REDUÇÕES
DO TAPE
1. Penetração
jesuítica no Tape.
A dilatada província
do Tape, desde as primeiras horas da penetração jesuítica
em território aquém-Uruguai, tinha sido uma das maiores preocupações
desses abnegados caçadores de almas. Dadivosa e fértil a
terra, que se estendia até o mar, era cortada de rios que constituíam
um sistema hidrográfico que a tornava apta para a exploração
extensiva da agricultura e da pecuária; de condições
orográficas que circunscreviam entre altitudes e depressões
de climas variados e amenos; de vasta extensão de campos com excelentes
pastagens que corriam para o sul desde os contrafortes extremos da Serra,
e de matarias virgens alcandorando as serras e bordando as margens dos
rios que, ora se despenhavam em quedas fortes dos altos desníveis
do planalto, ora, deslizando suavemente, espraiavam-se em várzeas
extensas pelas planuras fecundas.
Além
da disposição geofísica que singularizava a terra,
o homem que nela habitava seria, trabalhado pela catequese, um óptimo
elemento, não obstante a sua incapacidade nativa para o trabalho.
Pequeno não seria o esforço para adaptá-lo à
civilização cristã; mas o resultado compensador das
primeiras tentativas induziu os padres a tentá-lo, com a coragem
característica que sempre singularizou a sua acção.
Em 1626 já o P. Roque González, atraído pela fama
do Tape, entrara pelo rio Ibicuí, depois de um percurso de 40 léguas,
até aldeia de Tabacã, cacique poderoso daquela região.
E ali, como vimos, lançou os lineamentos da redução
da Candelária, a primeira, logo destruída por selvagens
vizinhos que não queriam aceitar o domínio da Cruz. O sucesso
só serviu para dar mais ânimo ao heróico evangelizador,
pois, voltado ao Tape, conseguiu o levassem terra a dentro até Itaiasaco
onde, mais tarde, o P. Cristóvão de Mendoza fundaria São
Miguel, nas proximidades da actual cidade de Santa Maria.
A tragédia de Caró, em que perdeu a vida, não permitiu
realizasse o apóstolo a aspiração de expandir a catequese
e fixar marcos de civilização cristão até o
Tape longínquo. Coube aos seus sucessores, principalmente um de
seus discípulos e companheiro de trabalho, o venerável P.
Pedro Romero, quando superior das Missões, a tarefa de levar à
afamada província a acção benfazeja dos ínclitos
soldados de Cristo.
Num depoimento do P. Manuel Bertot, um dos desbravadores do Tape, encontra-se
a notícia do dia exacto em que, sob a direcção do
P. Pedro Romero, os Padres Luís Ernot e Paulo Benavides ,
por via fluvial e os Padres Cristóvão de Mendoza e Manuel
Bertot , por terra, encontram-se na aldeia do cacique Guaimica, ponto inicial
da catequese do Tape. Foi servido Nosso Senhor, depõe o P.
Bertot, abrir a porta da extensa e povoada província do Tape
e seu Santo Evangelho, na Serra que corre até o mar, cerca de cem
léguas, à qual me levou o venerável P. Pedro Romero,
superior que era das Reduções. Entrámos nela a 13
de Julho do ano de 1632, e achámos, na outra banda da Serra, nos
campos que correm até Buenos Aires, cerca de 150 léguas,
um povo de 400 índios juntos, ao qual não faltava senão
igreja e cruz. 1
Até fins do ano de 1631 poucos eram os sacerdotes de que dispunha
a Companhia com as condições exigidas para os trabalhos de
catequese no Uruguai. Além das condições morais e
de comprovada abnegação, resistência física
e outros atributos indispensáveis ao bom desempenho da missão,
mister se fazia que fossem bons línguas e experimentados no ministério
dos índios, pessoas doutas e de toda satisfação.
E isso só foi possível quando, destruída a província
do Guairá pelos mamelucos de São Paulo, nove Padres, tendo
à frente essa compleição formidável de apóstolo
que foi o P. António Ruiz de Montoya, desceram com seu povo num
êxodo de 12.000 almas, Paraná abaixo, sofrendo as maiores
privações, indo até o Paraguai, onde se localizaram
os 4.000 sobreviventes.2
Além do próprio Montoya outros missionários insignes
virão regar com seu suor aquela vinha promissora. Recebe-os o Tape
em que se multiplicam as povoações. Há, entre esses
homens fadados ao trabalho e ao martírio, figuras gloriosas que
ficam circundadas de halos imperecíveis de santidade. Os novos operários
são os Padres Simão Masseta, Paulo Benavides, Luís
Ernot, Pedro Mola, José Cataldino, José Doménech,
Pedro Álvarez e Cristóvão de Mendoza. Veteranos do
Guairá, trazem ainda no coração o travor dos dias
dolorosos, da destruição, dos incêndios, das mortes
e da escravização do povo guairenho, e desa formidável
migração para a liberdade que, fugindo ao barbarismo dos
bandeirantes foi encontrar a morte em sua maior parte.
São estes os debravadores do Tape. Penetram pelas serras, navegam
pelos rios, transpõem o Jacuí, o Guaíba, o Rio Pardo,
o Taquari, o Rio das Antas, e palmilham a terra em todas as direcções
e vão levar a cruz redentora a todos os seus quadrantes. Surgem
pelas aberturas das florestas, cavalgam pelos campos de coxilhas dobradas,
sobem as escarpas do planalto, baixam às profundas depressões
das valadas verdes e, por toda a parte, condutores formidáveis de
povos selvagens, deixam um traço de bondade, um raio de fé,
um cântico de louvor ao Criador Supremo e, muitas vezes, ali ficam,
olhos postos no céu, coroados pelo martírio, glorificados
pela santidade de uma vida exemplaríssima de virtudes e de uma morte
de inigualáveis torturas.
As reduções do Alto-Ibicuí, fundadas já na
província do Tape, são, por ordem cronológica, as
seguintes:
São Tomé – Foi, como se disse, a 13 de Junho de 1632,
que o P. Pedro Romero, superior das reduções do Uruguai,
com os Padres Manuel Bertot e Luís Ernot, a que vieram se reunir
os Padres Cristóvão de Mendoza e Paulo Benavides, ( o único
português que trabalhou no Uruguai ), chegaram ao rio Jaguari, afluente
do Ibicuí, em cuja margem direita levantaram cruz. Ficava aí
o Povo, de 400 almas, a às quais não faltava sinão
igreja e cruz, a que se refere o padre Bertot. Erguida esta, que tinha
40 pés de altura, naquele mesmo dia se baptizava São Tomé,
a primeira redução da província do Tape.
Localiza-a Rego Monteiro na lat. de 29º 22’ S. e Long. O. Rio de Janeiro
de 11º 34’.
Informa o P. Bertot no Testimonio citado que
no primeiro ano da redução de São Tomé reduziram-se
outros 400 índios e nos anos seguintes mais, de sorte que o Povo
atingiu a 1.400 e mais famílias e entraram para a escola 900 crianças.
Baptizaram-se naquele Povo mais de 3.000 almas. A redução
ficou aos cuidados do P. Luís Ernot, que baptizou outras mais, bem
como seu companheiro P. Bertot.
A Ânua do P. Romero, referente a 1633, dá-nos preciosos informes
sobre sobre as actividades apostólicas desses dois sacerdotes naquele
núcleo inicial do cristianismo no Tape, designação
vetusta da própria aldeia (Tape = cidade grande), de onde se irradiaria
pela província dilatada, numa expansão notável, a
catequese jesuítica.
Antes do segundo ano da fundação, São Tomé
já contava cerca de 1.800 habitantes. Haviam-se realizados 70 casamentos,
resultado acima do comum, tendo em vista a dificuldade que sempre se encontrou
em convencer os índios a abandonar as suas muitas mulheres
e entrar no regime da monogamia.
Entre os muitos índios que se baptizaram refere-se a Ânua
a um capitão velho e cacique principal do povo, ao qual sendo perguntado
pelo nome que queria adotar disse que lhe dessem o de Roque, em louvor
do P. Roque, que ali estivera por amor deles.
Um dos primeiros cuidados dos Padres foi organizar
uma orquestra e ensinar o canto aos índios, entre os quais um revelou
tais aptidões que em pouco tempo era escolhido para maestro.
Duas provações cruéis estavam destinadas a reduzir
de muito a população da incipiente aldeia. A primeira foi
a peste que dizimou grande parte do povo, pois morreram, por essa ocasião,
770 crianças e 160 adultos. Seguiu-se-lhe uma praga de tigres (onças).
Irrompiam de todos os lados, atacavam a redução e vinham
cevar-se nos pobres índios que devoravam às dezenas. (?)
Isto sucedeu por duas vezes, ocasionando a fuga de muitos selvagens, que
recaíram nas práticas pagãs.
Em 1638 foi São Tomé, com receio das incursões bandeirantes,
mudada para a margem direita do Uruguai, quase em frente à actual
cidade de São Borja.
1 Visita y testimonio, cit, B. N. Mss. I-29, 1,52 (n. 4).
2 L. G. Jaeger, O Herói de Ibia, cap. 12 e 13.