O Uraguai
Nota Informativa
Pelo Tratado de Madri,
firmado entre Portugal e Espanha, em 1750, a Colônia dos Sete Povos
das Missões do Uruguai, pertencente à Espanha, deveria passar
a ser de Portugal, que, como contrapartida, cederia à Espanha sua
Colônia do Santíssimo Sacramento. Ocorreu que, no momento
de ser posta em prática esta cláusula do tratado, os índios
que habitavam os Sete Povos das Missões, orientados pelos jesuítas,
se negaram a passar para o domínio dos portugueses. Por isso, em
1752, se organizou uma expedição militar, integrada por portugueses
e espanhóis, para submeter jesuítas e índios. Sob
o comando de Gomes Freire de Andrade, conde de Bobadela, as tropas guerrearam
até 1756, sem o sucesso esperado.
O poema épico
O Uraguai descreve esse episódio, no qual o autor louva os
feitos de Gomes Freire de Andrade, num
elogio à política pombalina e em grave ataque aos jesuítas,
enquanto os índios recebem tratamento positivo do autor. Também
está implícito no poema o conflito entre a ordem racional
da Europa, representada pelos portugueses, espanhóis, jesuítas,
e a vida primitiva, sensorial, intuitiva do índio. Sob este último
aspecto, é curioso de se notar que o autor, embora tenha composto
o poema para ser um hino laudatório ao feito militar de portugueses
e espanhóis, na pessoa de Gomes Freire de Andrade, o que de fato
se lê nos cinco cantos da epopéia é uma louvação
ao índio do Novo Continente com suas virtudes naturais intrínsecas.
Na verdade, isto faz
com que devamos considerar O Uraguai não como uma
epopéia, mas, primeiramente, como
uma obra lírica, depois heróica, e por fim didática.
E, embora o poema pretenda realçar os feitos bélicos dos
colonizadores, o que mais é valorizado são os nativos, fazendo
com que o índio Cacambo tenha mais presença do que Catâneo
(Gomes Freire de Andrade) e a heroína Lindóia seja muito
bem apresentada como realização literária.
Na cena de sua morte,
de grande apelo, a adjetivação usada pelo autor - uma de
suas marcas características - nos dá um exemplo típico
de gradação. Devido a essa valorização do índio,
do espírito natural, o poema perde sua força épica,
que deveria ser centrada na guerra e não na paz, no jesuíta
mau e não no silvícola bom. Assim, embora o texto pretenda
inscrever-se entre os do gênero épico, ele aparece muito mais
próximo de uma composição de cenas da natureza, à
semelhança das descritas pelo poeta latino Virgílio.
Quanto à metrificação,
nos decassílabos de O Uraguai encontramos as mais variadas
formas nos cinco cantos que compõem o poema, sendo que se podem
registrar as alternâncias combinadas,
os inúmeros versos, cujos primeiros
hemistíquios se iniciam com sílabas
tônicas, muitas vezes com palavras proparoxítonas, obrigando
o deslocamento da pronúncia. Vale também assinalar
aqui a curiosa presença de
notas explicativas em prosa, ao longo do poema,
o que confere à obra caráter
peculiar. Ainda do ponto de vista da sua estrutura - na métrica,
na estrofação e na rima - O Uraguai afasta-se de Os
lusíadas, de Camões, embora em várias passagens Basílio
da Gama renda homenagens ao autor do épico português.
Contendo cinco cantos,
o poema se inicia pela reunião das tropas portuguesas
e espanholas sob o comando de Catâneo
(Gomes Freire de Andrade), que, primeiramente, em longa fala, descreve
a guerra, informando sobre os motivos históricos da obra. O canto
dois é dedicado à narrativa da batalha travada entre índios
e conquistadores brancos, cabendo a vitória aos portugueses e espanhóis.
No terceiro canto, surge a sombra de um chefe indígena, desaparecido
em combate, que aconselha o cacique Cacambo a incendiar o acampamento dos
brancos e a fugir. O cacique acata o conselho e depois de voltar a sua
aldeia encontra o jesuíta Balda que manda prendê-lo e o envenena.
Paralelamente, a feiticeira Tanajura faz Lindóia, mulher de Cacambo,
ter visões, e ela de modo pouco claro contempla nestes sonhos a
cidade de Lisboa, destruída pelo terremoto de 1755, e, a seguir,
reconstruída. Aqui, transparece o objetivo de Basílio da
Gama de
lembrar a figura do marquês
de Pombal. O canto quarto nos mostra o encontro dos índios para
a cerimônia de casamento de Lindóia com o índio Baldeta,
protegido do jesuíta Balda. A heroína Lindóia, entretanto,
vem a se suicidar, deixando-se picar por uma cobra, naquele trecho considerado
como o mais belo do poema. Neste mesmo momento, as tropas portuguesas e
espanholas já se achavam nas cercanias da aldeia e os índios
batem em retirada, abandonando a cidadela. Por fim, o quinto e último
canto descreve o templo religioso, os crimes cometidos pelos jesuítas
da Companhia de Jesus e a prisão dos religiosos.
Como observação
final, cabe mostrar que a linguagem empregada por Basílio da Gama
em seu O Uraguai - direta, sem artifícios - proporciona ao
leitor dos dias de hoje a facilidade e o prazer de lê-lo sem dificuldade,
uma vez que não se faz necessária a consulta a gramáticas
ou a obras de referência mitológicas e históricas,
ao contrário das que lhe foram contemporâneas e até
posteriores, cuja leitura, hoje, não apresenta a fluidez de O
Uraguai.
Miriam Leme
Geme ofendida a Natureza; e geme
Ai! Muito tarde, a crédula cidade.
Os olhos põe no chão a Igreja
irada
E desconhece, e desaprova, e vinga
O delito cruel e a mão bastarda.
Embebida na mágica pintura
Goza as imagens vãs e não
se atreve
Lindóia a perguntar. Vê destruída
A República infame, e bem vingada
A morte de Cacambo. E atenta e imóvel
Apascentava os olhos e o desejo,
E nem tudo entendia, quando a velha
Bateu co'a mão e fez tremer as
águas.
Cai a infame República por terra.
Aos pés do General as toscas armas
Já tem deposto o rude Americano,
Que reconhece as ordens e se humilha,
E a imagem do seu rei prostrado adora.
Serás lido, Uraguai. Cubra os meus
olhos
Embora um dia a escura noite eterna.
Tu vive e goza a luz serena e pura.
Entro pelo Uraguai: vejo a cultura
Das novas terras por engenho claro;
Mas chego ao Templo magnífico e
paro
Embebido nos rasgos da pintura.
Vejo erguer-se a República perjura
Sobre alicerces de um domínio avaro:
Vejo distintamente, se reparo,
De Caco usurpador a cova escura.
Sete povos, que os Bárbaros habitam
Naquela oriental vasta campina
Que o fértil Uraguai discorre e
banha.
Quem podia esperar que uns índios
rudes,
Sem disciplina, sem valor, sem armas,
Se atravessassem no caminho aos nossos,
E que lhes disputassem o terreno!
Sepé, que entra no meio, e diz:
Cacambo
Fez mais do que devia; e todos sabem
Que estas terras, que pisas, o céu
livres
Deu aos nossos avôs; nós
também livres
As recebemos dos antepassados.
Livres as hão de herdar os nossos
filhos.
Sepé, que o viu, tinha tomado a
lança
E atrás deitando a um tempo o corpo
e o braço
A despediu. Por entre o braço e
o corpo
Ao ligeiro espanhol o ferro passa:
Rompe, sem fazer dano, a terra dura
Mas de um golpe a Sepé na testa
e peito
Fere o governador, e as rédeas
corta
Ao cavalo feroz. Foge o cavalo,
E leva involuntário e ardendo em
ira
Por todo o campo a seu senhor; e ou fosse
Que regada de sangue aos pés cedia
A terra, ou que pusesse as mãos
em falso,
Rodou sobre si mesmo, e na caída
Lançou longe a Sepé. Rende-te,
ou morre,
Grita o governador; e o tape altivo,
Sem responder, encurva o arco, e a seta
Despede, e nela lhe prepara a morte.
Enganou-se esta vez. A seta um pouco
Declina, e açouta o rosto a leve
pluma.
Não quis deixar o vencimento incerto
Por mais tempo o espanhol, e arrebatado
Com a pistola lhe fez tiro aos peitos.
Era pequeno o espaço, e fez o tiro
No corpo desarmado estrago horrendo.
Viam-se dentro pelas rotas costas
Palpitar as entranhas. Quis três
vezes
Levantar-se do chão: caiu três
vezes,
E os olhos já nadando em fria morte
Lhe cobriu sombra escura e férreo
sono.
Morto o grande Sepé, já
não resistem
As tímidas esquadras. Não
conhece
Leis o temor. Debalde está diante,
E anima os seus o rápido Cacambo.
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Uraguai: a conquista
do Sul
1 - Depois da luta
2 - O poema
3 - O Herói
4 - A águia
e os corvos
5 - Antes da luta
6 - Discursos
7 - A luta
8 - O conflito amoroso
9 - O fim
1 - Depois da luta
Fumam ainda nas desertas praias
Lagos de sangue tépidos e impuros
Em que ondeiam cadáveres despidos,
Pasto de corvos. Dura inda nos vales
O rouco som da irada artilharia. (I, 1-5)
A abertura lembra a Ilíada.
Os cadáveres, pasto de corvos, são os mesmos. Diferente é
o tempo verbal, o presente em vez do passado (imperfeito em grego; perfeito,
em português). O presente é o tempo da ação
teatral. No teatro, o presente abrevia a distância entre a cena e
o espectador. Durante o espetáculo, somos todos testemunhas. Um
verbo no presente abre o poema de Basílio: "Fumam", e não
tem objeto. No verbo se desvelam os lagos de sangue ainda tépidos.
A cena, visual e em movimento, acolhe os recursos das artes temporais,
difíceis de serem reproduzidas nas artes plásticas, de acordo
com as contemporâneas ponderações de Lessing. Estamos,
na verdade, num passo em que os recursos do teatro, da pintura e da narrativa
confluem. Avizinhando-se das artes plásticas, Basílio apresenta
lagos rubros, sempre fumegantes, fora de limites cronológicos. Evocado
Homero, não se omitam as diferenças. O poeta grego lembra
que as almas dos heróis foram recolhidas ao reino dos mortos e que
devorados pelos cães foram os corpos. Basílio silencia o
destino metafísico dos que tombaram. Os corpos dos índios
são alimento de aves e nada mais. Na ótica primitiva dos
indígenas, o banquete antropofágico oferecia ao guerreiro
destino mais glorioso do que este. O corpo dos vencidos sobrevivia nos
músculos dos vencedores. O banquete dos corvos subtrai dignidade
à morte.Homero subordinou a campanha contra Tróia à
ira de Aquiles. A ira, colocada à testa do primeiro canto, dava
unidade ao poema e sentido à morte. Desligada de sentimentos que
a justifiquem, a morte em Basílio já não tem sentido.
A ira, um substantivo em Homero, agarrou-se no Uraguai como adjetivo
a uma máquina de matar: a "irada artilharia". A máquina destrói
como se agisse por si mesma, como se ninguém a comandasse. Os autores
da matança mantêm-se limpos dos malefícios da máquina,
obedientes a determinações que vêm de longe, de outro
continente. Os soberanos que mandaram evacuar à força o território
tampouco estão irados. Ordenam, como é de seu dever, que
se cumpra a lei, na elaboração da qual os diretamente interessados,
milhares, não foram consultados. Ninguém está irado,
ninguém na idade das luzes tem o direito de estar. Irada, só
a artilharia. Já no início da era industrial, a máquina
substitui o homem.
Os cinco versos inaugurais
cantam o fim de uma seqüência de matanças, não
só as narradas no poema, também as implícitas, os
massacres que ensangüentaram o solo que foi sendo gradativamente incorporado
ao território brasileiro numa luta que durou mais do que cento e
cinqüenta anos, a guerra predatória que foi desferida contra
as operosas e pacíficas tribos guaranis. As primeiras vítimas
foram os índios aldeados nos florescentes redutos de Guaíra.
Atacados por uma expedição paulista composta de novecentos
brancos e dois mil e duzentos mamelucos, o golpe atingiu em l629 os índios
da foz do Iguaçu. Esse exército de três mil e cem homens
passou meses no campo de operações para escravizar índios
cristianizados, ordeiros e operosos. Quantos perseguidos perderam a liberdade
ou a vida? Duzentos mil deve ser estimativa exagerada. Os menos alarmistas
admitem cinqüenta mil. É pouco? Dos doze mil que conseguiram
fugir da chacina, apenas um terço chegaram a um lugar menos exposto
à cobiça da exploração canavieira de São
Paulo. Em 1636, a bandeira de Antônio Raposo Tavares desceu até
o Jacuí. Em prolongada operação contra aldeias guaranis
criadas por jesuítas, o intrépido bandeirante retornou com
vinte mil escravos. A debandada dos índios para a outra margem do
Uruguai foi inevitável, ousando retornar às terras desertas,
passados cinqüenta anos. A derrota infligida pelos guaranis, finalmente
equipados com melhores armas, aos bandeirantes, Fernão Dias Pais
Leme e Jerônimo Pedroso, impuseram respeito aos paulistas e trouxeram
a paz necessária ao desenvolvimento da pecuária, da agricultura
e da indústria. l641, ano da derrota de Jerônimo Pedroso na
batalha de Moboré, foi o início de uma era de prosperidade
em que se construíram cidades e igrejas, eliminou-se a fome e intensificou-se
a alfabetização. Quando em l750 as coroas de Espanha e Portugal
permutam pelas Missões, Colônia do Sacramento, forte português
erguido em l680 à margem esquerda do Prata, inicia-se uma guerra
que durou intermitentemente mais de oitenta anos, entrando nos primeiros
anos do Brasil independente com a morte violenta de milhares de índios.
Os cinco primeiros
versos, articulando estrategicamente o centro em torno do qual se constrói
o poema, definem algumas das isotopias: o fogo ( "tépidos", "artilharia"),
a água ("praia", "lagos"), a terra ("vales"), o ar ("fumam"), o
som ("o rouco troar"). A arte de escrever constrói a unidade outrora
determinada por decisões que procediam do misterioso fundamento
do universo. A ordem se desloca do fundo incontrolável para a superfície
visível.
2 - O poema
Seguindo o exemplo de Homero, Basilio reduz a fonte inspiradora a um só ente, identificado com uma só palavra: Musa.
MUSA, honremos o Herói que o povo rude
Subjugou do Uraguai, e no seu sangue
Dos decretos reais lavou a afronta.
Ai tanto custas, ambição do império!
E Vós, por quem o Maranhão pendura
Rotas cadeias e grilhões pesados,
Herói e irmão de heróis, saudosa e triste
Se ao longe a vossa América vos lembra, Protegei os meus versos. (I, 6-14)
A caixa alta (MUSA), recurso
de escrita, marca a diferença. A Musa vinha, em Homero, ligada à
voz, ao saber oralmente conservado; a MUSA de Basílio, enfraquecidas
instâncias que superem o homem, valorizada a verificação,
volta-se à exploração documental, a fatos contemporâneos,
à arte de escrever. A hegemonia da escrita, a invasão da
prosa (nas notas) e a observação anunciam o fim da epopéia
e o princípio do romance, passagem que no XVIII se encontra em pleno
movimento. No Uraguai já não somos os enlevados ouvintes
do canto e ainda não somos os atentos leitores da prosa, estamos
no meio. O mesmo sentimento teremos quando nos detivermos em textos já
escritos em prosa mas com sonoridades e entusiasmos de epopéia a
exemplo do Iracema de José de Alencar. Prestigiada a arte
de escrever, o poeta completa os versos com notas de rodapé como
se tornou costume em trabalhos universitários. O rigor da escrita
não elide a paixão que move ódio sistemático
à Companhia de Jesus e aos jesuítas. A poesia, dirigida mais
ao coração do que à razão, põe agora
o leitor na indecisão entre os afetos e a correta interpretação
dos fatos. Num poema expressamente conduzido pelo ódio não
há como fugir ao compromisso de recorrer à informação
documental para resguardar posição menos comprometida.
Poucos anos separam
a publicação do poema (l769) do teatro dos acontecimentos
(l756). Os dois momentos diferenciam-se, entretanto, acentuadamente. A
campanha contra os jesuítas encetada pelo primeiro ministro de D.
José I, o Marquês de Pombal, está em meados dos anos
cinqüenta apenas no princípio, evoluindo para medidas drásticas.
Acusando-os de irregularidades na América, priva-os do direito de
ouvir confissões na corte (l757), de pregar na diocese de Lisboa
(1758) ;sob a alegação de envolvimento no atentado a D. José,
o marquês expulsa-os de Portugal e das colônias em 1759. O
poeta redige e publica o poema comprometido com o pombalismo no ardor dos
audaciosos golpes do onipotente ministro do monarca português, dando
crédito a quaisquer boatos que incriminem os adversários.
Dividida estava a opinião
européia com relação ao trabalho realizado nas Missões.
Contra os jesuítas pronunciara-se Voltaire no Candide (l559).
O herói, homônimo do livro, encontra no Paraguai os jesuítas
servidos ao almoço com pratos de ouro em ambiente ricamente ornado,
enquanto índios comem em tigelas de barro, sem abrigo contra os
raios do sol tropical. Nesse ambiente de aberrante diferenciação
classial, o chefe militar das reduções, um alemão,
ameaça de excomunhão e derrota as tropas espanholas. Contra
Voltaire levanta-se em l743 o veneziano Muratori que exalta o cristianismo
bem-sucedido das Missões, louvando a sociedade inaciana sem ricos
nem pobres, restauradora do comunismo das comunidades neo-testamentárias.
A discussão provocada por divergências desorientadoras sugeriu
em Roma ao poeta a idéia de redigir o poema. Não lhe faltava
o exemplo literário de Voltaire. Decidido a entrar no debate com
um poema épico, não lhe bastava o incentivo da epopéia
antiga, expressão da comunidade e dos deuses. O iluminismo já
não tolerava discursos que se diziam misteriosamente inspirados.
Em lugar da ajuda divina e da piedade, Basílio propõe as
suas próprias convicções e seu testemunho de americano.
Lembranças de procedimentos da narrativa épica, antiga e
moderna, são reelaboradas para satisfazer o gosto esclarecido dos
leitores setecentistas. O Uraguai, provocado por interesses europeus,
responde a exigências estéticas e ideológicas da Europa.
Temos a voz de um grupo contra outro num mundo conflituado em que a palavra
de Deus silenciou. No poema sobre conflitos de uma das regiões da
América, a voz de americanos soa abafada, reprimida. Basílio
diz América porque não lhe interessa distinguir unidades
políticas dentro dela. A América é de norte a sul
território europeu.
3 - O Herói
Absorvida a invocação,
somos convidados a honrar o Herói, e se levantam novas indecisões.
Os heróis que recebiam na antigüidade a consagração
da Musa agiam com o favor das divindades e da comunidade. Como coroar com
homenagens de herói um homem que está a serviço de
reis e de interesses europeus contra populações indefesas?
Os índios, "pasto de corvos", já não são silvícolas
gentios, são trabalhadores concentrados em núcleos urbanizados,
fiéis ao rei da Espanha e ao papa de Roma. Como podem as cortes
fazer acordo sem ao menos ouvir os súditos? Como ter por herói
o executor de lei arbitrária, que determina disparar com modernas
armas de fogo contra gente pacífica? A guerra total, disseminada
pelos conquistadores, não distinguia soldados de mulheres, crianças
e velhos. Os corvos se fartavam de corpos de ambos os sexos e de todas
as idades. Humanidade já não orna o herói fardado
e mecanizado dos conquistadores. Note-se o singular, Herói (com
maiúscula) contra o coletivo "povo rude". Num exército de
três mil e seiscentos homens há um só Herói,
o general, nenhum dos defensores do "povo rude" merece o mesmo epíteto.
O Herói de agora é a antítese dos heróis antigos,
amparo dos desprotegidos, escudo da pátria e dos valores consagrados.
O herói iluminista já não defende, subjuga. No trato
com o "povo rude" não argumenta, não recorre aos artifícios
da persuasão. A força bruta e muda segrega a palavra. Nova
é a semântica de herói, dócil instrumento dos
propósitos da monarquia absoluta, juiz do conveniente e do desprezível,
do bem e do mal. Matanças praticadas no interesse do estado isentam-se
da incriminação de más. Bom é o que favorece
quem está no poder. O maquiavelismo triunfou. A retórica
confirma o poder dos poderosos. Instrumento outrora da democracia, a retórica
circula como arte de bajular o tirano. Povo rude? Mesmo que se esqueça
a reserva contra o adjetivo rude para designar a outra cultura, como admiti-lo
para qualificar homens que cantam, tocam instrumentos, pintam, esculpem,
cultivam, criam, rezam e vivem em cidades? É a cor da pele que os
torna rudes? Fique o emprego de "rude" por conta dos compromissos políticos
e ideológicos de Basílio.
O poeta esclarece em
nota o que entende por "ambição de império", atribuindo
sede de "império" aos jesuítas que , na opinião dele,
nunca se opuseram ao cativeiro indígena, chegando a exercer sobre
os nativos autoridade absoluta. Outros são os fatos apurados pela
historiografia. Os seguidores de Loyola não combateram a escravidão
em bloco. Havia escravos até em colégios inacianos. E não
eram poucos. Protegiam, não obstante, os índios do ataque
predatório de agricultores e mineradores, enquanto recomendavam,
obedientes a fins práticos, a servidão africana. Embora dirigidos
por padres, escravos da ordem sacerdotal os índios não foram.
Mesmo assim, a instituição de castigos físicos reprimia
os guaranis à menoridade. Vê-se que o domínio teocrático
exercido pelos padres prolongou o respeito servil que os guaranis devotavam
à autoridade mágica dos pajés na era pré-européia.
Preferiam a vida nas cidades ao nomadismo nos campos e nas selvas. Decidiram
permanecer nas suas terras contra o decreto imperial, apesar do empenho
dos sacerdotes em convencê-los de reiniciar o trabalho em território
recomendado pelas autoridades. Quando os índios resolveram enfrentar
a repressão hispano- lusitana, contra a orientação
jesuítica, tomaram atitude adulta. Conquistaram a maturidade, que
não se obtém por doação. A obstinação
guaranítica mostrou que a disciplina religiosa não quebrou
a vontade ameríndia. O decreto de deportação fomentou
a rebeldia dos povos e dividiu o clero inaciano. Não admira que
sacerdotes tenham resolvido partilhar a sorte dos índios condenados
ao desterro, mesmo contra a decisão da Companhia que determinou
respeito ao decreto. O provincial do Paraguai, José de Barrameda,
condena a resistência, transferindo ao governador de Buenos Aires
a autoridade sobre as reduções.
Convertidos os jesuítas
em vilães, responsáveis pelo massacre dos povos, o " ilustríssimo
e excelentíssimo Gomes Freire de Andrade", governador do Rio de
Janeiro com autoridade sobre os territórios portugueses até
o Rio da Prata, comandante das tropas atacantes e executor do tratado de
Madri, podia luzir como libertador, sendo agraciado até, como prêmio
de seus feitos, com o título de conde de Bobadela.
4 - A águia e os corvos
Definido o propósito do poema, Basílio se põe a fazer considerações sobre a arte que deverá exaltar o herói. Fiel à preceptística que distribui o discurso literário em alto, médio e baixo, o poeta se compara a uma águia inexperiente atraída por altos vôos. A cartilha do estilo nobre obedecida no século XVIII impõe perfeição métrica à águia, que se opõe aos corvos. Enquanto estes reduzem a pasto os corpos dos indígenas, aquela eterniza o herói no canto. A ave dos altos vôos, rainha dos Andes, antecipa a montanha que o poeta implanta no planalto missioneiro. Aparentada com a antiga ave de Zeus, Basilio a elege para se erguer ao poder mais alto, o trono absoluto de D. José e os decretos de seu inflexível ministro. O verso branco eleito por Basílio recorda a epopéia virgiliana, subserviente ao absolutismo de Augusto. Desprestigiada recua a rima, lembrança da obscura Idade Média e das complicações barrocas. O verso branco responde melhor aos vôos serenos da águia, à afetividade amordaçada, à razão esclarecida, ao mando centralizado. Basílio, escolado na melhor tradição literária, não só executa os preceitos com perfeição como também se eleva a respeitável padrão de execução artística, o que não se alcança com subserviências. A arte, opondo-se a prejuízos ideológicos, redime o poema do insucesso, reservando-lhe um lugar privilegiado na produção literária setecentista.
5 - Antes da luta
O poema se desdobra em
uma Ilíada e uma
Odisséia em miniatura. Basílio
restabelece a ordem que Virgílio tinha invertido, ao antepor aos
cantos guerreiros o conflito amoroso. A primeira parte (dois cantos) tem
os passos já há muito freqüentados pela poesia épica:
apresentação do exército, banquetes, discursos.
O preceito da apresentação
do exército antes da luta é antigo como a Ilíada.
Entretanto, a contenção dos gregos, temerosos da desmedida
não distingue os cuidados presentes. Ao contrário da contenção
de Homero, que ilustra os chefes gregos através do olhar interessado
dos conselheiros do rei inimigo, no Uraguai é o próprio
comandante do exército português que se encarrega da apresentação
de seus comandados. Nada se diz dos combatentes do "rude povo". Mesmo dentro
das fileiras portuguesas, a honra favorece uns em detrimento de outros.
A artilharia, de invenção recente, não confere brilho
aos atiradores:
Vinha logo ( o peso da artilharia) de guardas
[rodeado
-Fonte de crimes- militar tesouro,
Por quem deixa no rego o curvo arado
O lavrador, que não conhece a glória;
E vendendo a vil preço o sangue e a vida
Move, e nem sabe porque move, a guerra.
Outro é o nível dos soldados da infantaria, herdeiros do prestígio de outras gerações:
Todo essa guerreira infantaria,
A flor da mocidade e da nobreza
Como ele azul e branco e ouro vestem.
As reformas pombalinas
não desalojaram os nobres de seus privilégios. Para o povo
(próprio ou alienígena) resta a morte vil, a morte que é
só morte, a morte que não deixa lembrança.
No banquete
oferecido pelo general em solo americano e agreste, circulam entre os convivas
(oficiais portugueses e espanhóis) "vinhos europeus nas taças
de ouro" , enquanto Matúsio, um Demódoco dos pampas, celebra
o anfitrião, sublinhando "altas empresas dignas de memória"
e "honras futuras", além de se demorar no lustro dos brasões.
Proferem-se também
discursos. Freire de Andrade historia as causas da guerra, técnica
com que se recuperam , desde Homero, fatos passados sem quebrar a unidade
de tempo. Reconstituamos fatos apenas aludidos pelo general. O orador introduz
o discurso com a repentina decisão dos reinos ibéricos de
pôr fim a um conflito ("cortar de golpe") iniciado antes do descobrimento
desta parte da América. Casamentos reais foram o motivo. A filha
de Felipe V da Espanha casa com o príncipe herdeiro de Portugal,
D. José I, rei desde l750. Em troca, D. João V de Portugal
dá em casamento ao imperador da Espanha, Fernando VI, a filha, Bárbara
de Bragança. A harmonia das famílias reais exigia a paz entre
os dois impérios. Arranjos matrimoniais decidem o futuro de comerciantes
do Prata e de agricultores do planalto rio-grandense sem consultar os habitantes
dessas regiões. O general omite prudentemente interesses americanos
no rol das causas do conflito. Surpreende-se, entretanto, com a inesperada
resistência indígena ao modernamente equipado exército
luso-espanhol : "Quem podia esperar ... disputassem o terreno?" A surpresa
antecipa o espanto que os amotinados de Canudos provocam no exército
brasileiro, mal inaugurado o regime republicano, sem alterar os motivos.
O Uraguai nos oferece a imagem do outro Brasil, ignorado, abandonado,
humilhado, combatido e destruído, o Brasil dos pobres. O general
comenta a falta de disciplina militar dos indígenas, fácil
de entender. Não havendo governo central para os Sete Povos, cada
povo cuidava da sua própria defesa. Os chefes indígenas enfrentaram
isolados o exército atacante. Se combatiam com armas rudimentares
era porque nunca estivera nos planos de Madri constituir nestes confins
exército respeitável. Faltava- lhes valor militar porque
décadas de trabalho pacífico os tinham tornado inábeis
para o manejo das armas. Mesmo assim fizeram recuar em 1754 o exército
espanhol comandado por Andonaegui, governador de Buenos Aires, auxiliados
por um inverno rigoroso, seguido de seca. A guerrilha que pôs em
fuga os demarcadores das novas fronteiras projetou nomes como Japaju, Paracatu
e Tiaraju. Os mesmos estrategistas retardaram o avanço de Almeida.
O general se refere ainda a outro obstáculo, a prolongada enchente
do rio Jacuí, que obrigou o exército português a acampar
pitorescamente em galhos de árvore. A descrição do
episódio, em Basílio, é notável:
As tendas levantei, primeiro aos troncos,
Depois aos altos ramos: pouco a pouco
Fomos tomar na região do vento
A habitação dos passarinhos. (I, 216-219)
Gomes Freire é reticente
quando recorda insucessos. Mesmo que tenha sofrido derrotas que o levaram
a solicitar reforços exagerados para invadir o território
inimigo, Basilio não lhe recusa o epíteto de invicto. Além
de forte tradição literária, compromissos ideológicos
levaram o autor a eleger o fim da operação militar (l756)
para ação do poema. Basilio esconde assim uma guerra secular
, de muitos episódios, em que vitórias indígenas adiaram
o aniquilamento inevitável.
O quadro da guerra
está configurado. Há o interesse das potências ibéricas
em fixar os limites acordados no tratado de Madri. Há o interesse
dos índios e de alguns jesuítas em preservar e desenvolver
o trabalho, longo e próspero. Chocam-se os interesses. Europeus
decidem sobre o destino da América. Morrem americanos, milhares,
pelas armas, pela miséria, pela fome. Os mortos recentes engrossam
o número dos que tombaram no momento em que se instalou a conquista,
já lá vão mais de cem anos. Combatam os americanos
nas fileiras dos conquistadores ou contra eles, o resultado é sempre
o mesmo, a venda do sangue e da vida a "vil preço". Quem indaga
o preço? Morte é morte. Envolvendo os indígenas em
conflitos que em nada os beneficiam, os europeus vão desocupando
o solo para implantar uma outra civilização, branca e limpa.
Nem a adoção da fé católica e a submissão
ao jugo estranho protegem os índios da morte. Embora os guaranis
professem a religião do papa e obedeçam às leis da
Espanha, os seus corpos bóiam em lagos vertidos pelas próprias
veias.
6 - Discursos
O primeiro canto é
todo introdutório, a ação militar começa no
segundo. Chegados à colina em que os índios se concentraram,
os chefes deliberam sobre o ataque. Enquanto estes se mostram hipocritamente
indecisos entre a violência e a brandura, apresentam-se dois emissários
para deliberar com os
atacantes, Sepé Tiaraju e Cacambo. O momento
é histórico; esta é a primeira vez que, em narrativa
brasileira, da massa anônima de indígenas se destacam indivíduos.
Vários fatores concorrem para o evento: a curiosidade européia
pela propalada república guarani (muitas vezes mencionada no poema),
a idealização do índio em andamento, o cuidado de
Basílio em assegurar a humanidade dos soldados portugueses. Cacambo
fala primeiro. O abismo que, desde o princípio, dividiu índios
e portugueses está transposto. Na carta de Caminha dois monólogos
se confrontam: o incompreensível monólogo dos índios
e o verboso monólogo dos portugueses, em que a mensagem ao rei expressava
antes os sonhos dos descobridores do que o desejo de conhecer a terra.
A denúncia do poeta de que os jesuítas instruem os índios
em guarani para impedir que se comuniquem com os europeus, fortalecendo-se
assim o domínio clerical, é injusta. Correta é a distância
que a denúncia aponta. Fazendo Cacambo falar, Basílio rompe
barreiras. Começou o diálogo que poderá estancar rios
de sangue, abertos por brutalidade cega e surda. O índio, falando
de si na língua do conquistador, se eleva à altura dele.
Em lugar das armas, a razão, o arrazoado, as palavras. Vislumbra-se
a possibilidade de que o entendimento, que ainda não acontece, venha
a ocorrer um dia. Basílio não exalta a guerra como Bento
Teixeira . Soa, na fala de Cacambo, a outra voz, até qui abafada.
O expediente não fere a tradição pré- cabralina
já que a fala era um dos recursos à disposição
de quem aspirava ao mando entre os guaranis. O diálogo impõe
a polifonia. Sem tentar reproduzir a verdade do índio, o discurso
posto em seus lábios se tornaria inverossímil, erro que Basílio
não comete. Cacambo alega não-vingadas mortes de parentes
e avós. Não exagera ao lembrar que os ossos deles cobrem
os vales. Declinando sabiamente do dever de vingar a morte dos seus, passa
ao ponto crucial, a distância das cortes européias, origem
do conflito. Por que apressar a execução de decretos em matéria
controversa, se, entrementes, até a posição das cortes
européias poderia alterar-se? A afirmação "o dilatar-se
a entrega/ Está em nossas mãos," vem como ajuizada declaração
de autonomia. Se, contra os desejos do índio, as decisões
estão lá, a execução está aqui. Por
que não protelá-la, quando assim a razão o determina?
Na verdade, a execução do tratado de l750 já fora
protelado por seis anos, em parte pela hostilidade dos índios, com
serias queixas de Lisboa e de Madri. O desenvolvimento dos acontecimentos
mostra o quanto teria sido benéfico retardá-lo ainda mais.
Não tardará o tratado de El Pardo (l761), que anulará
o de Madri, restaurando as antigas fronteiras. Qual foi o sentido do sangue
derramado? A irracionalidade domina governos que se querem iluminados.
Cacambo só deseja para os seus povos a "doce antiga paz". É
muito? No calor da argumentação, o índio se enreda
em contradições. Tem sentido perguntar por que a Espanha
não oferece Buenos Aires ou Corrientes? É estimar muito alto
o valor das Missões. Basílio está certo. Nada pode
ser mais importante para Cacambo do que o solo pátrio. O poeta cria,
nas incoerências, um conflito apreciável, agravado com a alegação
do índio de que, trocando Colônia pelas Missões, o
rei português faz mau negócio. Sem comércio fluvial
de porte e sem metais preciosos, as Missões não poderiam
ser comparáveis a Colônia, empório cobiçado
no rico comércio do Prata. O valor dos Sete Povos, depreciado e
exagerado na mesma fala, expõe os distúrbios que agitam o
índio. Basílio o humaniza no exercício da razão
e no vendaval dos afetos. Há um interesse recente de Portugal pelas
Missões que não entra nas considerações do
índio. Com a estrondosa explosão das jazidas auríferas
de Minas, os rebanhos das campinas do Sul passaram a ter renovada importância.
Faltavam proteínas na zona de mineração. Nessas circunstâncias,
os bois dos guaranis eram mais preciosos do que a ameaçada fortaleza
do Prata. Há outras sutilezas nas relações internacionais,
que escapam ao repertório do índio. Cacambo ignorava que
a presença de contrabandistas ingleses no Prata tornava o comércio
centrado em Colônia mais lucrativo para Londres do que para Lisboa.
Cacambo não sabe tudo, mas argumenta com tudo que sabe. No intuito
de convencê-los a recuar, Cacambo procura entender os conquistadores
e seus intrincados motivos. Como acertar, instáveis que são?
Percebeu que tanto jesuítas como índios flutuavam ao sabor
de razões forjadas além-mar em nome das quais a Europa criava
e destruía. O índio é suficientemente atilado para
denunciar no decreto erros lesivos a Portugal. Decretava-se que as terras
passassem a Portugal sem os índios que nelas viviam. Argumenta Cacambo:
o que interessam terras sem minério, não havendo quem as
cultive?
Ao construir o emaranhado
discurso de Cacambo, Basílio prova muito. Prova que o índio
é capaz de elevar-se à altura dos gabinetes da política
européia. O índio não discute o que políticos
atilados discutem? Cacambo é um chefe hábil na condução
das tropas e arguto negociador. Com esses predicados ele não cabe
na classe dos rudes. Declarando os índios escravos dos jesuítas,
Basílio se contradiz. A fala de Cacambo é de homem brioso
e livre. A personagem afronta os preconceitos do autor e os desarticula.
De quem Basílio era partidário e o que pensava não
importa. No discurso de Cacambo soa uma voz americana, inteligente e ousada.
Isso importa.
A admiração
do general ao brilho indígena não obsta a resposta da opressão:
Por mim fala o rei: ouve-me, atende,
E verás uma vez a verdade nua.
Personalidade própria
Freire de Andrade não tem, nem voz. Regimes absolutos não
permitem a emergência de vontades livres, condição
indispensável à construção de heróis.
Nas palavras que o general profere, fala o rei ausente, ou melhor, seu
ministro, Pombal. Os braços do general são os braços
do rei. "Sois livres, como eu sou". E é livre o homem cuja autoridade
se evidencia em repetir palavras e executar ordens do rei? Almeida, anulando-se
como indivíduo e se apresentando como braço do império,
não satisfaz as exigências mínimas de herói.
Não há como honrá-lo porque ele não existe.
Sendo portador de um decreto inalterável, a argumentação
de Cacambo bate em ouvidos surdos, em decisões previamente tomadas,
justas ou não. A intransigência frustra o diálogo.
A verdade nua, recusando razões, se desvenda cristalizada . Absoluta
é a verdade como absoluto é o rei. Em lugar de perguntas,
conjeturas, hipóteses, desfilam imperativos. A verdade nua, hostil
a infrações, se espande pelo vasto território do saber.
Sem abrir os olhos aos fatos, a verdade nua decreta que os selvagens vivem
"errantes e dispersos/ Sem companheiros, sem amigos." A fala do chefe índio,
preocupado em alcançar as razões do outro é bem mais
convincente do que a resposta do general sobre os índios. Um pouco
de atenção aos costumes indígenas lhe revelaria que
os vínculos sociais são bem mais fortes entre eles do que
os que o individualismo ocidental de setecentos consente. Entendendo a
vida dos silvícolas como um caótico "viver ao acaso", declara
a escravidão melhor do que essa liberdade. Em jogo está o
conceito de liberdade. Para o general, só a dele é legítima.
Melhor do que a liberdade indígena, a escravidão jesuítica;
melhor do que a escravidão jesuítica, a liberdade conferida
pelo rei. A subserviência ao absolutismo monárquico não
poderia ser maior. A subordinação proíbe autonomia
na fala e na vida. Benéfica considera-se a monarquia mesmo quando
escraviza. "Sereis livres -diz o general - ... mas deveis entregar-nos
estas terras". Não percebe o paradoxo? Como ser livre privado do
solo eleito para construir , plantar e procriar? Como ser livre banido
da terra em que dormem os antepassados, da terra em que se nasceu e sonhou?
"Não sendo (livres) aqui, (sereis livres) em outra parte." Que não
era fácil ser livre em outra parte, os índios o tinham provado.
Os que, obedientes ao decreto, atravessaram o Uruguai foram repelidos pelos
charruas, não interessados em dividir o território com refugiados.
"O sossego da Europa assim o pede." Definido está o centro hegemônico,
a Europa. Para a tranqüilidade da Europa, os índios devem abandonar
pátria e bens, devem expor-se a armas inimigas, devem cair na pobreza,
esperar a morte. Que interesses europeus são estes? A instável
aliança matrimonial de duas cortes, que, ao ser publicado o poema,
cedera espaço a outras obrigações. O general declara
o interesse pessoal de quatro cabeças coroadas "bem público"
e a preferência de milhares de súditos americanos cai na categoria
de "bem privado". As palavras tem o sentido que lhes conferem os detentores
do poder. "Vós sois rebeldes, se não obedeceis". Os índios
passaram da metonímia originária, que justapunha os povos,
à sinédoque, em que figuram como parte das monarquias ibéricas.
A metonímia do discurso indígena é repelido pela gramática
oficial. Vico dissera que a rudeza primitiva é cultivada pela poesia.
Gomes Freire entende que a sinédoque deve ser imposta pela voz dos
canhões.
Ante as ameaças
do general, Sepé não vê modo digno de reagir senão
entrar na luta desigual. O índio convoca inutilmente o princípio
de "humanidade" para neutralizar a violência do conflito. Humanidade
lhe significa ouvir o outro e respeitá-lo. Cacambo e Sepé
conquistam pelo discurso nobreza não apoiada em longas cadeias ancestrais
nem no poderio militar. Os argumentos e os valores por que lutam os colocam
numa eminência que deita sombra sobre o general e seu exército.
As armas podem aniquilar os falantes, mas não o discurso deles.
E caberá a este, através de muitos mártires, a bandeira
da vitória para o benefício de futuras gerações.
O absolutismo agoniza. O futuro está próximo. Pensadores
de proa ameaçam na velha Europa a estabilidade do monólogo.
No discurso de Gomes Freire ressoam os últimos ecos do que já
foi. O que será madruga na voz dos índios. Duas épocas
se confrontam nas campinas das Missões. Basílio provoca nos
discursos, que não reproduzem acontecimento histórico, tendências
contrárias: absolutismo-autonomia, tirania-liberdade, sinédoque-
metonímia, das quais teremos muitas versões literárias.
7 - A luta
Findos os discursos e declarada
a guerra, Gomes Freire despede os emissários. A troca de presentes
entre inimigos, ditado por antigo preceito literário, pretende sublinhar
a nobre generosidade do general, observada até no trato com bárbaros.
A ótica européia
não cessa quando se desencadeia a luta. Guerreiros índios,
pertencentes mais à natureza do que à civilização,
saem de grutas como que nascidos da terra. O poema, extremamente
econômico em alusões míticas, recorda nesse passo Cadmo,
o lendário fundador de Tebas, que, por ordem divina, semeia os dentes
do dragão abatido, donde nascem guerreiros ferozes, os spartoi.
O mito, banido da esclarecida Europa, admite-se nas longínquas e
incultas fronteiras da América, terra bárbara de monstros
e de magia. Que pode contra o exército modernamente equipado o disparo
de milhares de setas cem vezes repetido? O combate aos índios converte-se
na luta do presente civilizado contra o passado inculto. Uma derrota dos
paladinos da modernidade seria inconcebível. Não faltam nas
fileiras bárbaras soldados intrépidos como Baldetta, Tatu-Guaçu,
Caitutu, Sepé e Cacambo, todos eles com marcas individuantes. Personagens
cuidadosamente caraterizados tomam o lugar do anonimato da massa indígena
de Bento Teixeira. Destaca-se Baldetta, o protegido do padre Balda. Ambos
terão papel saliente na segunda parte do poema. O favorito do sacerdote
foge em seu belo cavalo Jardim, derramando setas pelo campo, amedrontado
com os tiros de pistola disparados pelo "nobre Gerardo". Escamosa pele
de jacaré protege o peito do valente Tatu-Guaçu contra os
projéteis disparados por armas de fogo, sendo detido a golpes de
espada. Sepé, personagem semi-histórica, conhecido de refregas
anteriores, faz proezas com suas frechas. Um tiro disparado pelo governador
de Montevidéu lhe expõe as entranhas em ferida mortal. Morto
o aplaudido guerreiro tape, os índios se dispersam, embalde animados
pelo "rápido Cacambo". Embora valentes os índios, não
se menciona nenhuma baixa no exército atacante. A máquina
de guerra das nações civilizadas é de indiscutível
superioridade. Inglória é a retirada indígena liderada
por Cacambo. Pouco importa quem lidera os tiros, Gerardo ou o governador
de Montevidéu. A submissão de todos ao poder central apaga
diferenças. Individualidades surgem entre os índios indômitos.
A luta deles, que se desdobra em duelos mais do que em ação
militar conjunta, lembra os muitos combates da Ilíada. Heróis
à antiga há entre guerreiros que não recebem o título
de heróis. Silenciada a ira das máquinas de guerra, é
na lição desses bárbaros que se deverá buscar
o modelo da dignidade humana. Se os conflitos armados ainda fossem o que
tinham sido antes da vinda de espanhóis e portugueses, a guerra
estaria no fim. As tropas se retirariam aos seus territórios para
chorar os seus mortos, preparar festins antropofágicos e planejar
outras campanhas. Os guaranis, entretanto, tinham aprendido em luta secular
com os brancos o exercício da guerra total. O fogo protege-lhes
a retirada. Observa o narrador que o fogo, usado pelos índios em
tempos de paz para regenerar pastagens, se transformara em arma para arruinar
fontes de abastecimento do exército atacante, prolongando técnica
usada desde o princípio da guerra. Ao fogo da artilharia os índios
respondem com o fogo dos incêndios. A natureza em chamas afronta
o ferro e o aço saído das forjas.
8 - O conflito amoroso
A magia, ausente em espaço
civilizado, freqüenta insistente o território indígena.
O sono de Cacambo é perturbado pela noturna sombra de Sepé
- outro recurso derivado de Homero - para incitar o chefe à luta.
Deplorável é a figura do companheiro morto, trazendo arruinadas
as insignias de guerreiro. A aparição noturna se desfaz em
tocha fumegante que parte num caminho de chamas. Atravessando um rio a
nado, Cacambo executa a ordem com a acostumada fricção de
pedaços de madeira , retornando à pátria com a alegria
do êxito. Atos ligados à sombra, à noite, à
morte sucedem as cenas de fogo e de luz. Num poema em que Deus e os deuses
estão ausentes, se a razão não dirige os atos, ingressa
a fortuna e é esta que provoca perdas notáveis antes da chegada
do exército, distante a vários dias de marcha; Cacambo levou
quatro dias para chegar à "doce pátria" por caminhos tortuosos.
Balda, que dirige a capital dos guaranis na ótica de Basílio
- a cidade se parece muito a São Miguel - lança o índio
triunfante numa "escura prisão" logo ao chegar. Insistindo na oposição
sombra- luz, o narrador opõe a "escura prisão" à "luz
do sol". Os atos obscuros do padre encobrem artimanhas sutis. Pretendendo
unir Lindóia, a jovem esposa de Cacambo, bela nos seus "verdes anos",
ao seu protegido Baldetta, Balda quis primeiro que o chefe perecesse na
guerra. A manobra lembra as escusas artimanhas do Davi bíblico para
se apossar de Batsebá, a bela esposa do general de seu exército
em guerra. Frustrada a funesta expectativa, o próprio Balda, que
recebe ironicamente os epítetos de "compassivo" e "santo" trata
de eliminar o entrave, administrando-lhe veneno. Esqueça-se o deliberado
desejo do narrador de denegrir a honra dos padres para justificar a extinção
da Companhia de Jesus. Interessam-nos as engrenagens da intriga. O regresso
de Cacambo abre a tragédia afetiva que envolve o jovem casal, desdobrando
o poema em duas partes: conflito bélico e conflito amoroso, sendo
que a primeira envolve a segunda, marcadas ambas com o selo da guerra.
O corpo insepulto de Cacambo evoca outro exemplo clássico, a
Antígona de Sófocles, tragédia em que o
benefício da sepultura é negado a um dos filhos de Édipo.
A falta de Balda é maior do que a de Creonte porque, enquanto o
novo chefe de Tebas trata impiamente o corpo do atacante , o guia espiritual
dos índios desonra um denodado defensor da pátria. As encobertas
maquinações não escapam a Lindóia, que, infausta,
só pensa em morrer. Os planos de morte são interrompidos
por Tanajura, que, por artes mágicas, mostra Lisboa destruída
por um terremoto seguido de incêndio, em l755, um ano antes do ataque
a São
Miguel. Se as ruínas de Lisboa nada têm a ver
com os sentimentos dos índios e as aflições de Lindóia,
evocá-las interessa a Basílio, visto que entre os escombros
anda Pombal, que com braço hercúleo erguerá nova cidade.
Lisboa aparece na visão como uma jovem rainha desolada que entre
edifícios despedaçados e em chamas é socorrida por
um "Espírito Constante", Gênio de Alcides", o " grande conde"
, o sábio ministro de José I. O notável estadista
que poderá criar também luminoso futuro para os povos das
Missões - esta é a associação - não
alivia as dores de Lindóia, ainda que Basilio diga que a destruição
da "infame República" dos guaranis vinga a morte de Cacambo. O narrador
aquieta a inconsolável Lindóia com um leve sono, enquanto
narra o avanço do exército português. O sono de Lindóia
obedece mais a exigências narrativas do que ao desejo da atormentada
viúva do herói assassinado.
Basilio inventa para
o ondulado planalto da região missioneira uma gigantesca montanha,
"que os infernos/ Co' o peso oprime e a testa altiva esconde/ Na região
que não perturba o vento." (IV, 23-25). Tem-se a impressão
de que o narrador deslocou parte da Cordilheira dos Andes para a margem
esquerda do Uruguai. Necessitava da elevação a fim de descortinar
no teatro da guerra cenas de paz campestre: longas campinas retalhadas
de trêmulos ribeiros, claras fontes, lagos cristalinos, leves asas
de lascivo vento, engraçados outeiros, fundos vales, arvoredos copados
e confusos, plantas que de mãos dadas tecem compridas ruas, vagaroso
gado, casas branquejando, altos templos. Paisagem esteriotipada de paradisiaca
paz. Quem sofre os horrores da guerra pode imaginar conforto maior? Que
o exército se delicie com a visão do paraíso, enquanto
o narrador onipotente retorna à cidade dos índios para contar
como se desenrolou a solenidade de casamento organizado por Balda com o
propósito de unir as vidas de Lindóia e Baldetta em afronta
ao luto imposto pelas normas da decência. As exigências da
unidade de tempo, a pressa do general em concluir a operação
militar e a intensidade dos conflitos de Lindóia são fatores
que levam o narrador a desrespeitar soberanamente preceitos que poderiam
interferir no desenvolvimento de seus projetos narrativos. O autoritarismo
do narrador segue o exemplo de sólidas soberanias. O narrador determinou
que Lindóia case em segundas núpcias durante as primeiras
horas de luto, e assim será. Para que o leitor seja convidado a
participar com suas dúvidas dos movimentos da ação,
a coroa dos reis deverá cair. Em lugar de solenidade fúnebre
em honra do grande Cacambo, Basílio nos impõe festa nupcial.
O narrador controla também a tópica das isotopias. Assistimos
ao combate com a água, vimos guerreiros nasceram da terra, testemunhamos
o efeito do fogo, trilhamos o caminho rumo à sombra, ingressamos
agora na festa das cores. As portas do templo são douradas, o índio
Cobé vem ornado com o amarelo forte do urucu. Penas vermelhas e
negras enfeitam Pindó. Alude-se ao papagaio verde e ao peixe prateado.
Penas azuis e cintas amarelas distinguem a antiga esquadra de Cacambo.
Baldetta se apresenta com lança vermelha e plumas amarelas, trazendo
ao ombro uma faixa verde. Tatu-Guaçu vem montado num cavalo negro
como a noite. Donzelas revestidas de penas brancas aguardam Lindóia.
O colorido condiz com o ambiente de núpcias. As cores transfiguram
os guerreiros. A página escrita produz efeitos de tela. O quadro
se completa com a figura cômica do irmão Patusca, gordo, avesso
à guerra, afeito ao repouso e às delícias da vida,
indulgente na moral, embora vocifere contra a degeneração
da espécie humana. A minuciosa descrição de um padre
cômico condiz com a exuberância das cores em dia de festa.
A cerimônia nupcial
não prossegue em virtude da ausência de Lindóia, a
noiva, cuja demora suscita preocupações. Os que indagam por
ela foram advertidos por Tanajura de que entrara no jardim "triste e chorosa".
Agora é a vez das plantas. Mencionam- se jasmins, rosas, branda
relva, flores mimosas e o fúnebre cipreste que apóia o corpo
de Lindóia, cingida pelos anéis de uma serpente. A arte de
Caitutu que com uma seta mata a cobra sem ferir o corpo da moça
não a livra da morte. O veneno do réptil já a imobilizara.
Uma recordação literária evoca Cleópatra, a
desditosa rainha do Nilo que com o efeito de uma picada ofídica
se livrou da humilhação que lhe preparava o romano vitorioso.
Não só em Antígona a morte é a porta
pela qual a mulher escapa da tirania dos homens. Jardim chama-se o cavalo
do noivo recusado, Baldetta. Houve intencionalidade de Basilio na escolha
do nome? Seja como for, Lindóia foge desse jardim e busca o "bosque
escuro e negro", o jardim da morte, o reino do esposo, embora isso não
seja consolo, porque lá, observa melancolicamente o poeta, não
há casamento ("se não ama"). ( III,198) Devem-se lembrar
as mulheres de certas nações ameríndias que se entregam
voluntariamente à morte para encontrar os maridos que já
partiram? O exército ibérico avança. O fogo ateado
pelos índios à cidade, não querendo entregá-la
ao inimigo, é a pira que livra da voracidade dos corvos os corpos
do casal que se amava.
9 - O fim
Cinzas cobrem nos confins
da América um mundo de ambições e de sonhos. Salva-se
do incêndio a abóbada da igreja em que está representado
o domínio universal da Companhia de Jesus. O escudo de Aquiles,
na Ilíada, inicia o expediente épico de situar o território
reduzido da guerra num amplo cenário, que abriga o universo das
atividades humanas. Embora Basilio, no século de Lessing, saiba
que a pena de ganso não reproduz as linhas do pincel, aceita o desafio
de reproduzir em verso o efeito visual do mural. Trata-se, na verdade,
de uma paródia de afrescos que tornaram famosos pintores italianos.
Em lugar eminente, reservado a Deus ou a Cristo na pintura piedosa, vê-se
entronada a Companhia de Jesus, ditando leis para o mundo inteiro. O mundo
comparece com vilas, cidades, províncias e reinos. A cena lembra
o diabo dos evangelhos ao mostrar o mundo a Cristo. Para caraterizar a
tirania exercida sobre os povos pelo exército de Santo Inácio
de Loyola , o pintor semeou o chão de cetros, coroas, tiaras e púrpuras.
A autoridade que a Companhia assumira sobre papas e reis está estampado
com dádivas corruptoras e ferros gotejantes de sangue. Basilio fere
as leis da verossimilhança ao imaginar numa igreja jesuítica
uma pintura que tão explicitamente incrimina a Companhia de Jesus.
O poema conclui com
a ação militar sobre um povoado vizinho para capturar padres
e índios fugitivos. Substituídos os protagonistas impostos
pelo partidarismo do autor, o poema poderia encerrar como um canto de liberdade,
doada por um exército que derruba opressores. Mas não é
isso que se ouve nos versos finais: "cai a infame República". (V,l35)
A hora da liberdade ainda não soou. O general vitorioso exige o
que os índios aprenderam desde os primeiros contatos com os europeus:
humilhação e obediência. Silenciadas as vozes livres
de Cacambo e de Sepé, ouve-se a adoração sacrílega
ao rei inimigo, imposta a rudes americanos prostrados. Estar prostrado
é a posição consentida ao americano; não se
tolera que exprima de pé os seus anseios. A subordinação
é lei.
Como julgar Basilio
do Gama? Dizer que imitou Camões e Tasso não basta. Em qualquer
texto soam lembranças mais ou menos longínquas. Não
é o papel da literatura convocar vozes donde quer que seja para
a orquestra universal? Comprometido com o colonizador, Basilio produziu
a epopéia da conquista. E isso é original. Almeida, o herói,
representa satisfatoriamente o conquistador humanitário. Dói-lhe
o sofrimento dos vencidos. Para o bem deles, preferiria que se entregassem
sem luta. Para esse comportamento não há modelo na antigüidade
ou entre os povos indígenas. Em Almeida, até a bondade é
subserviente à conquista. Se a brandura não opera a submissão,
fale o arsenal. Dever dos conquistados é ajoelhar-se, admirar, bem-dizer,
adorar. O contrário atrai a repressão.
Sobrevive em Basilio
o jesuitismo renunciado, o jesuitismo que desde o principio se opôs
à dominação brutal, embora comprometido com o colonialismo.
Não se reprove nos jesuítas o empenho de cristianizar; esta
era a sua tarefa. Confrontada a cultura européia com a cultura ameríndia,
trocas eram inevitáveis para o benefício de ambas. Se as
relações tivessem se mantido em intercâmbio livre,
não haveria o que recriminar. Questionável é a oferta
com inequívocas conotações de imposição.
Inaciana ou não, impositiva é a conquista, e Basilio soube
transformá-la em poema. Bastante poeta, logrou dar a palavra à
outra voz, à voz dos vencidos, contra compromissos políticos
assumidos. E essa voz, abafada ainda, deverá dominar um dia, a voz
da dignidade, a voz do homem livre. Observamos a gestação
dela no século XVIII, o século da primeira declaração
dos direitos humanos. Ao fazer os índios falar, Basilio traduz a
profundidade de seus anseios. Não houve no Brasil pré-colombiano
algo que lembre as monarquias do México e do Peru. Ao contrário
do que se passava nos Andes e no sudoeste da América do Norte, os
povos indígenas do Brasil mantiveram a autonomia tribal. No discurso
de Cacambo ressoam milênios de tradição oral e é
nessa, não em sinais exteriores (plumas e arcos), que emboca a cultura
do Brasil. O Uraguai com o seu jogo de luz, de cores, de plantas,
de fogo, de terra, de água, de ar e de sons recolhe do solo brasileiro
os elementos apropriados à construção de um mundo
múltiplo, livre de hegemonias.
Não se insista
na dívida de Basilio a Tasso. Identificados poucos versos que lembram
Jerusalém libertada, a diferença é palmar tanto
no tamanho como na própria concepção do poema. Ao
gosto maneirista, Tasso transforma a realidade em sonho. Nos cantos finais,
Jerusalém depondo identidade histórica se espiritualiza.
Espiritualizada, mais importa libertá-la de maléfica opressão
demoníaca do que tomá-la ao domínio árabe.
No Uraguai a fé é que é opressora e por liberdade
se entende o resultado da anulação da tirania da fé.
Acabou o sonho medieval da espiritualidade de Jerusalém ou de Roma.
Triunfa a monarquia maquiavélica, triunfa a razão (as razões
de estado) sobre a fé. A iluminação já não
vem dos padres, estes enganam; a iluminação tem outra fonte
agora: a razão. A largueza maneirista que se desdobra em muitos
meandros é abandonada em favor de proporções claras
como as do rococó e do neoclássico na arquitetura. O Uraguai
anuncia o despertar de sonhos (sejam os sonhadores Torquato Tasso ou Bento
Teixeira) para a realidade crua da América ferida, em que o troar
da artilharia escavou lagos de sangue.
Donaldo Schülerhttp://www.schulers.com/donaldo/barsil500/uraguai.htm
mailto:[email protected]
500 Anos de Brasil - Literatura da conquista