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"Mãe, pai, sou nerd!"

     MÃE: Calma, Astolfo. Isso tudo pode ser um grande engano.
     PAI: Você sabe que não, Helena.
     Entra o filho na sala.
    
FILHO: Pai, mãe, dae... Que tem pro jantar?
     Os pais ficam mudos. A mãe, aflita. O pai, cara amarrada, sentado no sofá. Ambos olhando pro filho.
     FILHO: Credo, que caras são essas?
     PAI: Jorge Eduardo, um amigo seu ligou. Era o "Tarrasque", ou algo assim.
     O filho arregala os olhos.
     PAI: Ele disse pra você levar "coca-cola de dois litros e cheetos extras" hoje à noite, que "a coisa vai durar".
     FILHO: Ah, sim, pois é... o Tarrasque ligou, né? E ele disse... isso... Sabe o que é pai, a gente vai numa noitada na Continental hoje e...
     PAI, irônico: E vão levar coca de dois litros e cheetos?
     MÃE: Calma, Astolfo [tomando a palavra] Jorginho, seu pai entrou no seu quarto e mexeu nas suas coisas. Ele achou isto.
     A mãe joga um objeto pequeno na mesa. Um cubo. Numerado. Azul.
     MÃE [continuando]: Eu disse pra ele que era do Luquinhas, que era do Banco Imobiliário dele, ou algo assim. E é isso mesmo, não, filho? Esse dado é do Luquinhas, não?
     FILHO [respirando fundo]: Não, mãe. Esse dado é meu. Eu tô com um monte desses na minha mochila, agora.
     MÃE: E pra que você usa dados, filho?
     FILHO: Pra jogar RPG.
     Silêncio. Tensão.
     PAI: O quê? Mais o que foi que você disse, rapaz? Anda, responde, Jorge Eduardo!
     FILHO [amedrontado]: Isso que o senhor ouviu, pai. Eu sou RPGista.
     MÃE: Meu filho! Desde quando? Desde quando você sai com essas pessoas, o tal do Tarrasque, pra fazer essas coisas?
     FILHO: Desde a oitava série.
     PAI: Jorge Eduardo, preste atenção. Outro dia eu liguei pro seu colégio. Estava preocupado porque você ficava muito em casa. Sabe o que eles disseram? Que você tira as melhores notas da sala, mas que às vezes é meio "recluso".
     MÃE: Ouça seu pai, filho. Nós te demos um Tempra quatro portas para você sair por ai, com aquelas garotas fáceis, ir a boates caras da moda, cheirar cocaína, viver uma adolescência sem sentido nem massa encefálica, como um jovem normal. E como é que você nos retribui isso? Passando as noites de sexta em casa, aprendendo álgebra, saindo todo sábado pra jogar RPG e dizendo que ia ficar com a Aninha.
     FILHO [voz trêmula]: Mas eu estava com a Aninha. Ela também joga. Faz uma clériga meio-elfa nível 16.
     PAI: O quê, a Aninha?! Olha o que você esta falando, rapaz! A Aninha é filha do tenente Vitor, meu colega da aeronáutica. Conheço o pai dela desde o colégio militar. Um homem de pura integridade.
     MÃE: você sai para aqueles... aqueles...lugares de nerd?
     FILHO: Bom... vou falar de uma vez... Lembra quando eu pedia uma grana pra ir pro Shopping Beira-Mar, ir comer MacTrashes na praça de intoxicação? Eu na verdade ia pra Dragon's House, jogar RPG com meu grupo. Pô, entendam, é uma campanha que já faz dois anos que...
     PAI: E todo dinheiro que eu pus na tua mão pra você comprar roupas de grife, pagar o Jiu-Jitsu, alimentar seu pitbull, pagar a mensalidade caríssima do clube, o celular!?!
     FILHO: D&D 3a edição, Mago a Ascensão, GURPS Fantasy, além de um monte de dados.
     PAI: Não, não! É demais pra mim!
     MÃE: Calma, Astolfo. Olha a ponte de safena. Calma.
     FILHO [derramando-se em lagrimas]: Que droga, pessoal. Eu sou assim. Eu sou nerd. Faz parte da minha natureza. Eu não pedi pra nascer assim. Um dia, na sexta série, eu percebi que gostava mais de ficar estudando do que de chutar uma bola com um monte de homens suados ao redor. É algo... sei lá, meu. É minha natureza.
     O pai arremessa a mão espalmada e derruba o filho com um vigoroso tapa na cara.
     MÃE: Astolfo, não! [lança-se no filho para um abraço] Ele ainda é nosso filho!
     PAI: Filho meu ele não é! Não mais. Vá pro seu quarto, moleque, enquanto você ainda tem um. E saiba que se você ainda quiser morar nesta casa, vai ter que largar essas nerdices e começar a tirar notas baixas, ficar de recuperação, engravidar alguém, espancar caras em bares, viver como um filho meu tem que viver.
     Jorge Eduardo levanta-se, cabeça baixa, e assim vai pro seu quarto, sozinho.
     MÃE [virando-se pro marido]: Isso é coisa da idade. Depois passa. Ele não faz nem noção do que está fazendo.
     O pai em silêncio.
     MÃE: Deve ser má companhia. Esse tal de Tarrasque... Má influencia. Nosso filho é um bom menino, Astolfo.
     PAI: Vou pôr ele num colégio interno na Suíça. Um lugar bem linha-dura, de disciplina fodida e opressora que o ensine a ser uma máquina acéfala de obedecer a ordens de superiores. Foi a melhor coisa que meu pai fez por mim e...
     Nesse instante, Jorge Eduardo volta, irreconhecível pra seus pais, que ficam de queixos caídos. Ele usa um boné de "Trevas", uma camiseta escrita "Você sabe a derivada de integral de 'x' à quarta? Pergunte-me". Carregava livros de RPG misturados com romances europeus do século XIX e poemas de William Blake. Na mochila, via-se livros escolares socados sem jeito, em meio a uma infinidade de papéis e lápis. Tênis velho, surrado, cadarços soltos, calça jeans barata, camiseta desbotada. Irreconhecível.
     O pai apenas senta-se no sofá e fica imóvel, vendo aquilo.
     FILHO: Pai, mãe, eu amo vocês, e espero que um dia vocês me entendam e me aceitem como sou.
     Dizendo isso, abre a porta da rua e sai.
     Não foi de Tempra. Preferiu pegar um ônibus.

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