"Revista Seleções -
dezembro de 2001"
Uma
família incomum
Nos bastidores
com os seres de olhos esbugalhados, quatro dedos e pele amarela.
Por: Sanjiv
Bhattacharya
É manhã de
quinta-feira nos estúdios da Fox, em Los Angeles, e mais de 30
pessoas se comprimem numa sala de reuniões para testemunhar o
nascimento do mais recente episódio de Os Simpsons. Numa
ponta estão os roteiristas devoradores de lápis; na outra, os
dubladores, ou “artistas da voz”. Cada centímetro quadrado que resta
está tomado por diretores, produtores e animadores – gargalhando,
virando em uníssono as páginas do último roteiro e tomando notas.
“Oi, pessoal”,
diz Mike Scully, produtor executivo e comandante da grande nave
chamada Springfield (a cidade onde vivem os Simpsons). “Tenho boas
notícias. Fomos indicados para o Emmy. Melhor desenho animado”.Todos
aplaudem. Prêmios não são novidade para Os Simpsons, que já
traz 16 Emmys na bagagem.
Em meio a toda
essa cordialidade é fácil esquecer a imensa notoriedade da família
de olhos esbugalhados, quatro dedos e pele amarela. Os Simpsons
é um dos programas de horário nobre mais férteis da historia, sendo
transmitido em 66 países, inclusive no Brasil. A revista Time
o elegeu o melhor programa televisivo do século 20. A série tirou o
desenho animado da era dos Flintstones, ressuscitou a sátira,
bateu no politicamente correto e entrou no dicionário The Oxford
English.
“Acho que sei
quando Os Simpsons nasceu”, diz o criador Matt Groening, um
homem grandalhão, simpático e barbudo, de inteligência fenomenal.
“Foi por volta de 1960, quando eu tinha seis anos e assistia a um
programa infantil chamado Dennis, o Pimentinha. Eu ficava
impressionado porque o garoto, que deveria ser uma pimenta, era meio
boboca. Eu queria uma pimenta de verdade”.E assim Bart veio ao
mundo.
Em 1987,
Groening, então um cartunista esforçado, vendeu seu primeiro “curta”
animado dos Simpsons para a Fox Television. Batizou os
personagens com os nomes da própria família – embora garanta que as
semelhanças terminam por aí. O pai de Groening se chama Homer; a mãe
Margaret; as irmãs, Lisa e Maggie; e quanto a Bart, trata-se de um
anagrama de Brat (pestinha). A série foi lançada em dezembro
de 1989. No Brasil, começou a ser exibida em 1991.
A Springfield de
Groening é uma invenção grandiosa, abençoada com uma montanha de
pneus que nunca pára de pegar fogo e uma perigosa usina nuclear. A
usina é dirigida por Mr. Burns, um bilionário frágil de 104 anos. O
prefeito quimby, corrupto e mulherengo, lembra John Kennedy de forma
perturbadora, e o chefe de policia é um idiota que está sempre
comendo rosquinhas. “Acho que essa é uma das lições do programa: nem
sempre as autoridades estão preocupadas com nossos interesses”
conclui Groening, rindo.
No seio da
comunidade encontram-se os próprios Simpsons, uma família nuclear
disfuncional, em que Bart, o malandro inveterado, é contrabalançado
por Lisa, a irmã inteligente de oito anos, e da qual mamãe Marge é a
figura mais confiável. Para muitos fãs, no entanto, quem domina
Os Simpsons é Homer, um bobalhão impulsivo e adorável, movido
pela busca sem fim de rosquinhas e cerveja. A vida da família gira
em torno da televisão.
O impacto da
série, no fim dos anos 80, quando o politicamente correto dominava,
foi considerável. “Estávamos no lugar certo na hora certa”, analisa
Groening, “no fim de uma década de complacência, com diversas
comedias retratando famílias de classe média alta. Oferecemos ao
público uma dose de algo grosseiro e sem glamour”. Em
Springfield, as pessoas bebem, fumam e quebram todas as regras não
escritas da TV.
No entanto, Os
Simpsons deve sua longevidade à integridade dos personagens. Apesar
de todas as liberdades da animação de Homer – as conversas quem
mantém com seu cérebro, as seqüências de sonhos, as viagens ao
inferno e todas as situações que um personagem de carne e osso não
pode viver -, o personagem se conservou intacto. Os habitantes de
Springfield são tratados como pessoas de verdade. Não são bonecos,
sempre explodindo ou caindo de penhascos apenas por serem animados.
Depois de 12
anos, a família de Homer ainda está unida (assim como os membros do
elenco original). “Os Simpsons nos mostra que podemos amar as
pessoas que nos levam à loucura”, acredita Groening. No fim, Homer
sempre presta atenção às advertências de Marge e nem sonharia em ser
infiel. Até freqüenta a igreja. Springfield está longe de ser um
lugar desprovido de fé. (Deus tem cinco dedos).
O perfeccionismo
atravessa todo o processo de produção, que chega a contar com uma
orquestra de 35 instrumentos e um compositor próprio. São 16
roteiristas. Diz Mike Scully: “Temos dois comediantes, alguns
redatores de piadas, roteiristas de seriados, um ex-bioquímico e um
redator publicitário”.
Cada programa de
21 minutos funciona em diversos níveis diferentes. Na “leitura
dramática” de hoje, a nova história apresenta três pontos de vista e
volta duas vezes ao passado. Todos abrimos a página um. O ator Dan
Castellaneta solta seu Homer, já vencedor do Emmy. E começam as
risadas...
Por acidente,
Marge corta fora o polegar do marido quando ele tenta pegar um
biscoito. Homer então precisa ir para o hospital, enquanto Lisa tem
de ir para a escola e Bart – naturalmente – conduz um malfeitor da
cidade a uma emboscada com fogos de artifício. Em uma das cenas,
Homer tenta pegar carona fazendo sinal sem o polegar. “Funcionou
muito bem”, comemora Scully, enquanto saímos. “Não vamos precisar
reescrever”. Em seguida as vozes são gravadas e depois, a partir do
roteiro e da gravação das vozes, um exército de animadores e
criadores de storyboard começa a trabalhar sob um mar de
luminárias, preparando novas cenas e personagens. Todos os
habitantes de Springfield têm olhos estrábicos de Marty Feldman –
passando de bonitinhos a infernais numa única piscada.
A despeito dos
prazeres intimidantes, ás vezes o texto reescrito chega a ter 15
páginas. Se os roteiristas decidem que um personagem não combina com
a voz, que o tempo se encontra mal regulado ou mesmo que existe uma
piada melhor para contar, o número de páginas aumenta e cerca de 80
animadores em Los Angeles e cem desenhistas se mobilizam.
É por isso que o
programa é um sucesso e ganha a devoção de milhões de fãs. De volta
à leitura dramática na sala da Fox, Matt Groening avalia sua
criação. “Acho grande parte da cultura popular chata e repetitiva”,
diz ele. “Quando surgimos, a mensagem que prevalecia na maioria dos
programas cômicos da TV era a de que nada tinha importância e que só
um tolo se incomodava com isso. Nós oferecemos uma alternativa. E
queremos que as pessoas questionem, que leiam. Há um subtexto no
programa sugerindo que é bom ser inteligente e que, se você ler mais
livros, vai poder entender mais piadas”.
Os
Simpsons reflete nossa experiência comum
de fazer a vida dar certo sem saber exatamente como conseguimos,
convencidos de que ela não é feita de escolhas simples, mas ainda
assim indecisos sobre o melhor caminho a seguir. “É evidente que há
contradições”, reconhece Groening – como satirizar a televisão por
meio de um programa de TV sobre personagens obcecados por televisão
e utilizar a rede de emissoras Fox para atacar os grandes
conglomerados gananciosos. “Mas não é assim que é a vida?”.
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