Número do processo: 1.0701.07.191519-6/001(1) Númeração Única: 1915196-21.2007.8.13.0701 Acórdão Indexado! Processos associados: clique para pesquisar Relator: Des.(a) ALBERTO VILAS BOAS Relator do Acórdão: Des.(a) ALBERTO VILAS BOAS Data do Julgamento: 14/08/2007 Data da Publicação: 04/09/2007 Inteiro Teor: EMENTA: PROCESSO CIVIL. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTELA ANTECIPADA. CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. PACIENTE EM TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITO À VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA. - No contexto do confronto entre o postulado da dignidade humana, o direito à vida, à liberdade de consciência e de crença, é possível que aquele que professa a religião denominada Testemunhas de Jeová não seja judicialmente compelido pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimioterápico, especialmente quando existem outras técnicas alternativas a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico. - Hipótese na qual o paciente é pessoa lúcida, capaz e tem condições de autodeterminar-se, estando em alta hospitalar. AGRAVO N° 1.0701.07.191519-6/001 - COMARCA DE UBERABA - AGRAVANTE(S): ALAN LAIO CARDOSO DOS SANTOS - AGRAVADO(A)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADO MINAS GERAIS - RELATOR: EXMO. SR. DES. ALBERTO VILAS BOAS ACÓRDÃO Vistos etc., acorda, em Turma, a 1ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, EM REJEITAR PRELIMINAR E DAR PROVIMENTO. Belo Horizonte, 14 de agosto de 2007. DES. ALBERTO VILAS BOAS - Relator NOTAS TAQUIGRÁFICAS Proferiram sustentações orais, pelo Agravante e pelo Agravado, respectivamente, o Dr. Paulo Dinardi Júnior, e o Procurador de Justiça, Dr. Luiz Carlos Teles de Castro. O SR. DES. ALBERTO VILAS BOAS: Sr. Presidente. Estive atento às sustentações orais produzidas pelo ilustre Advogado do Agravante, bem como pelo eminente Procurador de Justiça, que falou em nome do Ministério Público. Parabenizo a ambos pela qualidade dos trabalhos produzidos no corpo do contexto deste Agravo de Instrumento, o que auxilia, e muito, a definição de uma posição, pelo menos provisória, do Tribunal sobre o tema, que é polêmico e que merece uma reflexão cuidadosa. VOTO Conheço do recurso. - Questão preliminar: nulidade da decisão. A decisão interlocutória, conquanto seja concisa, não pode ser declarada nula, na medida em que estão presentes os elementos mínimos que permitem reconhecer as razões que levaram a autoridade judiciária a deferir a tutela antecipada. Rejeito a preliminar. O SR. DES. GERALDO AUGUSTO: De acordo. A SRª DESª VANESSA VERDOLIM HUDSON ANDRADE: De acordo. O SR. DES. ALBERTO VILAS BOAS: VOTO - Mérito. O agravado encontra-se acometido de câncer no sistema linfático e está sob tratamento quimioterápico no Hospital das Clínicas de Uberaba, sendo certo que o profissional que o atende relatou ao Ministério Público sua recusa de não receber transfusão sangüínea de espécie alguma. Com efeito, o recorrente integra a corrente religiosa denominada Testemunhas de Jeová e um dos dogmas seguidos fielmente por esta respeitável instituição repousa no fato de seus integrantes estarem proibidos de receber sangue de outra pessoa. Daí, o conflito de interesses estabelecidos a partir do ajuizamento da ação civil pública, porquanto o Ministério Público deseja obter provimento jurisdicional que propicie à instituição hospitalar que trata o agravante o direito de realizar, se necessário for, a transfusão sangüínea a fim de evitar o perecimento da vida do réu. A razão justificadora desta pretensão é derivada do fato de haver risco sensível, em face da agressão causada pela quimioterapia ao sistema imunológico do paciente, de ser necessária a transfusão para elevar os níveis de hemoglobina e outros componentes similares produzidos pelo corpo humano. A oposição do agravante à ação civil pública deduzida pelo agravado funda-se, primordialmente, na sua capacidade de auto-determinação derivada da liberdade de consciência e na liberdade de poder professar sua religião, inclusive no que concerne aos preceitos por ela estabelecidos. Não comungo, ainda, da argumentação segundo a qual seria o Ministério Público parte ilegítima para aforar a ação, na consideração de que a vida - como um dos direitos fundamentais estabelecidos no art. 5º, caput, CF - traduz direito indisponível e que, dentro da ótica estabelecida pelo art. 127, CF, torna possível que sua tutela seja buscada judicialmente. É certo que a instituição precisa desenvolver postura comedida para eleger a situação-limite em que a vida humana encontra-se sob risco de violação definitiva, a fim de não vulgarizar a tutela do interesse individual indisponível e transformar o Ministério Público em senhor do que é certo e errado no âmbito da autodeterminação de cada pessoa. Rejeito a alegação e considero, em tese, o Ministério Público como órgão legitimado para a causa. É inegável que o objeto da irresignação recursal envolve valores constitucionais que necessitam de avaliação prudente, sob pena de institucionalizar-se uma relação ditatorial entre o Estado e o cidadão que titulariza uma série de prerrogativas consideradas fundamentais pela Constituição da República. A preservação do direito à vida, por conseguinte, compõe critério orientador do sistema normativo, e, na espécie em exame, não se pode assumir postura radical na tutela de quaisquer destes valores postos em discussão. Com efeito, a vida humana é um bem jurídico que não pode ser desprezado e é tratado como direito fundamental, mesmo porque precede o exercício de quaisquer outros direitos, haja vista a tutela recebida no âmbito penal. Não há como deixar de reconhecer, em princípio, que associado a este bem, dele deflui a dignidade da pessoa humana, um dos valores que orientam a República (art. 1º, III). Sobre o tema, enfatiza Alexandre de Moraes que: "a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na auto-determinação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos." - (Direito Constitucional. 19a ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 16). Dentro deste contexto, é preciso considerar que a recusa do agravante em submeter-se à transfusão de sangue é providência legítima desde que não esteja inconsciente e possua condições de externar juízo de valor sobre os procedimentos necessários à conservação de sua vida. Por certo, reputo indispensável que sejam exauridos os procedimentos clínicos disponíveis perante a unidade hospitalar na qual se encontre internado o recorrente para obviar a transfusão de sangue no âmbito do tratamento quimioterápico. Consoante se observa dos autos, existem alternativas outras que podem contribuir para evitar que a transfusão de sangue seja utilizada como primeiro e último recurso quando o sistema imunológico do paciente exige alguma espécie de intervenção imediata. Aparentemente, a direito à vida não se exaure somente na mera existência biológica, sendo certo que a regra constitucional da dignidade da pessoa humana deve ser ajustada ao aludido preceito fundamental para encontrar-se convivência que pacifique os interesses das partes. Resguardar o direito à vida implica, também, em preservar os valores morais, espirituais e psicológicos que se lhe agregam. Faço esta observação, porquanto a recepção de sangue pelo seguidor da corrente religiosa Testemunhas de Jeová o torna excluído do grupo social de seus pares e gera conflito de natureza familiar que acaba por tornar inaceitável a convivência entre seus integrantes. Cria-se, portanto, um ambiente no qual a pessoa é tida como religiosamente indigna e que não merece a necessária acolhida em seu meio, como descrito em doutrina. É necessário, portanto, que se encontre uma solução que sopese o direito à vida e à autodeterminação que, no caso em julgamento, abrange o direito do agravante de buscar a concretização de sua convicção religiosa, desde que se encontre em estado de lucidez que autorize concluir que sua recusa é legítima. Sim, porque não há regra legal alguma que ordene à pessoa natural a obrigação de submeter-se a tratamento clínico de qualquer natureza; a opção de tratar-se com especialista objetivando a cura ou o controle de determinada doença é ato voluntário de quem é dela portador, sendo certo que, atualmente, o recorrente encontra-se em alta hospitalar e não há preceito normativo algum que o obrigue a retornar ao tratamento quimioterápico se houver a perspectiva de ocorrer a transfusão sangüínea. É conveniente deixar claro que as Testemunhas de Jeová não se recusam a submeter a todo e qualquer outro tratamento clínico, desde que não envolva a aludida transfusão; dessa forma, tratando-se de pessoa que tem condições de discernir os efeitos da sua conduta, não se lhe pode obrigar a receber a transfusão, especialmente quando existem outras formas alternativas de tratamento clínico, como exposto na petição recursal. Outrossim, é importante enfatizar que o art. 10 da Lei nº 9.434/97 - que disciplina os transplantes de órgãos - somente autoriza intervenção desta natureza com o consentimento expresso do receptor inscrito em lista de espera e que tenha a necessária percepção dos riscos e excepcionalidade do tratamento. O tratamento dado pela lei em situação deste jaez - e que se aproxima do regramento existente no art. 15, CC - é similar à situação vivenciada pelo agravante, cuja crença contempla o dogma a ser vivido de forma concreta em sua religião. Fundado nestas considerações, dou provimento ao agravo para indeferir a tutela antecipada. O SR. DES. GERALDO AUGUSTO: VOTO Com a análise detida dos autos, no caso concreto e específico, tem-se que o agravante não é incapaz, não está inconsciente e, por isso mesmo, manifesta livremente, de forma até veemente através deste próprio agravo, a sua vontade livre em não se submeter a tratamento/procedimento que inclua transfusão de sangue, ainda que seja por via da quimioterapia. Acrescenta-se, também, que não se encontra em risco extremo de morte e que o tratamento a que se pretende seja ao agravante imposto, não se demonstra ser o único e exclusivo, havendo possibilidades concretas de procedimentos técnico-médicos alternativos, que não impliquem em transfusão de sangue. Finalmente, como bem observado no jurídico, preciso, minucioso e adequado voto do eminente Desembargador Relator, não se pode olvidar nessas circunstâncias, o valor da dignidade da pessoa humana, que envolve liberdade de consciência e de crença. Neste momento, por conseqüência, os requisitos indispensáveis da prova inequívoca e da verossimilhança não estão presentes e o demonstrado não sustenta a pretensão e o deferimento da tutela antecipada. Não fosse por isso, é evidente que a medida que deferiu o procedimento forçado de transfusão de sangue é evidentemente satisfativa e irreversível, quer por sua natureza processual, quer por sua concretização física e fática. Com tais razões, acompanha-se, integralmente, o entendimento contido no voto do eminente Desembargador Relator, com seus excelentes e incontestáveis argumentos para, também, dar provimento ao agravo e reformar o despacho agravado. A SRª. DESª. VANESSA VERDOLIM HUDSON ANDRADE: Sr. Presidente. Acuso recebimento de um amplo memorial que me foi levado ao gabinete pelo Agravante e o analisei detidamente. Acompanho o eminente Relator, ressaltando que o faço considerando as circunstâncias especiais que foram ressaltadas no seu voto e que foram encontradas no caso concreto. SÚMULA : REJEITARAM PRELIMINAR E DERAM PROVIMENTO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS AGRAVO Nº 1.0701.07.191519-6/001