Lukasiewicz, bivalência e verofuncionalidade

 

 

Samir Gorsky

 

 

 

Resumo:

 

É bem conhecida a questão da valoração de proposições sobre futuros contingentes tais como descreve Aristóteles no De Interpretatione IX, assim como também são bem conhecidas as lógicas n-valoradas de Lukasiewicz criadas para solucionar tal questão. Lukasiewicz trata dos futuros contingentes aristotélicos aplicando a noção de valores intermediários de verdade, tratamento este criticado por alguns autores. Contudo, um ponto falho em tais críticas é que o tratamento com valores intermediários devido a Lukasiewicz permite salvar a verofuncionalidade, perdida quando reduzimos tais lógicas a sistemas bivalorados.

 

1) A batalha naval

 

Uma lógica com três valores de verdade é sugerida por Aristóteles em sua obra De Interpretatione. Tal lógica pode ser entendida como uma tentativa de solucionar um certo problema com relação aos futuros contingentes. Tendo em mente que proposições devam corresponder a fatos, fica evidente que quando se trata de eventos situados no futuro tem-se uma alternativa real e uma potencial em direções contrárias. Daí, a afirmação e a negação correspondentes a essa proposição terão o mesmo caráter. Portanto, ambas poderão ser verdadeiras ou ambas poderão ser falsas, porém atualmente não podem ser nenhuma delas. Aristóteles argumenta que não podem valer ao mesmo tempo os seguintes casos: a) “haverá ou não haverá uma batalha naval amanhã” é, agora, indeterminado, e b) já é definitivamente verdadeiro ou definitivamente falso que haverá uma batalha naval amanhã.

O sentido para tal argumentação aristotélica é claro:

O que não está ainda determinado não pode ser conteúdo de averiguação. Aristóteles defende, da mesma forma, que embora nenhuma das partes da disjunção seja, agora, verdadeira ou falsa, o conjunto inteiro desta disjunção (haverá ou não haverá uma batalha naval amanhã) é desde já definitivamente verdadeiro.

   Se realmente existem proposições que não são nem verdadeiras nem falsas mas apenas potencialmente verdadeiras ou falsas, então isto significa que as lógicas verofuncionais, como as que são desenvolvidas por Lukasiewicz, não podem ser aplicadas, sem modificações, a campos nos quais tais proposições aparecem. Entre os pensadores medievais isto foi percebido, ao menos por Okham, que em seu comentário ao De Interpretatione tenta trabalhar sobre as conseqüências de se considerar proposições com valor "neutro" coexistindo com proposições que possuem valor de verdade determinado. Ele analisa tais conseqüências tendo como critério o que o próprio Aristóteles aceitaria ou rejeitaria em sua doutrina. O exemplo que Okham vai tomar vem da teologia, ou mais precisamente, da teoria dos três valores aplicada à doutrina da omnisciência divina. Dado que, o que é conhecido pode ser expresso por proposições verdadeiras, se existem coisas sobre as quais não é possível, no presente, construir uma proposição que seja verdadeira ou falsa, então pode parecer que existem certos tipos de questões para as quais Deus não pode, desde já, conhecer a sua resposta. Considere, por exemplo, as seguintes proposições:

1) "X acontecerá" e

2) "Deus sabe que X acontecerá". (Deus sabe que 1))

Onde X é contingente, ou seja, um evento futuro indeterminado.

Poderíamos em tal caso dizer que, do ponto de vista aristotélico, "se 2), então 1)"? Okham pensava que sim, pois o antecedente neste caso é falso, e o conseqüente é "neutro", se  considerarmos, portanto, proposições falsas implicando em proposições "neutras", assim como acontece quando proposições falsas implicam proposições verdadeiras, teremos o seguinte:

(com notação encontrada em Prior, 1962)  

C0½ = 1, assim como acontece em C01=1.

Isto significa que a implicação "se 2), então 1)" é verdadeira não importando que tipo de evento X possa ser. No caso em que 1) é uma proposição falsa o antecedente também o será, pois não se pode dizer que alguém sabe que algo vai acontecer se esse algo não irá acontecer. Neste caso, então, teremos C00=1. o único caso que nos resta considerar é quando a proposição 2) é verdadeira. Assim, Deus (sendo Deus) sabe que 1) e daí o antecedente é verdadeiro e desta forma C11=1 e a implicação é verdadeira novamente.

  

Okham também considera a implicação conversa "se 1), então 2)". Aqui novamente, se o antecedente for falso, o conseqüente também o será, e se verdadeiro, o conseqüente será verdadeiro, e em ambos os casos a implicação será verdadeira. Mas, se o antecedente for "neutro", o conseqüente será falso. Segundo Okham, a implicação, neste caso, não será verdadeira, consequentemente, “não vale ambos p e não-q” não implicará em todos os casos “ se p, então q”.

 

O problema de se construir uma lógica verofuncional que permita trabalhar com proposições “neutras” como as que encontramos nos trabalhos aristotélicos foi atacado em 1920 por Lukasiewicz de forma sistemática. Ele sugeriu que para N (negação), C (implicação), A (disjunção), K (conjunção) e E (equivalência) deveríamos considerar as seguintes matrizes.

 


N

 

1

0

½

½

0

1

  

C

1

½

0

1

1

½

0

½

1

1

½

0

1

1

1

 

A

1

½

0

1

1

1

1

½

1

½

½

0

1

½

0

 

 


K

1

½

0

1

1

½

0

½

½

½

0

0

0

0

0

 

E

1

½

0

1

1

½

1

½

½

1

½

0

1

½

0

 

 

 


A partir dessas matrizes podemos perceber que Kpq, ou seja, (p & q) é definido como NANpNq, ou seja,  (~(~p v ~q)) (daqui para frente usaremos a notação polonesa sem que a correspondente notação usual seja mencionada). Epq é definido como KCpqCqp; Apq não é, entretanto, definido como CNpq, mas é definido no cálculo “implicacional” como CCpqp. (No sistema de três valores, CNpq e CCpqp não são equivalentes). Podemos ainda definir de acordo com as matrizes acima Np como Cp0. Muitas leis do cálculo proposicional bivalorado deixam de valer de acordo com os significados dos conectivos dados pelas matrizes acima. Por exemplo, o segundo C-N-axioma de Lukasiewicz, CCNppp. Uma outra lei que também deixa de ser uma tese no sistema de três valores é a lei do terceiro excluído, ApNp. Com efeito, quando p = ½, ApNp = A½N½ = A ½ ½ = ½ . Neste ponto, existe uma divergência entre o sistema de Lukasiewicz e o que é sugerido no De interpretatione; para Aristóteles, a disjunção “haverá ou não haverá uma batalha naval amanhã” vale mesmo quando as suas partes, “haverá uma batalha naval amanhã” e sua negação, têm ambas valores indeterminados (“neutro”). Aristóteles afirma a validade da disjunção não por causa dos valores de verdade atribuídos a seus componentes (1, ½ ou 0), mas porque esses componentes são contraditórios. Existe, portanto, um elemento não verofuncional no tratamento destas proposições. Prior [3] considera que o aparecimento da não-verofuncionalidade em tais proposições é devido a uma confusão com relação à diferenciação das duas seguintes sentenças: i) “Haverá ou não haverá uma batalha naval amanhã” que é verdadeira de acordo com regras verofuncionais, somente quando pelo menos uma das duas componentes for verdadeira e ii) “Amanhã será o caso da seguinte sentença: ‘há ou não há uma batalha naval’”. A sentença ii) não é verofuncional dado que o conectivo de disjunção é governado pelo operador não-verofuncional ‘amanhã será o caso...’ (operador este que não aparece no sistema trivalorado de Lukasiewicz) enquanto que a sentença i) apesar de ser verofuncional não possui validade para todos os casos. (cf. [3] pp 230-250)

 

Há portanto um problema a se resolver: Como tratar as proposições contingentes (sobre o futuro) a partir de seus valores de verdade (inclusive o “neutro”) e ainda manter as características lógicas básicas como por exemplo a verofuncionalidade?

 

Para responder a essa questão analisaremos duas propostas diferentes. A primeira, que chamaremos de proposta B, crítica os sistemas trivalorados de Lukasiewicz e tenta uma solução a partir da temporalização da lógica. A segunda, que chamaremos de proposta C, defende que os sistemas trivalorados de Lukasiewicz não são supérfluos e que portanto não devem ser descartados ao se tratar de lógicas contendo proposições futuras e, em matéria contingente.

 

2) A proposta B

 

O princípio de bivalência desempenha um papel fundamental na tentativa de se refutar o determinismo lógico. Tal princípio diz simplesmente que só o discurso no qual reside o verdadeiro e o falso é um discurso veritativo (De Interpretatione, IV, 16b33-17a7). O determinismo (também chamado de necessitarismo lógico) é atribuído a Diodoro Crono e parte da idéia de que toda possibilidade deve se atualizar para que seja realmente uma possibilidade. Aristóteles não aceita tal caracterização do conceito de possibilidade e, portanto, admite que podem haver possibilidades que jamais serão atualizadas. Um outro modo de se entender o necessitarismo é através do problema que surge ao se tentar atribuir valores de verdade a proposições futuras em matéria contingente. De fato, se atribuirmos à frase “haverá uma batalha naval amanhã” o valor 1, então certamente a batalha virá a acontecer, porém se o valor de tal frase é 0, então certamente não acontecerá tal batalha de modo que, qualquer que seja seu valor de verdade (1 ou 0), o futuro estará fadado a acontecer em conformidade com este valor e portanto estará desde já necessariamente determinado. Porém, é extremamente antiituitivo uma tal posição que considere o futuro como algo já previamente determinado. Muitos interpretes consideram que Aristóteles não pode refutar o determinismo lógico sem limitar a validade irrestrita do princípio da bivalência.

A proposta B de resposta aos problemas causados pela consideração de proposições futuras e contigentes, é uma tentativa de resolver o impasse causado pela ameaça do determinismo porém sem abrir mão do princípio de bivalência irrestrito. A estratégia para tal feito é então a temporalização do princípio juntamente com a sua adequada compreensão. Percebe-se que para os defensores de tal proposta, não é preciso adicionar um terceiro valor de verdade.

Primeiramente consideremos a relação entre o princípio de bivalência e o determinismo lógico. “Crisipo e Epicuro admitiam a implicação do princípio de bivalência irrestrito ao necessitarismo universal. Crisipo aceitaria o princípio sem restrição e consequentemente, o determinismo, enquanto Epicuro, ao contrário, recusando o determinismo, teria negado a universalidade irrestrita do princípio de bivalência". ([1], p 173) A citação acima pode ser considerada em duas etapas ordenadas. Primeiro com relação à seguinte pergunta: Vale a implicação do princípio de bivalência irrestrito ao necessitarismo lógico? Segundo: Vale o princípio de bivalência irrestrito?

A maioria dos autores considerados no presente artigo estão de acordo com a resposta afirmativa à primeira questão, ou seja:

 

Princípio de bivalência irrestrito Þ Necessitarismo lógico

 

Mas diferem no que concerne à segunda questão discordando ou não sobre a validade do necessitarismo lógico.

Os interpretes de Aristóteles sustentam que o estagirita, em sua refutação do necessitarismo lógico exclui, com relação à bivalência, os enunciados singulares futuros em matéria contingente. Estes enunciados não seriam nem verdadeiros nem falsos e portanto o princípio de bivalência teria valor restrito. O preço, porém, de tal restrição seria elevado. Não havendo valores de verdade atribuído a tais proposições as suas negações também não poderiam ser valoradas e portanto ter-se-ia a restrição da verofuncionalidade como resultado.

Um outro problema que parece surgir com relação à restrição do princípio de bivalência é o da restrição do princípio do terceiro excluído. Ambos os problemas citados acima são considerados apenas aparentes para os defensores da proposta B.

“Penso que essa compreensão de Aristóteles está fundada num duplo erro. Por um lado, sobre uma incompreensão da formulação precisa, segundo Aristóteles, dos primeiros princípios lógico-ontológicos, em particular do princípio de bivalência. Por outro, (...) essa interpretação não logra apreender adequadamente a concepção aristotélica de valor-de-verdade (...)e, pois, da verdade simplesmente”. ([1], p. 175)    

Seguindo a idéias aristotélicas de que todo e qualquer enunciado deve ser verdadeiro segundo o modo como as coisas são (veritas sequitur esse rerum) e de que a mudança é logicamente possível (contrapondo os argumentos eleáticos) conclui-se que é preciso introduzir o tempo na fórmula dos primeiros princípios (uma vez que sem tempo não há mudança). Esses primeiros princípios devem ser entendidos como princípios do ser enquanto ser, aplicando-se a tudo o que é e, por conseqüência, também a seres mutáveis e, pois, temporais.

Consideremos então novamente o princípio da bivalência (um enunciado é veritativo se, e somente se, ele é verdadeiro ou falso). Os enunciados em sua forma elementar possuem um elemento temporal através de seu verbo que “co-significa” o tempo. Assim sendo, o verbo ser, flexionado como por exemplo na expressão “X é verdadeiro ou falso”, pode significar o tempo presente ou o presente omnitemporal. No caso em que essa flexão significa o presente omnitemporal, o ‘é’ pode então ser substituído por “é, foi e será” (casos esses em que os enunciados são tomados como necessariamente verdadeiros, por exemplo: “O homem é mortal”, “5 mais 7 é 12”, “4 é par”). Quando a flexão do verbo, tal como descrita acima, significa o tempo presente, a substituição não pode ser feita uma vez que não temos elementos suficientes para constatar a necessidade ou não do que está sendo dito. Para os defensores da proposta B, o princípio da bivalência deve ser tomado como irrestrito e portanto necessário. Dessa forma, a formulação exata do princípio de bivalência torna-se, por conseguinte, algo como “um enunciado é veritativo se, e somente se, ele é, foi ou/e será verdadeiro ou bem ele é, foi ou/e será falso”. (A conjunção “e” se aplica aos enunciados necessários e a disjunção “ou” aos contingentes e ambos, aconjunção e a disjunção, não serão aqui vero-funcionais). (cf. [1] p 177)

 

     

 

3) A proposta C

 

4) Surpresa!!! A proposta S                  



 

 

{Bibliografia}

 

           

 

 

[1] Balthazar Barbosa Filho (UFRGS/CNPq). Aristóteles e o princípio da Bivalência. Analytica, Vol. 9 n 1, 2005.

 

[2] J.-Y. Beziau (ed.). Carlos Caleiro, Walter Carnielli, Marcelo Coniglio e João Marcos. Two's Company: “The Humbug of Many Logical Values” In Logica Universalis pp 169-189. Birkhäuser Verlag Basel/Switzerland 2005.

 

            [3] Arthur Prior. Three-valued and Intuitionist Logic in Formal Logic. Claredon Press, Oxford 2a ed. 1962.

 

  

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