projecto Museu do Vidro

 

 

Mestres do Fogo

 

 

Entre as inúmeras profissões tradicionais, associadas à transformação dos elementos materiais da Natureza, encontra-se a de vidreiro.

Desde uma época remota, que nos transporta à antiga civilização egípcia, há cerca de quatro mil anos, que se conhece a arte de transformar e manipular o vidro.

No entanto, desde o Paleolítico Médio, há cerca de cem mil anos, que o fogo é concebido como um agente que permite melhorar as qualidades das matérias-primas tratadas, através de uma acção, já não só externa mas também interna sobre estas matérias. Nascidos da experiência do fogo vê-se aparecer o endurecimento das armas de madeira, depois, no Paleolítico Superior (cerca de 35000 anos a.C.) a oxidação e a redução dos ocres naturais para obter uma gama de coloridos variados, o tratamento térmico do sílex (mantidos a mais de 200º C durante 24 a 48 horas e depois arrefecidos lentamente à temperatura normal).

Neste ponto, o fogo já não é, de modo nenhum, um simples substituto ou um melhoramento de técnicas já existentes: é uma ferramenta que abre um campo técnico novo, o das artes do fogo. É, não só, um novo modo muito subtil de actuar sobre a matéria, mas também a possibilidade de explorar materiais até então resistentes ao trabalho humano.

A invenção da arte da cerâmica pelos neolíticos, no VII milénio antes da nossa era, situa-se na sequência das aplicações técnicas do fogo que transformam as propriedades da matéria. Até se tornar um elemento doméstico, de fabricação doméstica, a sua manufactura não tem consequências no plano social. Mas quando se torna produto de um artesanato especializado, começa a manifestar-se o fenómeno da marginalização social daquele que, com o seu domínio do fogo, manifesta um poder suspeito aos olhos da colectividade. É também o caso dos vidreiros e, sobretudo, dos metalurgistas.

Preparada por centenas de milhares de anos de prática do fogo, a metalurgia representa um passo decisivo: já não são simplesmente as propriedades da matéria que se alteram com o tratamento do fogo, mas a própria matéria tal como é percebida pelos nossos sentidos - de um mineral opaco e frágil os artesãos extraem um metal brilhante e plástico, que pode ser transformado em utensílios e armas que já não apresentam qualquer vestígio da sua origem. O fogo manifesta assim um poder de transformação radical da matéria, e não é de estranhar que por muitos séculos, desde os sacerdotes egípcios aos alquimistas do Renascimento, se tenha considerado o fogo com um papel determinante na maior das transformações, a dos metais em ouro puro.

O poder do fogo aparece como um poder mágico, e este é facilmente transferido aos indivíduos que souberam dominar essa energia. O metalurgista detém o domínio do fogo, que parece depender de um pacto do qual não se sabe muito bem qual seja o alcance exacto nem os limites; é como o fogo, um personagem ambíguo, tão maléfico como benéfico. Mas, se é temido, é também marginalizado. Não vivendo do produto da terra nem do rebanho e, isolado do grupo, é obrigado a viver e a casar na classe dos ferreiros. Esta mesma discriminação se verificou em relação aos antigos vidreiros, capazes de transformar a pedra opaca em vidro transparente.

E, desde essa época remota, surge o duplo futuro do fogo: por um lado, o fogo doméstico que ilumina, aquece, ajuda em todos os momentos da vida quotidiana; por outro lado, o fogo industrial, apanágio de técnicos que são os únicos a possuir o seu conhecimento e domínio. Primeiro claramente isolados do resto da população, também nas nossas sociedades se verá atribuir um estatuto fora do comum, sob a forma de misteriosos sábios, senhores dos segredos da energia.

Ora, os vidreiros são estes "senhores do fogo" que operam a passagem da matéria de um estado ao outro. O homem que conseguiu pela primeira vez, graças ao calor das brasas, derreter sílicas e dar forma ao vidro, «deve ter sentido a embriaguez de um demiurgo: acabava de descobrir um agente de transmutação» (Eliade, 1956, a propósito da olaria). E esse entusiasmo demiúrgico baseado no pressentimento de dominar o grande segredo, continuou a inspirar a arte do vidro pelos séculos fora. A arte de transmudar centrou-se sobretudo na procura da transparência, conseguir a "água sólida". «Artesãos, químicos e alquimistas seguiram constantemente este objectivo, num certo sentido inalcansável, da pureza e transparência dessa variedade de quartzo, totalmente transparente e incolor, chamado cristal de rocha».

 

Projecto Museu do Vidro da Marinha Grande

 

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