes últimos processos, no final do século, já mecanizados) foram o principal da produção da Fábrica da Marinha Grande, que, segundo parece, chegou a ser suficiente para o mercado nacional.

 

Vários modelos tradicionais, já fabricados no século XVIII, prolongaram-se por oitocentos e, em vários casos, por novecentos, apesar do abandono de certos estilos (como o la façon de Venise) e a adopção de outros, tendência de resto já bastante sensível nos finais do século XVIII. Apesar também da renovação imposta pelas mudanças de práticas sociais e no mundo da ciência.

Com o aparecimento de novas fábricas no último quartel do século XIX, a cidade-oficina abre-se a novas experiências técnicas e estilísticas. Contudo, muitos moldes, objectos tradicionais, técnicas decorativas e de fabrico, já enraizados na antiga produção da cidade, foram adoptados por essas novas fábricas, criando o que se poderá chamar vidro da Marinha Grande, herdeiro, como referimos, do vidro de Coina e de outros lugares.

 

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