Prof. Simão Mathias

O ímã que tudo anima !

O texto abaixo, de autoria de Renata Ramalho, foi retirado da revista: , publicado no site: http://www2.uol.com.br/cienciahoje/perfis/mathias/mathias1.htm


    "Do fogo móvel da química; o ímã que tudo anima". O poema de Haroldo de Campos, dedicado ao químico Simão Mathias, é preciso: o cientista sempre foi um pólo aglutinador de pessoas e idéias, como um ímã que atrai todos a sua volta. Seja como professor de química e história da ciência, administrador ou fundador de diversas sociedades científicas, Mathias tornou-se uma referência em torno da qual as pessoas se reuniam, atraídas por sua receptividade e pela clareza de seus objetivos.

    Nascido em São Paulo, em 26 de agosto de 1908, Simão Mathias era uma pessoa calma, estruturada e extremamente séria. Nunca deixava de expressar sua opinião - mesmo que esta pudesse lhe trazer conseqüências desagradáveis. Certa vez, na época em que Adhemar de Barros era interventor em São Paulo, recebeu uma ligação da primeira dama, avisando que o sobrinho estava prestando vestibular e dizendo ao professor que providenciasse sua aprovação. Mathias não se intimidou: "Deus livre esse rapaz de cair qualquer coisa dele nas minhas mãos", respondeu, dando o telefonema por encerrado.

    Desde pequeno, estudar era uma das coisas que Mathias mais gostava de fazer. "Quando ele tinha uns 10 anos, um empregado de seu pai o encontrou lendo um livro de matemática e foi dizer ao patrão que aquele menino não era normal", conta Regina, filha de Simão Mathias. O químico falava francês e inglês e lia em alemão. "Meu pai era uma das pessoas mais cultas que conheci, mas não era vaidoso", lembra-se ela. "Isso era uma das coisas que eu mais admirava nele."

    Mathias foi extremamente importante para o desenvolvimento da Universidade de São Paulo (USP). Ingressou na faculdade no primeiro ano do curso de química, assim que a USP foi fundada, e dedicou sua vida a construir um projeto de universidade. A instituição de um "espírito universitário" foi para ele uma preocupação constante, manifesta em ações como a criação do laboratório de físico-química, a unificação dos departamentos de química da USP e a elaboração de uma proposta de reforma que integrasse os diversos institutos da universidade.

    Apaixonado pelo que fazia, Simão Mathias nunca parou de trabalhar. Estava constantemente em sua sala no Instituto de Química; de vez em quando, levava os netos consigo. Sempre desenvolvendo novos projetos, ele tinha o sonho de montar uma biblioteca com os livros que colecionava, entre eles, raridades dos séculos 18 e 19. No entanto, faleceu sem realizar o sonho. Em 1991, na véspera de seu aniversário de 83 anos, Mathias foi encontrado morto em sua cadeira, com um livro aberto sobre o peito.

Da matemática à química - Incerteza da profissão aos olhos dos pais frustra sonho do jovem Simão

    "Se eu fosse seguir o meu impulso, teria feito matemática." A declaração de Simão Mathias, em entrevista à revista Ciência Hoje em 1982, revela um sonho do menino que escondia livros debaixo da cama para que não fossem confiscados pelos pais. Mas o jovem não pôde realizar esse sonho. Seus pais, um casal de libaneses, achavam que ser matemático era como ser poeta - não era uma profissão definida.

Mathias e Paschoal Senise, seu colega no curso de química

 Pressionado por eles, ingressou na Escola Politécnica para estudar engenharia química, uma área próxima à matemática. Logo no início, porém, veio a crise de 29, e o pai perdeu tudo. Simão teve de parar de estudar e ir trabalhar, enquanto o irmão mais velho completava a faculdade. "A matriarca da família determinou que essa seria a prioridade e que os irmãos fariam assim um por um", conta Ana Maria Goldfarb, sua discípula. Simão foi vender geladeiras e passou a estudar odontologia à noite.

    Em 1932, os quatro moços da família Mathias se apresentaram para ir para o front na Revolução Constitucionalista. O pai não deixou. Foi ao quartel general e disse que permitiria que três deles fossem, mas um teria de ficar em São Paulo. "A vítima, naturalmente, fui eu", disse Simão em entrevista a Ricardo Pinto e Nádia Xavier e Souza. Seus colegas estavam todos partindo para as trincheiras. Apenas ele ficou, fazendo serviços para o quartel. Quando as tropas federais invadiram São Paulo, surgiu finalmente uma oportunidade de ser herói: Mathias estava defendendo o palácio do governo e ficou ali enquanto os outros corriam até que os irmãos o levassem embora à força. Seu pai, que era hipertenso, não agüentou os sustos e faleceu poucos dias antes do fim da revolução.

Simão Mathias com a filha Regina

    Já formado em odontologia e exercendo a profissão, Simão Mathias ingressou no curso de química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, na recém-criada Universidade de São Paulo. Após um doutorado ainda na USP, ele partiu para os Estados Unidos. Sem falar inglês, o brasileiro conheceu uma aluna de letras que, assim como ele, falava francês. Antes de voltar a São Paulo, se casaria com uma amiga dessa moça: a americana Ruth Ann. Já no Brasil, Mathias e Ruth teriam dois filhos, Gilberto e Regina. Ruth viria a falecer muito cedo, deixando Mathias com os filhos ainda adolescentes.

A descoberta da físico-química - Simão Mathias foi o primeiro doutor fformado pela USP

    Quando a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP anunciou que inauguraria em 1935 seu curso de química, uma turma de curiosos, na grande maioria já diplomados, correu às aulas. O curso seria dado pelo químico alemão Heinrich Rheinboldt, e todos queriam ver como um europeu apresentava essa ciência. Em pouco tempo, no entanto, a turma foi reduzida a quatro alunos: o professor optara por oferecer um curso a partir do básico, dando uma formação que não interessava a pessoas que buscavam algo próximo de uma especialização. Simão Mathias era um desses quatro. Formado em odontologia e trabalhando meio expediente no consultório, ele continuava apaixonado por matemática - entre um e outro paciente, lia textos do matemático francês Pierre de Fermat.

    A físico-química era a área mais próxima da matemática e, por isso, logo despertou o interesse do estudante. Essa não era especialidade de Rheinboldt nem de seu assistente, o também alemão Heinrich Hauptmann, responsável pelo ensino dessa disciplina. Mesmo assim, percebendo o interesse de seu discípulo, Rheinboldt encaminhou-o para um doutorado nessa área. Sem uma preparação adequada, Mathias foi argüido na defesa de tese pelo físico russo Gleb Wataghin. "Ficou patente que eu estava fazendo uma tese ligada ao campo da físico-química sem formação físico-química", disse ele em entrevista a Ricardo Pinto e Nádia Xavier e Souza.

O químico alemão Heinrich Rheinboldt (1891-1955),
mentor de Simão Mathias

    

    "Foi no período que estive nos Estados Unidos que formei minha base de conhecimentos físico-químicos", completa. Mathias conseguira uma bolsa da Fundação Rockefeller para estudar na Universidade de Wisconsin, em Madison. Com isso, sua formatura de doutoramento foi antecipada para janeiro de 1942. Primeiro doutor formado pela USP, ele recebeu seu diploma no Teatro Municipal, antes da formatura de graduandos.

    Nos Estados Unidos, Mathias pretendia estudar com o químico Linus Pauling. No entanto, Pauling estava envolvido no esforço de guerra, e ele foi encaminhado ao professor J. Willians, com quem fez trabalhos sobre altos polímeros. "Por coincidência, um dos novos polímeros que estava sendo investigado é o que hoje todo o mundo conhece como PVC", disse na mesma entrevista.

    De volta ao Brasil, Mathias foi incumbido pelo professor Rheinboldt de montar o laboratório de físico-química do departamento de química da FFCL. Sem dinheiro, ele teve de ir ao diretor da faculdade e ao reitor, Jorge Americano. Conseguiu com ele uma verba 20 vezes maior que a oferecida inicialmente pelo professor Rheinboldt, e o projeto se tornou uma realidade. O laboratório foi planejado e montado por Simão Mathias, que treinou pessoalmente um técnico de vidro para poder produzir o equipamento necessário. Na época, os cientistas produziam seus próprios aparelhos, especificamente para aquela pesquisa.

Um projeto de universidade - Mathias foi responsável pela unificaçção dos departamentos de química da USP

 

Simão Mathias e colegas no Instituto de Química da USP

    Simão Mathias não foi apenas um cientista de laboratório: construir uma universidade em que houvesse intercâmbio, na qual se fizesse presente um espírito universitário, era uma de suas maiores preocupações. Em 1960, o professor Hauptmann, diretor do departamento de química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, faleceu, deixando inacabado o processo de unificação dos departamentos de química de toda a universidade. Mathias assumiu então a direção do departamento e passou a liderar esse movimento.

A resistência encontrada por parte dos colegas dos outros departamentos não era pouca. Preferiam ficar cada um em sua unidade de origem, não queriam se misturar. O diretor, no entanto, logo encontraria um argumento convincente: uma doação de 500.000 dólares da Fundação Ford, vinculada ao processo de integração. Seduzidos pela perspectiva de laboratórios mais modernos e bem equipados, os diversos departamentos foram oficialmente reunidos em 1970, fundando o Instituto de Química.

Simão Mathias lendo em seu apartamento em São Paulo

No curso desse processo, no entanto, Mathias já estava envolvido em outra causa: a reforma universitária. Passou a participar ativamente das discussões sobre o tema, animado com a aproximação entre os departamentos de química. O professor chegou a apresentar um projeto de universidade integrada. No entanto, em 1969, antes que o projeto pudesse ser desenvolvido, a repressão aumentou e muitos cientistas foram cassados. Mathias se sentiu "moralmente cassado" e quis se aposentar. Os companheiros de trabalho o convenceram a ficar, mas ele recusou se candidatar à direção do Instituto de Química e ficou apenas à frente de seu departamento.

    Esse foi provavelmente um dos piores períodos da vida do químico. Seu filho caçula, Gilberto, participava dos movimentos de resistência à ditadura. Mathias abrigou-o junto com a namorada, embora discordasse das idéias de ambos. Quando a polícia política descobriu que Simão os acolhera, sua casa foi invadida, e ele, levado preso. Gilberto tinha deixado o local horas antes, avisado de que poderia ser encontrado. A experiência não impediu que Mathias continuasse socorrendo perseguidos políticos. Sem nunca ter participado de qualquer movimento, o professor deu apoio - inclusive financeiro - a diversos 'subversivos', apesar da grande repressão.

Contando a história da ciência - Mathias herdou de seu mentor Rheinbolldt o interesse pelo tema

Mathias durante a 25a Reunião Anual da SBPC, no Rio de Janeiro (1973)

Ao entrar na sala de aula do professor Rheinboldt, a primeira coisa que os alunos encontravam era o nome dos cientistas que iriam estudar naquele dia junto com suas datas de nascimento e morte escritas no quadro. A importância de conhecer a história daquilo que se estudava sempre foi ressaltada por Rheinboldt. Simão Mathias herdou dele o gosto pela história da ciência e passou a estudar e colecionar livros sobre o tema. No fim de sua carreira, Mathias pôde compartilhar seu interesse com estudantes: ao se aposentar compulsoriamente, ele foi chamado em 1974 por Eurípedes Simões de Paula, da Faculdade de Filosofia, a integrar a disciplina 'História da Ciência'. Sem deixar sua sala no bloco 4 do Instituto de Química, aceitou o convite.

    Simão preocupou-se em incentivar o estudo do desenvolvimento da ciência no Brasil. Acreditava que, embora recente, essa história era importante e mais próxima da realidade de seus colegas e orientandos. Fundou a Sociedade Brasileira de História da Ciência, publicou o livro Cem anos de química no Brasil e diversos artigos sobre a história da ciência e alguns de seus personagens. Mathias foi também um dos responsáveis pela participação das ciências humanas na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Secretário geral da sociedade, tornou-se presidente de honra ao deixar o cargo.

    Sendo responsável por reunir tantos cientistas e departamentos, Mathias sentia-se insatisfeito com a Associação Brasileira de Química (ABQ). Ele acreditava que a associação, fundada por engenheiros químicos, servia muito mais aos interesses da indústria que aos da ciência. Aproveitando os contatos proporcionados pelas reuniões da SBPC, o professor sugeriu a fundação de uma Sociedade Brasileira de Química (SBQ), que fosse mais voltada para a discussão dessa ciência. Embora não tenha deixado a ABQ, ele foi presidente da SBQ e ajudou a sociedade a se desenvolver para que alcançasse a representatividade que tem hoje. Em homenagem àquele que foi seu idealizador, a SBQ passou a oferecer a Medalha Simão Mathias.


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