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Luso Brasileiros

      Em Direção ao Rio da Prata
      Durante muito tempo o litoral extremo sul da América não foi ocupado efetivamente pelos portugueses. Pelo Tratado de Tordesilhas, o limite sul das terras de Portugal no continente americano fixava-se mais ou menos em torno da atual cidade de Laguna, em Santa Catarina. Mas ninguém sabia ao certo onde se localizavam os limites dessas terras.
      Até o século XVII a presença portuguesa restringia-se à capitania de São Vicente e a alguns pontos do atual litoral paranaense. O último ponto da ocupação portuguesa era a vila de Paranaguá. Abaixo dela havia um vasto território, onde praticamente nada existia, chamado pelos portugueses de Continente do Rio Grande. Em meados do século XVII os paulistas começaram a explorar as baixadas do litoral sul, descobrindo ouro no leito dos rios - ouro de lavagem. Essa descoberta atraiu povoadores, ocasionando, já na segunda metade do século, a fundação de vilas no litoral: São Francisco do Sul, em 1658, Desterro ( atual Florianópolis, na ilha de Santa Catarina), em 1675, e Laguna, em 1688. O nome dado ao povoado de Desterro (solidão, banimento), dimensiona o isolamento e a distância desses novos núcleos que surgiram.
      No entanto, o sul do continente americano abrigara as missões jesuíticas, destruídas pelos bandeirantes apresadores de índios. O gado, criado pelos jesuítas, ficou abandonado, espalhando-se livremente pelos campos do Viamão (atual Rio Grande do Sul). Esse gado vai servir de base para a ocupação dessa área, na medida em que os paulistas perceberam que podiam dedicar-se a seu apresamento, atividade mais rendosa do que o ouro de aluvião, que, além de escasso, não apresentava muita lucratividade. O surgimento desses povoados coincidiu com o declínio do ouro de lavagem.
      A União Ibérica ( 1580-1640 ) favoreceu a penetração portuguesa em território que, de direito, pertencia à Espanha, segundo o Tratado de Tordesilhas. Enquanto Portugal esteve sob o domínio espanhol, o estuário do Prata tornou-se importante centro de comércio entre portugueses e espanhóis. Intensificaram-se os contatos comerciais com Buenos Aires, inclusive com o estabelecimento de portugueses naquela cidade. Os peruleiros, mercadores ambulantes e comerciantes portugueses, subiram o Rio da Prata alcançando as ricas minas de Potosi (atual Bolívia), garantindo, através de seus negócios, o aumento do fluxo da prata para a Colônia portuguesa na América. Potosi era o principal centro produtor de prata da América espanhola.
      Inúmeras embarcações navegavam ao longo da costa, da capitania de São Vicente ao Rio da Prata, para trocar tecidos ingleses, escravos africanos e açúcar do Rio de Janeiro pela prata de Potosi que chegava ilegalmente a Buenos Aires. O monopólio comercial exercido pela Espanha não permitia que nenhum navio estrangeiro atracasse nos portos de suas colônias na América. Todo o comércio entre colônias e Metrópole deveria ser feito, exclusivamente, através do sistema de frotas oficiais, em portos únicos, determinados pela Coroa espanhola.
      No entanto, apesar da repressão, o contrabando no estuário do Rio da Prata sempre foi intenso. Muitos interesses estavam em jogo. Portugueses e ingleses, que queriam continuar a colocar seus produtos no mercado platino, e os mercadores de Buenos Aires queriam romper o monopólio que os impedia de comerciar pelo Atlântico, obrigando-os a usar as rotas terrestres ou fluviais permitidas pelo governo espanhol, pelo Pacífico. Restava a opção do comércio clandestino com a América portuguesa.
      À época da Restauração (1640), o Reino português vivia uma situação difícil. Retomara sua autonomia, mas perdera praticamente seu império colonial no Oriente e alguns dos entrepostos africanos. A economia estava em crise. Para manter sua independência, Portugal procurou firmar alianças com a Inglaterra. Os tratados assinados com os ingleses em 1642, 1654 e 1661 possibilitaram à Coroa portuguesa tanto lutar contra as Províncias Unidas dos Países Baixos (Holanda), como obter o reconhecimento de sua independência pelos espanhóis em 1668. Livre da ameaça dos holandeses e dos espanhóis, o governo português dedicou-se à reorganização do que restava de seu império ultramarino.
      A política mercantilista tornou-se ainda mais severa, e uma série de medidas centralizadoras foram tomadas objetivando intensificar a exploração colonial e recuperar as finanças do Reino. Com o incentivo real, expedições foram enviadas ao sertão em busca de metais preciosos.

      A Fundação da Colônia do Sacramento
      A Coroa portuguesa, preocupada com a sua Colônia americana, procurou ampliar suas fronteiras, principalmente no sul, onde os conflitos com os espanhóis eram freqüentes. Tornava-se necessário marcar presença naquele vazio territorial, naquela "terra de ninguém", ocupada pelos nativos, embora tivesse sido percorrida durante o século XVII pelos paulistas. O povoamento da região, que até então tinha se realizado, sobretudo, à custa dos próprios colonos, passou a ser patrocinado pelas autoridades portuguesas.
      Interessado em estender seus domínios até o estuário do Prata e a continuar captando a prata peruana do porto de Buenos Aires, o príncipe-regente Dom Pedro deu ordens expressas a Dom Manuel Lobo, governador do Rio de Janeiro, para fundar uma colônia fortificada, na margem direita do Rio da Prata. Com a ajuda financeira dos moradores do Rio de Janeiro, Dom Manuel organizou uma expedição, formada por sete barcos, soldados, presidiários e índios, fundando, em 1680, a Colônia do Sacramento (atual cidade de Colônia, no Uruguai), em frente a Buenos Aires. A Inglaterra, interessada também em controlar o mercado platino, associou-se aos portugueses na fundação da Colônia.
      Economicamente essa região era muito importante, principalmente pelo intenso contrabando que se fazia no estuário do Prata, envolvendo tanto navios portugueses como navios mercantes ingleses. Segundo o historiador C.R. Boxer, "entre janeiro e outubro de 1735, trinta navios carregados com mercadoria para este comércio de contrabando, estavam ancorados ao largo de Sacramento, inclusive quatro navios ingleses procedentes de Lisboa, possuidores de passes tanto do governo português como do governo inglês, e navegando sob as duas bandeiras, conforme lhes parecia conveniente".
      Além de desempenhar papel importante no escoamento da prata peruana, vinda de Buenos Aires, o porto de Sacramento tornou-se importante mercado de couros. Entre 1726 e 1734, a exportação anual do produto variou entre 400 mil e 500 mil peças, a maior parte trazida de território espanhol.
      Em pouco tempo, a Colônia de Sacramento transformou-se em florescente centro de comércio de contrabando. Sua fundação, portanto, representava uma ameaça ao monopólio espanhol na região platina e a Colônia tornou-se alvo de constantes ataques dos espanhóis, que consideravam, ainda, a presença portuguesa uma ameaça ao controle do estuário. A região foi disputada palmo a palmo entre portugueses e espanhóis e a Colônia passou várias vezes do domínio de Portugal para o da Espanha e vice-versa . Assinaram-se vários tratados e acordos de paz entre as duas Coroas, ocasionando recuos e avanços contínuos das fronteiras da região.
      Assim, poucos meses depois de sua fundação, Sacramento foi tomada pelos espanhóis sendo por eles ocupada de 1681 a 1683. Devolvida a Portugal, ela foi retomada, ficando, novamente, sob o controle espanhol de 1705 a 1716. Devido à hostilidade espanhola, a manutenção da Colônia tornou-se muito dispendiosa e o custo para conservá-la passou a ser um peso para Portugal. No entanto, apesar do pessimismo quanto ao sucesso de Sacramento, a Coroa estava decidida a não abrir mão desse prolongamento de suas terras no sul da América. Para os portugueses o Rio da Prata era a fronteira natural entre os territórios de Portugal e de Espanha no Novo Mundo, dentro do conceito de "limites naturais" adotado na Idade Moderna.
A Ocupação do Litoral do Rio Grande e de Santa Catarina
      Pelo Tratado de Utrecht (1715), a Espanha reconheceu, novamente, Portugal como possuidor da Colônia. No entanto, Sacramento permanecia cercada pelos espanhóis, que entendiam que o domínio português restringia-se somente ao núcleo da Colônia, isto é, os portugueses só teriam direito às terras que ficassem dentro do alcance de um tiro de canhão. As posições portuguesas ficaram cada vez mais isoladas e a sobrevivência de Sacramento seriamente ameaçada.
      A Coroa portuguesa percebeu a necessidade de ocupar as terras vazias entre Sacramento e Laguna. Para diminuir o isolamento e consolidar o domínio no Prata, movimentos de povoamento foram incentivados visando estabelecer núcleos de colonização nos litorais de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Paulistas estabeleceram fazendas de gado em Curitiba, um caminho foi aberto de Laguna até a Colônia e, em 1723, foi fundada a cidade de Montevidéu, para servir de suporte militar a Sacramento.
      Não se conformando com a pressão portuguesa, os espanhóis arrasaram Montevidéu e fundaram, em 1726, pela segunda vez, a cidade, atual capital do Uruguai. Em 1735, o governador de Buenos Aires recebeu ordens para tomar Sacramento. Toda a zona rural da Colônia foi destruída . Pomares, estâncias e gado foram perdidos. Reforços chegaram do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Em outubro de 1736 os espanhóis foram expulsos e os portugueses, que tinham conseguido manter as fortificações, reassumiram suas atividades comerciais.
      Em 1737, uma expedição chefiada pelo brigadeiro Silva Pais tentou retomar Montevidéu, sem sucesso, conseguindo, no entanto, fundar, no mesmo ano, o presídio (forte) Jesus Maria José na entrada da lagoa dos Patos. André Ribeiro Coutinho, um oficial militar, companheiro de Silva Pais, escreveu que aquela era, realmente, a terra de "muito": "Aqui há muita carne, muito peixe, muito pato, muita marreca, muita perdiz, muito jacum (...) muito ananás, muita courama, muita madeira, muito bálsamo, muita serra, muito lago e muito pântano; no verão, muita calma, muita mosca, muita motuca, muito mosquito, muita pulga; no inverno muita chuva, muito vento, muito frio, muito trovão..."
      O forte Jesus Maria José foi, portanto, a base militar para a formação e povoamento do Continente do Rio Grande. Seus primeiros povoadores foram soldados. Além deles havia uma massa bastante heterogênea, que vagava pela região, formada por pessoas de diferentes pontos do Brasil e de diversas camadas sociais: desertores da própria Colônia de Sacramento, soldados convocados contra a vontade, vagabundos, prostitutas e mendigos. Por conta dessa situação, as autoridades militares locais freqüentemente solicitavam a vinda de famílias, chegando o brigadeiro Silva Pais a sugerir que mandassem emigrantes dos Açores.

      Uma Fronteira Cultural: A Colonização Açoriana
      A partir de 1740, por decisão regulamentada pelo Conselho Ultramarino, a Coroa portuguesa estimulou a emigração de açorianos para ocupar e colonizar pontos estratégicos como a ilha de Santa Catarina e terras próximas do continente. As ilhas do arquipélago dos Açores apresentavam excesso de população, o que já havia ocasionado a saída de muita gente. O recrutamento de colonos nessa região foi, portanto, a solução para os açorianos e também para o governo português que precisava povoar efetivamente o sul da América.
      De acordo com o historiador Caio Prado Júnior, esse tipo de migração foi totalmente original no conjunto de nossa colonização e só foi possível por não serem essas áreas produtoras de gêneros tropicais de grande valor comercial. No litoral sul, formaram-se pequenas propriedades em contraste com às grandes propriedades, e os latifúndios do Nordeste.
      Quatro mil famílias deveriam ser mandadas, mas esse número jamais chegou a ser atingido. No entanto, entre 1748 e 1753, um grande contingente de açorianos estabeleceu-se do litoral de Santa Catarina ao Rio Grande de São Pedro, reforçando a presença portuguesa na região. Incentivou-se a "colonização por casais", assim chamada porque era constituída por famílias camponesas dedicadas à agricultura.
      A Coroa ofereceu uma série de vantagens a esses colonos: passagem gratuita e todas as facilidades para o estabelecimento na nova terra. Cada família recebia um pequeno lote de terra, um mosquete (arma de fogo), duas enxadas, um machado, um martelo, duas facas, um podão, duas tesouras, um serrote, duas verrumas (furador), dois alqueires de sementes, duas vacas, uma égua, além de um fornecimento de farinha suficiente para um ano. Os colonos cultivaram a terra, desenvolveram a cultura do trigo e da vinha e fundaram vilas. Uma delas, à beira do rio Guaíba, chamou-se Porto dos Casais, atual Porto Alegre. Formou-se nessa área um núcleo de população branca muito maior do que no resto da Colônia.
      Portanto, ante a necessidade de ajudar a Colônia de Sacramento, a Coroa portuguesa estimulou o povoamento do litoral de Laguna até o Rio Grande de São Pedro. No final do século XVIII, quase todo o sul estava incorporado ao domínio português, predominando, no litoral, as pequenas propriedades agrícolas e, no interior, as grandes estâncias. Os açorianos reforçaram a presença portuguesa de Santa Catarina ao Prata, contribuindo para o predomínio da língua portuguesa sobre a castelhana. Com eles foram criados núcleos de resistência à expansão espanhola proveniente do Prata. Além disso, introduziram seus costumes, artesanato, hábitos, diversões e religião, fortalecendo a cultura portuguesa no Continente do Rio Grande.
 

      A “primeira” revolta gaúcha e a gênese do
      “espírito revolucionário” sul-rio-grandense

      A Revolta dos Dragões, ocorrida em 1742, refletiu as amplas dificuldades pelas quais passaram os primeiros habitantes do Presídio Jesus-Maria-José, origem da cidade do Rio Grande, percalços estes promovidos mormente a partir das penosas condições de infra-estrutura e de abastecimento da recém-fundada povoação. Os dragões, regimento especial que atuava como cavalaria ou infantaria que serviu à defesa do novo povoamento, rebelaram-se tendo em vista à rigorosa disciplina e à repressão dos oficiais superiores, bem como à falta de mantimentos, fardamentos e o grande atraso de seus soldos. Refletia-se, assim, dentre os militares, os graves obstáculos enfrentados pelo conjunto da comunidade, constituindo-se a revolta, neste sentido, num movimento de conteúdo social que, inclusive, contou com o apoio de significativa parte da população. Ao longo do período transcorrido entre o final da década de 1920 e a segunda metade do decênio seguinte, uma série de trabalhos foram publicados a respeito dos dragões e da rebelião por estes promovida nos primórdios da ocupação portuguesa  no território sul-rio-grandense.

      “Brasilidade X Platinidade”: a construção historigráfica acerca das revoluções sul-rio-grandenses. Francisco das Neves Alves (FURG, Brasil)

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