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Jayme Caetano Braun

        O Payador em 14 Datas
        Jayme Caetano Braun deixa uma extensa obra em livros e discos:
        1924 – Jayme Caetano Braun nasce em Timbaúva, antigo 3º Distrito de São Luiz Gonzaga, hoje município de Bossoroca. O pai era filho de imigrantes alemães e a mãe, uma chirua bugra.
        1943 – Começa a publicar poemas no jornal A Notícia, de São Luiz Gonzaga.
        1945 – Começa a atuar na política, participando em palanques de comício como payador. O poema O Petiço de São Borja, publicado em revistas e jornais do país, fala de Getúlio Vargas. Participa da campanha de Ruy Ramos, com o poema O Mouro do Alegrete, como era conhecido. Nos anos seguintes, participa das campanhas de Leonel Brizola, João Goulart e Egidio Michaelsen.
        1948 – Dirige o programa radiofônico Galpão de Estância, em São Luiz Gonzaga.
        1954 – Publica Galpão da Estância, o primeiro livro.
        1958 – Sai a primeira edição da coletânea De Fogão em Fogão.
        1965 – Lança o livro Potreiro de Guaxos.
        1966 – Publica três livros: Bota de Garrão, Brasil Grande do Sul e Passagens Perdidas.
        1973 – Participa do programa semanal Brasil Grande do Sul, na Rádio Guaíba, com produção de Flávio Alcaraz Gomes. O programa ficou no ar por 15 anos.
        1990 – Lança o livro Payador e Troveiro.
        1993 – Lança o disco Paisagens Perdidas, com sucessos como Mangueira de Pedra, Tio Anastácio, Cordeiro Guacho e Payada da Primavera.
        1993 – Sai o disco Poemas Gaúchos, com sucessos como Payada da Saudade, Piazedo, Remorsos de Castrador, Cemitério de Campanha e Galo de Rinha.
        1996 – Publica a antologia poética 50 Anos de Poesia.
        1999 – Jayme Caetano Braun morre em Porto Alegre.
 

        Senhor da linguagem e do vento
        Ele foi alambrador, tropeiro e curandeiro. Um artista missioneiro que fez da sua região o seu mundo. Da sua aldeia, uma pátria. Aos amigos, Jayme Caetano Braun costumava dizer que não era um poeta, apenas um payador. Nascido em 1924 em Timbaúva, distrito de São Luiz Gonzaga (hoje Bossoroca), o autor dos clássicos Bochincho, Galpão de Estância, Tio Anastácio e Galo de Rinha morreu às 5h30min de ontem, na Clínica São José, em Porto Alegre, vítima de complicações cardiovasculares. Morreu depois de receber quatro pontes de safena, enfrentar problemas de depressão e tentar o suicídio. Seu corpo foi velado no Palácio Piratini.
        Há tempos Jayme Caetano Braun não recebia os amigos. Perdera o gosto pela vida. Padrinho de muitos artistas, chamava-os de filhos, contava causos, fumava um charuto, fazia um mate, abria um sorriso. Adorava reculutar lembranças. Dizia o que tinha vontade de dizer, gostassem ou não. Lia jornais de diferentes lugares do mundo. Era um especialista em remédios caseiros – afirmava que todo missioneiro tem a obrigação de ser um curador.
        Sonhava fazer Medicina. Sem completar o Ensino Médio, acabou se tornando um autodidata. Sua imensa cultura foi apurada no período em que ocupou o cargo de diretor da Biblioteca Pública do Estado, entre 1959 e 1963. Especializou-se em décimas (poemas com estrofes de 10 versos). Os poemas, que começou a escrever piazito, por influência da família, foram publicados em vários livros. O primeiro, Galpão de Estância (1954), trazia versos de temática campeira, quase sempre dedicados a objetos do universo do homem da Campanha: relhos, chilenas, laços, carretas. Jayme foi um dos fundadores da Estância da Poesia Crioula, grupo de poetas tradicionalistas que se reuniu no final dos anos 50. Sua memória era uma arca sem fundo, que ele jamais se importou em trazer para a cidade.
        – Seus livros nada mais são do que instantâneos de algumas notas que o autor conservou – disse a seu respeito o poeta Balbino Marques da Rocha. – O mais se perdeu e se perderá nas noites de galpão.
        Jayme Caetano Braun era um artista polêmico, radical ao defender seus pontos de vista. Chegava a criticar quem ousasse tratar de um tema por ele já abordado. A tudo, porém, respondia com versos. Comparado a um corvo, numa referência a seu gosto por roupas escuras, respondeu certa vez: “O corvo é uma ave higiênica, que limpa todos os campos”.
        Escrevia sobre a cena campeira. Descrevia o Rio Uruguai, o domador de cavalos, o fogão da campanha, a religiosidade do gaúcho. Apaixonado pela cultura platina, costumava dizer:
        – Isso aqui é um pampa só.
        Para ele, brasileiros, uruguaios e argentinos são “piedras del mismo camino / aguas del mismo caudal”, como escreveu, em espanhol, em sua Milonga de Tres Banderas. Em seu panteão, Osório reunia-se a Artigas e San Martín. O gaudério anônimo de Bochincho era irmão de Martín Fierro, do Viejo Pancho, de Santos Vega e de Blau Nunes.
        Radialista, sua obra se espalhou pelo Brasil afora. Minas Gerais, Ceará, Pernambuco e Goiás são alguns dos lugares que têm CTGs com seu nome. Lançou discos e foi gravado por diferentes intérpretes nativistas. Uma coisa é certa: Jayme Caetano Braun foi inimitável. Sua arte era única, ninguém como ele fazia uma declamação improvisada com uma milongueada de violão.
        O destino fez com que morresse um dia antes de seu novo CD ser lançado. Hoje, como previsto, Êxitos 1, gravado há um ano e meio, chega à gravadora Usa Discos e segunda-feira, às lojas. O lançamento havia sido adiado porque Jayme queria estar em melhores condições de saúde.
        A voz do payador está aprisionada para sempre nos registros de estúdio. Para que sua emoção vibre, porém, basta que um declamador, em noite de lua e violão, quebre o silêncio com versos como “A um bochincho – certa feita, / fui chegando – de curioso, / que o vício – é que nem sarnoso, / nunca pára – nem se ajeita”. A partir desse momento, o poema correrá como um olho d’água. Afinal – como ele garantia –, para escutar payadores, até o silêncio se cala.
       Marcelo Machado, jornal Zero Hora.
 

        Jayme Caetano Braun morreu ontem aos 75 anos
        Cuerpo presente, alma ausente. Yo quiero aqui los hombres de a caballo, como Lorca diante do corpo inanimado de Ignacio Sanchez Mejía, buscando la salida para este capitán atado por la muerte.
        Jayme Caetano Braun chegou deitado como dormido em seu esquife de dura madeira campeira. Pilchado, como convém aos que se vão de tropa estrada afora, tinha um lenço maragato atado no pescoço. Ele, o Chimango, que herdara o seu lenço branco do ídolo, o coronel Laurindo Ramos, na Bossoroca. Falei com dona Bréa, a companheira terna, a indiazinha que lhe devolvera o gosto das Missões.
        – Na hora não achei o lenço branco, nem a boina branca de que ele tanto gostava.
        Tirei o lenço branco dos Fagundes do meu pescoço e ofereci o velho gonfalão para que acompanhasse o poeta na última tropeada. Com a ajuda dos companheiros, trocamos o lenço colorado (que ele usou, por companheirismo, algumas vezes nos últimos tempos) pelo lenço branco, que sempre foi dele, que lhe deu o apelido carinhoso entre os amigos: Chimango. Mas aí chegou o governador Olívio Dutra, seu amigo e seu conterrâneo dos tempos em que a Bossoroca pertencia a São Luiz Gonzaga, e alguém achou que o poeta podia levar os dois lenços, que ele cantou em Branco e Colorado: “Até Deus Nosso Senhor, que usou bota, espora e mango, lhes garanto que é Chimango – se Maragato não for!”.
        Jayme Caetano Braun, o mais gauchesco dos nossos poetas, o missioneiro de espinha dura, mestre da payada arrocinada, senhor da linguagem e do vento, o último grande de uma progênie de grandes, partiu. O Rio Grande do Sul ficou menos grande.
        Os nomes mais famosos do gauchismo, da cultura em geral, estavam lá, hieráticos. A gente tem a impressão de que algum Deus campeiro esculpe em cedro das Missões cada um dos que vão caindo, para compor uma galeria sagrada para o altar do pago. Aqueles homens e mulheres que choravam em silêncio no Salão Negrinho do Pastoreio (o espaço mais nobre do palácio do governo gaúcho homenageia um negrinho humilde, escravo dos nossos campos, que coisa, hein, Chimango?) pareciam ter essa consciência. Eram, mais que admiradores do poeta, devotos de uma crença xucra, meio santa, meio pagã. Davidson Labrea, a meu pedido, comandou um Pai Nosso, ocasião em que todos se deram as mãos. A emoção era tão espessa que podia ser cortada a faca! Ary Fernandes Gonçalves (por quem ele perguntou na última entrevista que me concedeu) declamou Tio Anastácio, e tinha gente que chorava de fazer barro. Declamadores e declamadoras iam deixando sua derradeira homenagem ao poeta querido. Os mestres de truco do Pitoco guardaram uma flor de espadas no caixão do mestre-companheiro que partia.
        Quando o caixão foi retirado do palácio, para a última viagem, a temperatura baixara perigosamente e um minuano uivava em volta, como um cachorro louco. Fazia frio, de repente, e o céu estava chumbado. Deus Nosso Senhor tinha decretado luto para o Rio Grande inteiro.
        Na viatura da funerária que transportava o grande morto, havia um decalco dizendo: “Ah, eu sou gaúcho, tchê!”. Na hora, parecia mais um lamento.
      Antônio Augusto Fagundes, jornal Zero Hora.
 

        A LEMBRANÇA DO PAYADOR
        “Nós todos nos sentimos órfãos. Jayme Caetno Braun foi um manancial, cacimba da mais pura manifestação de nossa cultura.” Olívio Dutra, governador do Estado
“O mestre dos payadores. Jayme é o símbolo máximo do gauchismo. Perdemos o convívio, mas o Jayme se eterniza.” Eraci Rocha, presidente do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF)
        “Jayme Caetano Braun sempre guardava para arremate um desfecho inusitado. Ele participava do milagre da criação.” João Sampaio, compositor
“ Só posso dizer do enorme vazio que ele deixa. O grande divulgador da payada parte sem ter tido um continuador.” Barbosa Lessa, escritor
        “O Jayme se constitui no panorama da literatura gaúcha como um dos mais expressivos da temática nativa. Ele englobava os grandes problemas universais e não se restringia a assuntos galponeiros. O Jayme, embora se dissesse um nativista, era um grande versejador. É um dom divino colocar o tema da terra nos questionamentos universais.” Paixão Côrtes, folclorista
        “Quem partiu agora não foi apenas um homem, mas uma bandeira de cultura. Jayme foi um homem ímpar. Me sinto honrado de ter sido contemporâneo dele. Estou sozinho. Como se tivesse perdido uma das coisas mais importantes da minha vida.” Lúcio Yanel, músico
        “Era o grande timoneiro do movimento gaúcho. O que tinha que dizer, ele dizia.” Telmo Tartarotti, diretor da Rádio Liberdade FM
        “Eu choro o homem. O que me deixa mais triste é que o meio artístico não produz mais homens como ele. Era um poeta destemido, corajoso. Ele reivindicava com a poesia. O Jayme Caetano Braun é como o Chico Buarque: me diz uma música ruim do Chico Buarque. O trabalho dele é pautado pela linguagem poética, ele nunca apelou. Até nas brigas de baile tem riqueza. É uma lenda. Não vai ter outro. Era um poeta cidadão, agia através da arte. Era um homem isento, independente.” João de Almeida Neto, músico
        “O Jayme Caetano Braun não está na Academia Brasileira de Letras porque o regionalismo gaúcho não é aceito em todo o Brasil, como é o regionalismo do centro do país. Ele foi muito grande. Sabia dizer as coisas como todo gaúcho que conhece as lidas do campo.” Alex Hohemberger, diretor da Gravadora USA Discos
        “Quando comecei no tradicionalismo, na invernada artística do CTG 35, nas apresentações eu declamava o Bochincho. Desde cedo aprendi a ler os livros do Jayme. Todo gaúcho o tem como o maior poeta do Estado.” Renato Borghetti, acordeonista
        “O maior poeta que esse Estado teve, ao lado de Aureliano de Figueiredo Pinto. Ele nos deixa uma obra extensa.” Rui Biriva, músico
        “O Jayme é referência para todo aquele que milita no Rio Grande do Sul. Foi o grande poeta que tivemos. Payador é o Jayme Caetano Braun e mais ninguém. Era uma pessoa radical na forma de pensar, sem abrir mão do que pensava.” Leo Almeida, músico
        “Jayme foi um dos maiores poetas da nossa terra. Sua morte representa uma perda irreparável para o Rio Grande do Sul. A preocupação com os pobres e a indignação com a exploração das elites foram a sua maior fonte inspiradora. Particularmente, perdi um amigo, um parceiro e o padrinho de batismo.” Pedro Ortaça, músico

        Cemitério de Campanha
        Mas que importa a diferença
        Entre uma cruz falquejada
        E a tumba marmorizada
        De quem viveu na opulência?
        Que importa a cruz da indigência
        A quem não vive mais,
        Se todos somos iguais
        Depois que finda a existência?
        Que importa a coroa fina
        E a vela de esparmacete?
        Se entre os varais do teu brete
        Nada mais tem importância?
        Um patrão, um peão de estância
        Um doutor, uma donzela?
        Tudo, tudo se nivela
        Pela insignificância

        Gineteando
        Quando piá, foi o prazer
        Que nunca troquei por outro
        Saltar no lombo dum potro
        Quando a manada saía
        Artes que a gente fazia,
        Se acaso estava solito
        E depois pregava o grito
        Quando o bagual se perdia!

        China
        Bendita china gaúcha
        Que és a rainha do pampa
        E tens na divina estampa
        Um quê de nobre e altivo.
        És perfume, és lenitivo
        Que nos encanta e suaviza
        E num minuto escraviza
        O índio mais primitivo

        Mateando
        Meu patrício, aí foi o mate
        Vá chupando, despacito
        Que é triste matear solito
        Quando a velhice nos bate.
        Por isso, neste arremate,
        Que chegou num arrepio,
        Meu velho peito vazio
        Que já teve tanta dona
        Ressonga que nem cordeona
        Nos bailes do rancherio

        Gaúchos
        Trago na genealogia
        índios, negros, lusitanos
        mestiços e castelhanos
        brotados da geografia
        que a hora em que me paria,
        livre de mal e quebranto,
        parou pra ouvir meu canto
        mesclado com ventania

        Querência
        Rincão da flor colorada
        No topete das morenas
        Do tilintar das chilenas
        E do umbu, triste e sozinho
        De onde o bem-te-vi, do ninho
        Nas alvoradas serenas
        Desfia um sem-fim de penas
        Na evocação de um carinho

        Hora da Sesta
        No galpão tudo é silêncio
        A cachorrada cochila
        E a peonada se perfila
        Estirada nos arreios
        Só se escutam os floreios
        Da mamangava lubuna
        Fazendo zoada, importuna,
        Nos buracos dos esteios

        Mãe Crioula
        Mãe do pobre peão de estância,
        Miserável dos galpões
        O pária das solidões
        Maltrapilho, analfabeto
        Mãe que sob humilde teto
        Pressente o trote do pingo
        Do filho que vem, domingo,
        Trazer-lhe um pouco de afeto
 

Meu Verso
Quando te vejo, meu verso
Junto a multidão que passa
Entre os fidalgos de raça
Da poesia aristocrata,
Meu coração se desata
E se larga campo fora
Paleteando pela espora
Da emoção que me arrebata

Pois tu nasceste num rancho
Barreado, de chão batido
E assim desapercebido
Foste piá, e homem depois,
Sempre havendo entre nós dois
Alma dum, no corpo doutro
Amor à China e ao Potro
E ao berro amigo dos bois.

Eu fui tudo o que tu foste
Antes de ser o que sou
Pois a vida nos ligou
No velho ajojo da sorte
Tenho amigo, rijo e forte
Sovado a custa dos anos
Que acollhera os desenganos
Do nascimento até a morte.

Porém meu verso crioulo
Contrariando a velha lei
Eu de ti me separei
Já não sou mais como tu,
Que te conservaste crú,
Pois já estou domesticado
Povoeiro civilizado,
E tu ficaste chirú.

Por isso é que tenho inveja
De ti meu verso bagual
Que soubeste ser igual
Depois que os anos passaram,
Pois jamais te enbuçalaram
Cercando-te a liberdade
Nem conheces a saudade
Dos que a Querência deixaram.

E agora, enquanto me páro
Numa fila de cinema
Tu escutas a Seriema
Junto a barranca da sanga
E enquanto comes pitanga
Nalgum capão solitário
Eu vou cinchando o horário
Mais preso que boi na canga.

Tu ginetêias meu verso
Quando te dá na veneta
Podes brochar na carreta
A velha "junta" zebua
E sentir na testa nua
O minuano asselvajado
E ouvir teu nome esmagado
Entre os lábios da Chirúa.

Podes ir de manhã cedo
Beber leite na mangueira
Pelear e correr carreira
Meio a troco de quitanda,
Eu sou um preso que anda
Apresilhado ao ponteiro
Do relógio caborteiro
Que me governa e me manda.

Tudo isso eu me lembrei
Ao te ver numa vitrina
Junto a uma roda granfina
Exposto só por vaidade
E sofri barbaridade
Pois não és feito pra povo
Nem pra viver no retovo
Dos costumes da cidade.

Dá de rédeas no teu pingo
Na direção da Querência
Se alguém notar tua ausência
Não faz mal, isso tem cura,
Vai rever a saracura
E o quero-quero alarmado
Banhando o corpo emplumado
Nas restingas de água pura.

E um dia quando souberes
Que êste gaúcho morreu
Nalgum livro serás eu
E nesse novo viver
Eu somente quero ser
A mais apagada imagem
Dêste Rio Grande selvagem
Que até morto hei de querer.
 

Chimarrão e Payador
O payador missioneiro
Sente o calor do braseiro
Batendo forte no rosto
E vai mastigando o gosto
Da velha infusão amarga,
Sentindo o peso da carga
Que algum ancestral comanda
Enquanto o mundo se agranda
E o coração se me alarga

Sempre a mesma liturgia
Do chimarrão do meu povo,
Há sempre um algo de novo
No clarear de um outro dia,
Parece que a geografia
Se transforma - de hora em hora
E o payador se apavora
Diante um mundo convulso
Sentindo o bárbaro impulso
De se mandar campo fora!

Muito antes da caverna
Eu penso - enquanto improviso,
Nos campos do paraíso
O patrão que nos governa,
Na sua sapiência eterna
E eterna sabedoria,
Deu o canto e a melodia
Para os pássaros e os ventos
Pra que fossem complementos
Do que chamamos poesia!

Por conseguinte - o Adão,
Já nasceu poeta inspirado,
Mesmo um tanto abarbarado
Por falta de erudição
E compôs um poema pagão
À sua rude maneira,
Para a sua companheira,
A mulher - poema beleza,
Inspirado - com certeza
Numa folha de parreira!

Os Menestréis - os Aedos,
Os Bardos - Os Rapsodos,
Poetas grandes - eles todos,
Manejando a voz e os dedos
Vão desvendando os segredos
Nas suas rudes andanças,
As violas em vez de lanças,
Harpas - flautas - bandolins,
Semeando pelos confins
As décimas e as romanzas!

Tanto os poetas orientais
Como os poetas do ocidente,
Cada qual uma vertente,
Todos eles mananciais,
Nos quatro pontos cardeais
Esparramando canções
E - no rastro das legiões
Do lusitano prefácio,
A última flor do lácio
Nos deu Luiz Vaz de Camões!

No Brasil continental
Chegaram as caravelas
E vieram junto com elas
As poesias - com Cabral,
Para um marco imemorial
Nestas florestas bravias
Perpetuando melodias
De imorredouro destaque:
Castro Alves e Bilac
E Antônio Gonçalves Dias!

Neste garrão de hemisfério
Quando a pátria amanhecia
Surgiu também a poesia
No costado do gaudério
Na pia do batistério
Das restingas e das flores
E a horda dos campeadores
Bárbara e analfabeta
Pariu o primeiro poeta
No canto dos payadores!

E foi ele - esse vaqueano
Do cenário primitivo,
Autor do poema nativo
Misto de pêlo e tutano,
De pampeiro - de minuano,
Repontando sonhos grandes;

Hidalgo - Ramiro - Hernández
El Viejo Pancho - Ascassubi
Mamando no mesmo ubre
Desde o Guaíba aos Andes!

Há uma grande variedade
De poetas no meu país,
Do mais variado matiz
Cheios de brasilidade,
De um Carlos Drummond de Andrade
Ao mais culto e ao mais fino,
Mas eu prefiro o Balbino,
Juca Ruivo e Aureliano,
Trançando de mano a mano
Com lonca de boi brasino

João Vargas - e o Vargas Neto
E o Amaro Juvenal,
Cada qual um manancial
Que ilustram qualquer dialeto,
Manuseando o alfabeto
No seu feitio mais austero,
Os discípulos de Homero
De alma grande e verso leve,
Desde sempre usando um "breve"
De ferrão de quero-quero!

Imagino enquanto escuto
Esse bárbaro lamento
Que a poesia é o som do vento
Que nunca pára um minuto,
Picumã vestiu de luto
A quincha do Santafé,
Mas nós sabemos porque é
Que o vento xucro não pára:
São suspiros da Jussara
Chamando o índio Sepé!
 

Arroz de Carreteiro
Nobre cardápio crioulo das primitivas jornadas,
Nascido nas carreteadas do Rio Grande abarbarado,
Por certo nisso inspirado, o xiru velho campeiro
Te batizou de "Carreteiro", meu velho arroz com guisado.

Não tem mistério o feitio dessa iguaria bagual,
É xarque - arroz - graxa - sal
É água pura em quantidade.
Meta fogo de verdade na panela cascurrenta.
Alho - cebola ou pimenta, isso conforme a vontade.

Não tem luxo - é tudo simples, pra fazer um carreiteiro.
Se fica algum "marinheiro" de vereda vem à tona.
Bote - se houver - manjerona, que dá um gostito melhor
Tapiando o amargo do suor que -
às vezes, vem da carona.

Pois em cima desse traste de uso tão abarbarado,
É onde se corta o guisado ligeirito - com destreza.
Prato rude - com certeza,
mas quando ferve em voz rouca
Deixa com água na boca a mais dengosa princesa.

Ah! Que saudades eu tenho
dos tempos em que tropeava
Quando de volta me apeava
num fogão rumbeando o cheiro
E por ali - tarimbeiro, cansado de bater casco,
Me esquecia do churrasco saboreando um carreteiro.

Em quanto pouso cheguei de pingo pelo cabresto,
Na falta de outro pretexto indagando algum atalho,
Mas sempre ao ver o borralho onde a panela fervia
Eu cá comigo dizia: chegou de passar trabalho.

Por isso - meu prato xucro, eu me paro acabrunhado
Ao te ver falsificado na cozinha do povoeiro
Desvirtuado por dinheiro à tradição gauchesca,
Guisado de carne fresca, não é arroz de carreteiro.

Hoje te matam à Mingua, em palácio e restaurante
Mas não há quem te suplante,
nem que o mundo se derreta,
Se és feito em panela preta, servido em prato de lata
Bombeando a lua de prata sob a quincha da carreta!

Por isso, quando eu chegar,
nalgum fogão do além-vida,
Se lá não houver comida já pedi a Deus por consolo,
Que junto ao fogão crioulo,

Quando for escurecendo, meu mate -amargo sorvendo,
A cavalo nalgum tronco, escute, ao menos, o ronco
De um "Carreteiro" fervendo.
 

Sem Diploma
Bendito aquele que estuda
porque estudar é importante,
embora o ignorante
tem sempre um santo que ajuda,
às vezes a sorte muda,
quando existe um santo forte,
cada qual procura um norte,
por isso não encabulo
- que a tava que bota culo
é a mesma que bota sorte!

Meu tetravô foi fronteiro,
meu bisavô domador,
o meu avô - alambrador
e o meu pai foi carreteiro;
a mim não sobrou dinheiro
pra cursar a faculdade,
mas tive a felicidade
graças ao nosso senhor
e me tornei payador
pra guardar a identidade!

O estudo é muito bonito
e até muito necessário,
mas este cantor primário,
cruzando o pago infinito,
continua - a trotezito,
mesmo sem ser diplomado
e me sinto conformado,
o que é meu - ninguém me toma,
pois duvido que um diploma
torne um burro advogado!

Como é lindo colar grau
num salão de faculdade,
embora essa qualidade
não transforme o bom em mau,
o Jayme Caetano Braun,
dessa linha não se afasta,
a inspiração não se gasta
nem me torna mais cruel,
eu conquistei um anel
o de gaúcho - e me basta!


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