1958. Um
bar da moda em Greenwich Village, o coração boêmio de Manhattan. Lugar
escuro, esfumaçado, denso de cheiros humanos, emoções.
Os
olhos da jovem cravados no poeta que se apresentava, famintos, impacientes.
Ela o queria. Precisava tê-lo. Aquele ar blasé, os olhos
castanhos penetrantes e incrivelmente vivos, o cabelo caindo rebelde
na testa. Mas não era só isso.
-
A noite é a hora certa. A hora certa. É a hora em que a morte mais batalha.
Ele
sabia do que falava. Ela podia sentir a intensidade em suas palavras.
-
A morte curte o escuro. Por isso ela curte Nova York. Porque Nova York
tem muitos becos escuros. E subterrâneos. E o mais quente de tudo...
Aquele
brilho nos olhos dele.
-
... vítimas.
Sim,
ele sentia.
-
O assassino levanta bem antes do amanhecer... Ele está faminto. Ele
vai atrás de sua próxima vítima para se alimentar. Cara, o assassino
tem um apetite enorme.
Como
o que ela sentia agora, por ele.
-
A caçada... O pavor... O assassinato...
Sangue...
sangue...
Aquele
homem, como ela, saboreava o terror. Ela se viu beijando aquela boca,
aquele rosto, os lábios desviando-se suavemente para o pescoço e então...
Então seria ela a saboreá-lo. Seu terror, seu desespero, sua
vida. Sua morte.
A
mocinha de grandes olhos castanhos se deixou levar pelo devaneio, e
mal percebeu a inquietude que de repente tomou conta do poeta. Quando
voltou a prestar atenção, ele concluía algum raciocínio que ela não
acompanhara.
-
Estou lhes dizendo, não vale a pena viver!
-
Não se tivermos que escutar isso.
A
interferência rude partira de alguém na platéia. Uma voz masculina,
grave, poderosa. Vários pescoços se viraram. Ela também olhou.
Qualquer
interesse que ela pudesse ter pelo poeta se esvaiu enquanto examinava
o perfil do intruso. Aquilo é que era homem! Alto, moreno, ombros
largos. Ok, um tanto arrogante, interrompendo daquela forma a performance
do poeta beat, meio grosseiro da parte dele, mas afinal, que
mulher gosta de homens fracos e indecisos? E ele tinha a postura decidida
de um lutador. Noutra época ela não hesitaria em reconhecer nele um
guerreiro, mas guerreiros não existiam mais. Não no século XX.
O
recém-chegado caminhou devagar em direção ao palco. Fascinada, ela não
tirava os olhos das costas dele, largas, másculas. Seus movimentos traíam
um auto-controle impressionante. E ele irradiava...
...
ameaça!
A
ameaça, ela notou intrigada, dirigia-se contra aquele rapaz no palco,
o poeta de cabelo revolto que agora exibia intensa agitação.
-
... a morte curte o trabalho, a morte é uma perfeita profissional, cara.
Ela tem direito de posse desta cidade. Não acreditam? Perguntem àquele
cara ali. Talvez eu seja paranóico, mas eu acho que aquele cara veio
aqui pra me matar... - ah, então ela estava certa, e o poeta também
tinha notado - ... Olha, cara, fica frio aí com a tua morte, tá? Porque
todos nós sabemos que... sabemos que só...
-
... só pode haver um! - o homem alto o interrompeu, completando a frase
- O show acabou.
Ora,
o que era aquilo?! Do que é que eles estavam falando?
O
poeta então fez algo inacreditável, e de dentro do sobretudo sacou...
uma espada! O homem alto não pareceu se surpreender, porém, e continuou
avançando na direção dele.
-
Então vamos lá. Só eu e você, lá pra cima, no arranha-céu. Alguém vai
morrer...
Ele
se afastou em direção à porta do fundo do palco, brandindo a espada.
O outro aceitou o convite e o seguiu.
-
Ei, cara, você é completamente quadrado! - exclamou um rapaz de cavanhaque,
naquela indignação rebelde-sem-causa tão típica dos beatniks.
A
ponto de atravessar as cortinas atrás do poeta, o homem alto e moreno
se virou, e ela pôde, pela primeira vez, ver seu rosto de frente.
-
Gosto de tudo certinho - e desapareceu nos bastidores.
Se
o coração da vampira Lucila batesse, com certeza teria parado nesse
exato momento. Aquele rosto! Ela se lembrava daquele rosto! Não era
possível! Esse homem devia estar morto! Ele devia ter morrido há...
mais de cem anos!
*************
O
vento gelado da noite de inverno varria o labirinto intrincado de ruelas
sujas e estreitas num bairro duvidoso da capital da Espanha. Na distância
perdia-se o barulho solitário das rodas de uma carruagem sobre as pedras
do calçamento.
Cada
vez mais furiosa e irritada, a jovem ajeitou a capa negra de veludo
forrado de pele, aconchegando-a contra si. Não que o frio a incomodasse.
Criaturas como ela suportavam bastante bem as temperaturas baixas. Era
só um gesto mecânico, uma pequena distração. Mas seus olhos não se desviaram
um milímetro da fachada que vigiavam. Há algum tempo já não ouvia, com
sua audição sobre-humana, os sons do casal em pleno ato do amor. A qualquer
momento ele, o traidor, sairia por aquela porta. Ela se sentia ultrajada,
humilhada com o descaramento dele. Como pudera enganá-la daquela forma?
Ele, seu escolhido, o consorte a quem tinha confiado seu segredo, que
a cativara a ponto dela sonhar transformá-lo em seu semelhante. Mas,
ah, ele não perdia por esperar. Seu atrevimento merecia uma retribuição
à altura. Uma pena que, sem ser convidada, ela não pudesse entrar, pegar
o desgraçado em flagrante com aquela rameira desclassificada e acabar
com a palhaçada de uma vez por todas.
Mas
a qualquer momento, agora, ele sairia, e então...
-
Uma jovem de boa família jamais deveria vir sozinha a um lugar de reputação
tão ruim...
Sobressaltada,
ela se virou para encarar o homem que surgira a poucos passos dela.
Diabos! Estivera tão concentrada que nem notara sua aproximação. Por
um breve instante pensou em descontar em cima do pobre infeliz toda
a ira acumulada durante a longa espera, mas descartou a idéia assim
que seus olhos varreram de alto a baixo o vulto à sua frente. Ele era...
apetitoso.
-
Ainda bem, então, que não há por aqui nenhuma jovem de boa família!
- respondeu, com um sorriso malicioso que ele não veria na iluminação
deficiente da rua escura. O tom das palavras, porém, não deixava lugar
a dúvidas.
Ele
hesitou, surpreso, e ela percebeu. Ah, um homem sério, hein? Provavelmente
comprometido. Ou apaixonado. Não que fizesse diferença. Homens são homens.
Ela conseguiria dele o que bem entendesse. E além do mais, ela estava
a ponto de ficar, hã, viúva, e precisava pensar no futuro. Futuro bem
próximo.
-
De qualquer forma, o senhor tem razão - continuou ela, numa voz sensual,
pousando a mão brevemente sobre o braço dele. - Este não é um lugar
adequado para uma jovem sozinha. O senhor se importaria em acompanhar-me
até em casa e proteger minha... virtude?
Ele
fez uma mesura elegante e cavalheiresca.
-
Seria minha a honra, señorita...
-
Lucila - sem sobrenome. Isso dizia muito. Ele entenderia.
-
Duncan MacLeod, às suas ordens - e a voz dele já traía os primeiros
sinais do desejo.
-
Ah, um estrangeiro. Inglês?
-
Escocês - um leve tom ofendido. - E a señorita também não é espanhola.
-
Não, não sou - sem explicações.
Por
essa altura ela já cogitava adiar sua vingança. Aquele estrangeiro moreno
e sedutor era muito mais interessante do que o verme que ousara atraiçoá-la.
De repente a punição não parecia mais tão urgente. Poderia esperar.
Nesse
exato instante a porta se abriu. A vampira teria prosseguido em seu
jogo de sedução, deixando para outra hora a vingança, se o traidor não
se detivesse no umbral para despedir-se de sua amante com um longo beijo
ardente e apaixonado. Aquilo era demais. Não dava para ignorar. A fúria
explodiu dentro dela.
-
Con su permiso, señor MacLeod, tenho um assunto para resolver,
mas não vá embora. Eu volto num instante...
Com
rapidez sobrenatural ela pareceu materializar-se ao lado do casal que
ainda se beijava. Um único golpe de sua mão atirou o homem com violência
contra o muro do outro lado da rua. Ele caiu no chão. Zonzo pelo choque,
tentou se levantar e não conseguiu.
-
Endrigo! - guinchou, aterrorizada, sua amante, recolhendo com as mãos
as amplas saias e correndo até ele.
-
Já era ruim saber que estava sendo corneada, mas por favor, eu esperava
que pelo menos algum bom gosto você tivesse! Me trocar por essa
marafona usada e sem graça? Endrigo, você é repugnante!
-
Quem aqui é usada e sem graça? - urrou a mulher, enfurecida.
-
Señorita, cuidado! - o alerta soou numa voz potente.
De
dentro do casaco, o amante traidor havia tirado uma pistola e fez mira
em Lucila. No exato momento em que a arma disparou, Duncan MacLeod se
jogou na frente do alvo e seu corpo recebeu a bala destinada à jovem,
e que nenhum mal lhe teria causado. Mas ele não tinha como saber disso,
e tombou ferido, com um gemido de dor.
-
Señor MacLeod!
Ela
se curvou sobre ele, alarmada, e viu a mancha vermelha que lhe surgiu
no peito, no lado oposto ao coração. O escocês começou a ofegar e uma
espuma rosa se formou no buraco do ferimento. O pulmão tinha sido atingido.
Lucila soube que aquele homem atraente não teria muito tempo de vida.
Mas
ao mesmo tempo, o cheiro do sangue fresco, de sangue forte e vigoroso,
despertou dentro dela a Fome, irresistível, avassaladora. Seus caninos
vampíricos se projetaram por vontade própria. Ciente da transformação,
ela voltou o rosto, para que o ferido não visse sua face de fera.
Ele
interpretou mal o gesto.
-
Não se preocupe comigo, señorita. Fuja antes que ele carregue
de novo a arma - sussurrou, e começou a tossir.
-
Ele vai pagar por isso que lhe fez, señor! - e ergueu-se para
confrontar o ex-amante.
Endrigo
preparava-se para atirar de novo mas ela foi mais rápida. Segurou a
mão que empunhava a arma e aplicou apenas uma fração de sua força vampírica.
Um estalo seco.
-
Aaaaaah, você quebrou a minha mão!
-
Sua bruxa, o que é que você fez ao meu Endrigo? - e com isso a mulher
se atirou para cima de Lucila.
Mesmo
com o dobro do tamanho da vampira pequenina, porém, ela não tinha a
menor chance. Qualquer embate entre um humano e um vampiro só poderia
ter um desfecho. Agarrando-lhe o pescoço, Lucila afastou-a de si, e
a volumosa mulher começou a se debater, sufocada e subitamente assustada
com a aparência da criatura que a subjugava. A vampira foi envolvida
pelos cheiros dela, os perfumes da humanidade. Suor, gorduras corporais,
vestígios do sexo recém-feito. O Terror. Delicioso e absoluto. A Fome
a dominou.
Com
a brutalidade de um animal, ela enterrou os dentes no pescoço da cortesã
e o sangue quente brotou em sua boca. Ela bebeu com volúpia, e a mulher
gritou, enlouquecida de pânico.
-
Endrigo, socorro!
Nada
poderia encolerizar mais a vampira do que a invocação àquele que a enganara.
Seus dentes se afastaram da carne da vítima, num rosnado raivoso.
-
Quer ficar junto de seu Endrigo para sempre? Pois eu vou te ajudar.
Vai na frente que ele logo te encontra - e segurando-lhe a cabeça com
as duas mãos, num único movimento de torção quebrou seu pescoço.
O
corpo sem vida desabou ao chão, uma pilha de cetim cor de pérola.
-
Soledad, não... não... - uivou o traidor.
-
Pobre Soledad, indo tão solitária ao encontro da morte. Estou certa
de que está ansioso por fazer-lhe companhia, como lhe fez todas as noites
em que me dizia estar reunido com a rainha Isabel e o ministro Benavides
- disse Lucila, a voz fria e cruel.
-
Você é um monstro!
-
Não era isso que me dizia quando fazíamos amor.
A
muito custo, Endrigo havia se colocado em pé. A vampira o derrubou de
novo por terra. Seu pezinho, calçado numa elegante bota de camurça preta
com botões laterais, pousou sobre um joelho dele. Uma pequena pressão
e...
-
Aaaaaah! Meu joelho! Sua vagabunda, você queb... AAAAAAH!
Com
os dois joelhos quebrados ele não fugiria. Seu castigo podia esperar,
mas o escocês talvez não tivesse muito tempo mais. Ela foi até ele e
se ajoelhou a seu lado. Ele estava morrendo, e não havia o que pudesse
ser feito. Angustiada, ela lhe afagou os cabelos negros.
-
O que você é? - disse ele, a voz um sussurro rouco, difícil.
Seus olhos se fecharam e com um último suspiro a cabeça dele tombou
de lado. Tinha morrido.
Lentamente
ela ergueu os olhos do cadáver e cravou-os em seu antigo amante.
-
Vou fazer você se arrepender de ter nascido - disse, em voz neutra e
vazia.
Em
meio à dor, Endrigo engoliu em seco. Ele sabia. Aquela não era uma ameaça,
era uma promessa. E ela sempre cumpria suas promessas.
*************
Poucas
vezes em seu longo passado Lucila sentira tamanha perturbação. Era como
ter avistado um fantasma. Impossível. Não pode ser ele, não pode
ser Duncan MacLeod, o escocês. Ao mesmo tempo ela tinha absoluta
certeza de que sim, era ele o homem que vira morrer, em 1851, numa rua
escura de Madri. Como, por todos os infernos? Ele não poderia estar
vivo até hoje, sem aparentar um segundo a mais de idade. Para isso teria
de ser como ela, um vampiro. E vampiro ele não era.
O
que era aquele homem que devia ser um monte de ossos velhos do outro
lado do Atlântico mas que estava vivo e saudável nesta Nova York do
século XX?
Por
longos minutos ela ficou imóvel, aturdida. Não queria admitir para si
mesma, mas estava assustada. Aquele homem, Duncan MacLeod, era algo
que não podia compreender.
Longe,
ela ouviu um trovão, e o som a arrancou de seu estupor.
Algo
relutante, ela se levantou e seguiu por onde os dois homens tinham ido.
Viu-se num corredor deserto, o ar estranhamente carregado com o odor
ionizado que uma descarga elétrica produz. Muito estranho. E, mais estranho
ainda, a porta da saída dos fundos tinha sido destruída.
Ela
foi devagar, ressabiada, para lá. Com cautela, cruzou o umbral e viu-se
num estacionamento quase vazio. Cheiro de sangue recém-derramado inundou
suas narinas. Um homem afastava-se lentamente. Não era Duncan MacLeod.
Alguém vai morrer, dissera o poeta. Seria possível que...?
-
Que surpresa revê-la após tanto tempo... señorita Lucila.
Algo
tocou com suavidade seu pescoço. O fio de uma espada. Existem poucas
formas de matar um vampiro, e a decapitação é uma delas.
-
A surpresa é toda minha, señor MacLeod - disse ela, em estado
de alerta, tentando prever o que faria a seguir o homem que, parado
imóvel ao lado da porta, pegara-a desprevenida.
-
Depois de todos esses anos ainda me pergunto que tipo de criatura estranha
é você.
-
Não do tipo de criatura estranha que sai por aí com uma espada ameaçando
cortar a garganta dos outros... - com movimentos precisos e rápidos,
que pouco tinham de humanos, ela afastou o braço que empunhava a espada,
ao mesmo tempo em que agarrava a garganta do homem e o prendia de encontro
à parede - ... um século depois de ter morrido com um tiro no pulmão.
Imediatamente
sentiu a ponta da espada espetando sua barriga.
-
Não costumo ferir mulheres, mas em seu caso posso abrir uma exceção.
Ela
o libertou e recuou até sair do alcance da lâmina afiada. Não que a
ameaça a intimidasse. Se ele a trespassasse com a arma, ela não sofreria
mais do que uma dor terrível. Recuperar-se do ferimento seria uma questão
de horas. Ela se afastou porque aquele homem despertava nela agora o
mesmo interesse que havia despertado tantos anos antes, noutra época,
noutro continente.
-
Eu a procurei por toda Madri depois de nosso... encontro.
Ela
deu de ombros.
-
Perdeu seu tempo. Depois do assassinato de Sol de Malasaña, a mais afamada
mulher pública da corte, e do repentino sumiço de seu amante, don
Baldomero Endrigo de Balaguer, fiel conselheiro da rainha Isabel II,
tive de sair da cidade. Não foi só você, toda a guarda real estava atrás
da jovem traída que se vingara cruelmente do noivo infiel e de sua rival.
Três dias depois já estava a salvo fora do país, em Bordéus.
-
O corpo de don Endrigo nunca foi encontrado.
-
Sou melhor do que você na arte da ocultação de cadáveres - retrucou
ela com desdém, acenando vagamente a mão na direção de um corpo que
jazia alguns metros distante deles.
O
corpo do poeta. Decapitado. Era de seu sangue o cheiro que quase enlouquecia
a vampira.
-
Não fui eu quem o matou.
Ela
deu uma gargalhada.
-
Ah, tá. Você com uma espada mortífera nas mãos, ele com a cabeça bem
longe dos ombros e tudo não passa de uma coincidência incrível. Qual
é, tá havendo uma convenção de carrascos na cidade e a imprensa não
foi informada?
-
Mais ou menos isso - ele deu um sorrisinho breve e cativante.
-
O que você é, señor MacLeod? Eu o vi morrendo, e tenho
suficiente intimidade com a morte para não ter dúvida alguma de que
naquela noite você morreu. Você é imortal?
-
Desde que continue com a cabeça no lugar, sim. Assim como você também
parece ser. Sua aparência não mudou nada nestes anos. Mas sua imortalidade
não é como a minha.
-
E a dele era? - ela olhou de novo o corpo do poeta morto e todo aquele
sangue desperdiçado.
-
Sim. E quem o matou também era como nós.
-
Porque entre vocês "só pode haver um".
-
Sim - o sorrisinho de novo. Lucila descobriu-se gostando de vê-lo sorrir.
-
E porque só pode haver um, vocês saem por aí armados com espadas cortando
fora as cabeças uns dos outros?
-
Em linhas gerais, sim - sorriso.
-
Um bando de imortais disputando pra ver qual a única cabeça que vai
sobrar. E eu é que sou a criatura estranha!
-
Eu vi você tomando o sangue daquela mulher.
-
Moribundo mas atento, hein?
-
E você, señorita, o que é?
-
Señor MacLeod, sabe o que viu. Tire suas próprias conclusões.
Ele
franziu o cenho.
-
Vampiros não existem!
-
É mesmo?
Ela
apenas deixou de reprimir a reação natural ao cheiro do sangue que agora
quase a sufocava. Sus presas se alongaram. Ela deu um sorriso faminto.
A
resposta dele veio rápida, e a ponta da espada tocou bem no meio de
sua garganta. Ela esperava algo assim
-
Não se mexa, e não tente me ferir! - disse, usando a Voz vampírica,
a cujo comando é impossível resistir.
-
O que... - por mais que se esforçasse, ele não conseguia se mover.
-
Vampiros têm alguns poderes que vocês não têm, señor.
-
Você é uma assassina e uma ameaça... - vociferou ele.
-
Diga isso a todos que decapitou com essa sua espada.
-
Não é a mesma coisa!
-
Não? Eles perderam a cabeça porque mereciam? Duncan MacLeod, promotor,
juiz e executor. Bacana. Bem moderno. A polícia de Nova York adoraria
conhecer você.
-
Eles também gostariam de você, vampira.
Ela
deu uma risada.
-
Sem chance, querido.
Então
ela o olhou e tentou raciocinar com clareza. Não podia negar que a idéia
de mordê-lo e tomar seu sangue deixava-a alucinada. Estava enfeitiçada
por seus olhos escuros, intensos, que indicavam uma força de caráter
incomum. Por seus sorrisos, dos quais ele parecia ter um repertório
inesgotável. Pelo mistério de sua imortalidade. Um imortal que não era
vampiro, que assombro!
Foi
duro tomar a decisão, mas não havia escolha. Era o melhor a fazer.
-
Você vai esquecer que me conheceu. Vai esquecer que me viu naquela
rua de Madri e vai esquecer que nos reencontramos hoje. Vampiros não
existem e ninguém jamais o convencerá do contrário. E agora vá embora,
Duncan MacLeod, e não olhe para trás.
Olhos
baços, ele embainhou a espada e se foi pela rua vazia.
Lucila
fechou os olhos, cheia de pesar por ter deixado a cautela vencer. Poderia
ter-lhe bebido o sangue, mas não quis. Tinha a forte suspeita de que
o sangue imortal fosse especial. Uma iguaria extraordinária, talvez
tão extraordinária a ponto de se tornar numa obsessão. E caçar imortais
não parecia um passatempo muito saudável. Eles carregavam espadas e
cortavam cabeças.
Ela
olhou por um instante a silhueta do homem que se afastava.
Suspirou.
E
voltou para o bar, pensando no beatnik de cavanhaque como um
modesto prêmio de consolação. Uma vampira tem de se virar como pode,
não é?
*************
1995.
Enquanto percorriam a trilha numa verde floresta da costa oeste da América
do Norte, o jovem Imortal insistia, teimoso, com seu mestre e tutor.
-
Mas nós existimos! Quer dizer, quem pode garantir que não há outras
coisas estranhas por aí?
Paciente
mas irredutível, o Imortal mais velho falou com todo o aval que os séculos
de vida proporcionavam a seu ceticismo inabalável.
-
Richie, eu já vivi 400 anos e nunca vi um lobisomem, um duende ou um
vampiro...
*************
Fanfic
baseada no episódio Algo Muito Perverso (Something Wicked,
95413-79), com algumas pitadas de Duende (96514-102).
São
Paulo, 16 de outubro de 2003,
para Silvia Fazzolari, Cli Cordeiro e Mônica Beta