A REPÚBLICA DOS LADRÕES

            João Ubaldo Ribeiro (Transcrito de O Globo, de 26/08/01 )

Este é um presente para os nossos visitantes que não tiveram a oportunidade de ler esta magnífica crônica do nosso imortal João Ubaldo Ribeiro.Leiam, pensem, concluam e discutam com os amigos , parentes , vizinhos ,etc.

" Ainda peguei os restinhos da repercussão do livro de Afonso Celso " Por que me ufano de meu país ".Havia ufanistas tremendos em nosso círculo de relações, alguns dos quais entravam em crises apopléticas, quando alguém via algum defeito no Brasil. Não existiam defeitos, a começar por nossa Natureza, que nos proporcionava absolutamente tudo o que faltava aos outros países, com exceção do ruim :vulcões, tufões e terremotos,a santa trindade, sempre citada ao mencionarmos nossas bênçãos.Quanto ao povo,então, nem se falava, porque tínhamos todos os melhores tudo do mundo, os melhores engenheiros e arquitetos, os melhores aviadores, os melhores médicos, não havia categoria que escapasse.

Depois, veio o injustamente esquecido livro de Waldomiro Potsch " O Brasil e suas riquezas ", que me deixava indignado, quando, em alguma relação de títulos, a gente tirava o segundo ou o terceiro lugar. Mas,como eu disse, era raridade.Em tudo quanto era lista, a gente estava lá em primeirão.O livro fez grande sucesso, era indicado nas escolas e eu mesmo ganhei várias edições de presente, uma das quais com fotos e gravuras coloridas, que nos mostravam tudo o que a Providência havia derramado sobre nossas felicíssimas cabeças.Lembro especialmente, não sei por quê ( talvez porque boas fotografias coloridas impressas eram difíceis de encontrar e as do livro eram excelentes, em papel cuchê e tudo ), as nossas galinhas. Podiam ser até de raças originalmente estrangeiras, até porque não havia galinhas aqui, quando os portugueses chegaram, mas aqui se deram tão bem que não voltavam para suas terras nem se deportadas-aqui era o paraíso de tudo, inclusive das galinhas.

Portanto, eu e muitos companheiros de geração fomos criados na base do mais puro orgulho patriótico. Além de tudo, não tínhamos revoluções, guerras civis ou semelhantes, éramos a cordialidade em pessoa, que recebia e tratava a todos, de negros a japoneses, com igual afabilidade, absorvidos no vasto cadinho de raças e culturas que nos misturava democrática e igualitariamente. Enfim, isso aqui chegava a cansar, de tão bom. Para não dizer que não faltava nada , faltava neve, trauma de que até hoje não nos recuperamos e todo ano, quando neva em Bundesfreskischen, remota comunidade alemã que até hoje fala um dialeto bávaro extinto, no interior  de Santa Catarina, as equipes das grandes cadeias de TV vão lá, ouvir velhinhos que não falam língua  nenhuma e documentar a nossa neve , que, segundo minha ótica de infância, pode não ser tão abundante quanto no Canadá, mas é seguramente a melhor.

A maturidade, contudo, nos traz algumas desilusões. Verificamos, sim, que estavam praticamente certos num ponto, os ufanistas. Temos de tudo, ou quase tudo, mas esse  tudo se estende a áreas que, se não formos realistas, poderão ser vistas como desairosas. Tentarei provar, no curto espaço que me resta, que se trata, basicamente, de uma questão de preconceito. Como também sou do tempo em que havia filosofias da História, ouso endereçar-me ao problema utilizando uma nova visão  que aqui lanço e que chamarei de falcatruísmo. Os marxistas não acham que tudo se explica pela estrutura econômica e a oposição entre as classes assim formadas? Pois o falcatruísmo explica a história do Brasil como a conseqüência das relações de falcatruas que temos mantido ao longo destes séculos e que agora prospera extraordinariamente.E vai mais além. Ou aceitamos o falcatruísmo como a nossa maneira de ser, vendo-o numa perspectiva  otimista e construtiva, tirando dele o máximo proveito, ou passaremos o resto dos tempos condenados às mazelas que tanto nos afligem.

Olhem em torno. Onde não há denúncias de roubo ou maracutaias, onde é possível manter um relacionamento honesto, de acordo com padrões importados e em diametral desacordo com a nossa inata maneira de ser? Segundo ouvimos dizer e há sempre alguém por dentro que nos garante que é assim mesmo, não existe área de atividade no Brasil que não seja marcada pelo falcatruísmo. Pensemos no governo.Ninguém levantou acusações diretas de falcatruísmo contra o Homem, mas o Executivo que ele relutantemente chefia não está imune, como sabemos.Para o Judiciário, ergamos como ícone o juiz Lalau.E para o Congresso, ergamos as mãos para o céu, num país onde deputados estaduais ganham mais de um milhão por ano, marajás diversos idem e deputados federais burlam, para comprar carros, um dos muitos auxílios que os deputados federais recebem ( é a gente mais auxiliada do país ).E qualquer tentativa de moralização, como está ocorrendo agora mesmo, é detida pelas nossas tradições.Abrir sigilo bancário, nunca, bem como nunca expor a realidade do Congresso aos intrometidos olhos amadores, ou seja, nós, o povo.

A polícia? Dinheiro resolve.as punições? Dinheiro resolve.Os atos ilícitos? Dinheiro resolve.Alguém quer apertar os preços de produtos vendidos por peso ou extensão? Cobra-se o mesmo preço por menor quantidade e fica por isso mesmo.Por mais que se procure, não há lugar onde o falcatruísmo não triunfe no Brasil, desde o esporte às organizações de caridade a que damos parte do nosso rico dinheirinhoA fama é tão alta que agora o governo chinês busca nosso auxílio no combate à corrupção.Lá eles metem uma bala na nuca de quem é pegado roubando dinheiro público. Não vamos adotar tal prática, porque, além de ser contra nossa índole terna, representaria um verdadeiro genocídio. E, além disso, o que os chineses escudados pela dissimulação fu-man-chuniana da Misteriosa Sabedoria Oriental, querem mesmo é saber o que nós fazemos, para não fazer a mesma coisa lá. No falcatruísmo, ao contrário do futebol,nós sempre somos e seremos os melhores.

Resta assumir de vez e ver se perdemos a timidez e acrescentamos  o rótulo de"nacio- nalista" ao falcatruísmo. Vamos roubar aqui , mas não vamos nos limitar a isso, como agora. Vamos estender o falcatruísmo aos gringos e ver se roubamos deles um pouquinho também. Para serem eleitos, os próximos candidatos não precisarão mostrar os dedos, como o Homem fez inutilmente. Que mostrem as mãos inteiras, num movimento  de arrepanhar, e usem como slogan " todo mundo metendo a mão !". Nós ainda temos futuro, apesar dos catastrofistas."

 

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