Falo de um dos tantos grupos
de rapazes mais ou menos poetas, que se reúnem sem nenhuma intenção
literária ou artística, às vezes apenas para, juntos,
cotizando-se, poderem atender às despesas de alojamento e alimentação.
Em resumo: montarem uma "república".
Lembro costumes
de mais de meio século atrás e mesmo na pretensão
de algo conhecer da mocidade de hoje, vou me remeter a um dos dicionários
da língua, para maior clareza do fato:
República...
conjunto de estudantes que vivem em comum na mesma casa; essa casa
(Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, edição
supervisionada por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira).
Estudantes...Sim,
o grupo, na sua expressão última que foi a República
do Império, pode-se dizer que teve o seu começo nessas camaradagens
obrigatórias entre estudantes que qualquer circunstância põe
em presença.
Aconteceu
que, ao sair da aula de Afonso Emílio Meyer (tio de Augusto Meyer,
cujo desaparecimento prematuro tanto nos abalou) sucedeu que, ao deixar
a aula do professor Meyer, à Praça da Matriz, numa atmosfera
de românticas coisas do passado: as velhas árvores, o mármore,
já encruado com os anos, de antigo conde (que hoje não está
mais ali); a fachada colonial (vetusta) da igreja matriz, que ainda não
fora derrubada; sucedeu que, finda a aula,
nos encontramos, Hermínio Freitas,
João Leopoldino Santana e eu.
Foi isso ao se
iniciar o ano letivo de 1912. Com exceção de Hermínio,
que morava aqui com a família, Santana e eu acabávamos de
chegar.
Donde?
Isso tem importância.
Porque, como se as feiticeiras de Macbeth já estivessem tecendo,
sem nós o sabermos, os destinos e os sonhos mais tarde vividos na
República do Império, eu já me achava ligado a outro
futuro membro (e membro também fundador, como se vai ver) dum albergue,
que, não existindo ainda como realidade tangível, tinha já
a sua existência garantida como pressentimento e como idéia,
- a famigerada Idéia Platônica, que em preservação
e teimosia, vale pelo indivíduo mais persistente. Esse companheiro
celestial era Celestino
Moura Prunes, - que, com seu passamento
agora, me levou a liberar esta página, em cuja singeleza a Morte,
ao perpassar, põe o seu estremecimento.
A circunstância
importante é que estes quatro rapazes (adolescentes de menos de
dezessete anos) provínhamos da Fronteira: Celestino Prunes e Hermínio
Freitas de Alegrete, Santana de Uruguaiana, eu de Quaraí.
A região é
um triângulo. Como o triângulo mineiro, situado no extremo
oeste do Estado. Mesma língua, mesma alimentação,
mesmo clima. O clima não é de menosprezar, quanto mais no
que toca ao vento frio do sudoeste - o minuano - que enche de frieiras
todos os dedos do corpo e, em compensação e por misteriosa
alquimia, enrijece a gente contra os demais frios...
....
Um passo mais e estará
estruturado o grupo definitivo. Isso se dará com a chegada de Alceu
Wamosy.
....
A República do Império
deu territorialidade ao grupo, se posso usar de termo tão conpíscuo
num caso de jovens que não almejavam outro mundo senão o
dos sonhos temperados de blague. Eles como a geração que
os precedeu, possuíam já um espaço privativo: A Praça
da Harmonia, registrada para sempre nos versos de Athos Damasceno ferreira,
como nos livros dum tabelionato, e que Theodomiro Tostes, com a graça
habitual, e um fundo de ironia latente, foi levado a dar-lhe uma denominação
intrisecamente sem graça: a academia literária daquele
tempo.
Sem tais academias esses sodalícios,
como se diz muito por aqui - têm uma lua num rio, ao alcance dos
seus membros, a comparação é válida. E ainda
precisaria de um parapeito dando para a água,a água balançar,
num marulho leve, a cusparada de luz, rutilhante de tão alvadia,
que a lua lá de cima, com uma boca de nojo, despejava contra os
pobres viventes.
Certa noite nós, debruçados
no parapeito a contemplar a lua, não ficávamos muito longe
daqueles cães enfeitiçados pelo leite do astro, uivando,
desesperada e improdutivamente. Ainda tenho na lembrança a impressão
que o quadro, em que eu mesmo tomava parte, me causou e que exprimi numa
espécie de eco das vozes dos outros cães:
Ululávamos versos
brancos ao luar...
E agora que já
não existe mais a praça, nem seu parapeito sobre a água.
Agora que o rio se retraiu pra mais longe, por obra dum aterro e dum cais
onde apenas encostam grandes navios para o Progresso, e que a lua mesmo
parece ter-se retraído igualmente para o fundo do céu, tão
raro é o seu aparecimento por detrás dum casario, fechado
que nem prisão. Agora, em que eu, às vezes, me pergunto:
e Hermínio, Brutus, Bellanca, por onde andarão? agora que
Celestino, Santana, Wamosy, De Souza seguiram o mesmo caminho, desaparecendo
para sempre, - aquele
flagrante de seres humanos ladrando à
Lua, às vistas dum rio - que também fugia! - é pouco
eu sei.
Mas foi tudo
que ficou.
Há de
se ver que formávamos um grupo de literatos. E se nimguém
o há de ver com os dados que forneço, posso assegurar que
nós o víamos. Mais: e que não víamos outra
coisa.
Entretanto, éramos
uns literatos improdutivos. Ou melhor: autoprodutivos.
Em matéria
de arte e literatura, realizamos (como certamente terá acontecido
com os poetas jovens de todas as épocas e todos os lugares) realizamos
o ideal autárquico perfeito: éramos os fabricantes e os consumidores.