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O TIRA CERA

NOS LEVA A PENSAR NO CAPITAL INTERNACIONAL E NA GLOBALIZAÇÃO

UMA NOVELA, NÃO MAIS EDITADA, DO ESCRITOR  MARIO DONATO

 

MARIO DONATO

autor entre outros dos romances "Presença de Anita" e  "Madrugada sem Deus"

 Biografia no final

O TIRA CERA

NOVELA

 

SÃO PAULO                                                                                                             1962

 

 

Mr. Clever, mais ,uma vez recorrendo aos tesouros da. sua sabedoria comercial,ditou nova campanha: a mastigação de chiclets e a limpeza dos ouvidos, conjugadas, eram benéficas tanto para os dentes quanto para a audição.

 

Qualquer semelhança de nomes e relatos desta novela com relatos e nomes reais, paciência: a culpa é da realidade.

 

"VERY, VERY CLEVER. . ."

 

Nova York, 1953. .

A International Clean-Ears Incorporated era uma emprêsa de terceira ou quarta categoria, mas estava bem instalada no coração da cidade, num 35,o andar com vistas para a baía. Ouvindo o longínquo mujido dos barcos que entravam no porto, Mr. Clever meditava profundamente. A julgar pela sua concentração, Mr. Clever criava naquele instante algo de notável, de tremendamente importante.

A Clean-Ears fabricava cleaners para os ouvidos, ou melhor, aparelhinhos para tirar a secreção cerosa que se acumula no conduto auditivo externo, coisa que acontece com todas as criaturas, sejam ricas ou pobres, formosas ou feias, brancas ou pretas. O "tira-cêra°' era um aparelhinho simples. Nada mais do que um pequeno estojo, igual aos de batom, dentro do qual se acondicionava uma paleta com a forma adequada para retirar o cerume com um mínimo de dano para a pessoa. Apertando-se o fundo do estojo, como se faz com as canetas esferográficas, a paleta saltava, pronta para ser usada. Enfim, era um treco que se vendia aos montes em todos os drug-stores norte-americanos e razoavelmente nas farmácias de alguns outros países, inclusive o Brasil. Dentre 10 estrelas, 11 usavam o clean-ears.

Talvez os nossos leitores estejam inclinados a rir desse modesto instrumento de limpeza corporal, relativamente desimportante ao pé de um automóvel, de uma eletrola e até mesmo de uma escova de dentes. Mas não era assim que pensava Mr. Clever, presidente da International Clean-Ears, nem assim pensavam os seus três vice-presidentes, dezenas de gerentes, dois mil funcionários, a agência de publicidade, os jornais, revistas, estações de rádio e de televisão que veiculavam a mensagem da empresa,  ganhando boa massa de dólares, E, por extensão, o clean-ears, o "limpa-ouvidos", não era motivo de riso para ninguém que o adquiria com a segura convicção de que, fazendo-o, estava também participando do way of living norte-americano e dos valores morais da civilização ocidental. Assim sendo, Mr. Clever meditava. Não o distraia o abafado rumor que subia das docas. Nem a lambusenta voz de Pat Gloomy, que se derramava através de toda a companhia, cantando uma canção muito em voga: Whispering. in your clean ears. Ao contrário. Para um fabricante de aparelhos "tira-cera'" quaisquer ruidos são sempre um teste para a fidelidade da sua audição. Mr. Clever, como qualquer dos seus subordinados e clientes, ao ouvir menos bem um ruído pensaria incontinenti nos serviços do prestante aparelhinho.

Cinematográficas, vitaminadas e louríssimas Secretárias e estenógrafas penetravam na sala presidencial, pisando de leve o carpete de látex que forrava o chão. Depositavam papéis sobre a majestosa mesa, davam ligeira olhada ao boss de costas para elas e saíam inquietas, Que estada cozinhando o patrão?  , A sua última idéia fôra de arromba. Mr.,Clever, depois de vários mergulhos no oceano do seu subconsciente, reemergira trazendo uma pérola que rendera milhões. . Era o seguinte, nada mais, nada menos. Decidira Mr. Clever lançar uma campanha para persuadir o público ianque de que o hábito de mascar chiclets - indecente e dispendioso, a. seu ver, pois não fabricava esse produto, - poderia ser corrigido, com vantagens para a saúde através do uso mais constante, a todas as horas, do "tira-cera".A pessoa ficaria coçando os ouvidos e tirando cêra, é com isso abandonaria o costume de mascar. O uso do "tira-cêra", que custava um dólar, proporcionada uma economia per-cápita de 78 dólares- ao ano! Era convincente.

A empresa vibrou de alto a baixo com aquela fabulosa idéia, e a agência publicitária  preparou os lay-outs a todo o vapor. Mas a campanha não chegou a passar das primeiras inserções nos jornais. As companhias fabricantes de chiçlets procuraram açodadas Mr. Clever, e Mr. Clever, mais uma vez recorrendo aos tesouros da sua sabedoria comercial, ditou nova campanha: a mastigação de chiclets e a limpeza dos ouvidos, conjugadas, eram .benéficas tanto para os dentes quanto para a audição Aquilo rendeu milhões, sobretudo porque a International Clean-Ears passou a. ter interesse nas fábricas de chiclets.

Por isso, a expectativa tomou conta aquele dia do 35.o andar onde se instalavam os escritórios centrais da Clean-Ears, Algo estava sendo planejado. Algo de monstruosamente importante, como segredou a secretária particular de Mr. Clever. ao 1.o vice-presidente, Mr. Smart. Já tarde, a ponto de se encerrarem os trabalhos do dia, Mr. Smart entrou na sala da presidência. Não . chegou a abrir a boca. Mr. Clever tinha ouvido fino: ouvira-o entrar. E, sem se voltar, rugiu:

- Mr. Smart  vamos ajudar o Brasil!

 

O "TIRA CERA" NO BRASIL

 

No Brasil já se vendiam os aparelhinhos fabricados pela International Clean.Ears de Nova York. Mas poucos. Tanto assim, que a empresa não arrecadava por ano mais do que uns 10 mil dólares. Ora, o Brasil podia render muito mais, pensava Mr. Clever. Mr. Smart pensava da mesma forma. Aliás, Mr. Smart era o homem indicado para aquela importante tarefa promocional, Como o seu nome dizia, -era de fato muito esperto. Fora dele a idéia de gastar alguns milhares de dólares na gravação de Pat Gloomy, "Sussurrando  aos seus .ouvidos limpos". A canção pegara. e de tal forma, que garota nenhuma seria capaz de comparecer a um encontro amoroso com os ouvidos entupidos de cerume.

Além disso, Mr. Smart tinha ligações preciosas no Brasil. Estivera no Rio de Janeiro e em São Paulo. Dizia mesmo que entabulara negociações para comprar uma estância no Rio Grande do Sul, mas nunca se chegou a saber a verdade a êsse respeito. Conhecia políticos e homens de negócio. Era mesmo considerado por eles como um campeão da livre iniciativa, ou seja, em linguagem traduzida, o direito que o forte tem de devorar o fraco.

 Com plenos poderes, Mr. Smart preparou a organização da empresa em São Paulo, pois os seus estudos -revelavam que, partindo-se dessa capital, era mais fácil a conquista do mercado nacional. Depois, a maior parte das empresas estrangeiras já se encontrava instalada em São Paulo.

A primeira coisa que fês Mr. Smart foi pedir licença, a um órgão do governo brasileiro para desembarcar a sua maquinaria -sem pagar direitos alfandegários. O governo deu. Então não vinham as máquinas de Mr.Smart tomar mais poderoso o parque industrial brasileiro?

Quem ouvisse Mr. Smart falar em maquinaria, equipamentos e acessórios, imaginaria tratar-se de instrumentais gigantescos, complexos, vultosos. Não era nada disso. Toda a maquinaria embarcada para o Brasil e reduzia a umas três modestas prensas mecânicas, de alguns mil quilos cada uma, e que serviam, indiferentemente, tanto para o estampo de estojos dos "tira-cêra" como para fabricar cabos de guarda-chuvas ou tampinhas de cerveja. Mas as três prensas. foram avaliadas por Mr. Smart em dois milhões de dólares, e foi com esses dois milhões que a Companhia formou o seu capital no Brasil. Dinheiro mesmo, dólares, nem um sequer.

 Mas, como funcionar? Ora, Mr. Smart não era bobo e tinha amigos. Já ao desembarcar, com as malas cheias de propaganda, atestados médicos e papel timbrado, Mr. Smart concedeu uma entrevista à imprensa, declarando que, ao trazer sua fábrica para o Brasil, vinha colaborar com os brasileiros. O Brasil, era o país do futuro. Produzindo aqui os seus instrumentos, daria trabalho à nossa gente e impediria a remessa de divisas para o Exterior.

Foi muito aplaudido. Os jornais rasgaram colunas em sua honra.Ofereceram-lhe um banquete na Arquifederação dos Industriais. Um vereador propôs que se lhe concedesse a cidadania paulistana, coisa que só não fui levada adiante porque a oposição se insurgiu e compareceu à sessão com palitos de fósforos servindo de "tira-cêra".

A propósito, houve diálogos azedos. Gritava o vereador proponente da cidadania para Mr. Smart:

- Vossa Excelência é uma besta! Só uma besta pode ser contra o capital estrangeiro 1

- Está equivocado o nobre animal que me aparteia - dizia o outro. -Não sou contra o capital estrangeiro. Sou até a favor. Mas a favor do capital sadio, do que vem para ficar. A favor dos empréstimos de governo para governo. Mas não a favor desse capital apressado, que retoma às suas fontes em cinco anos e deixa aqui as empresas drenando a nossa economia. Quanto a essa Companhia, onde está o seu capital?

Estas discussões foram logo abafadas pelos amigos de Mr. Smart, pois, de fato, a empresa não tinha nenhum capital. Mas esse não era . obstáculo para um homem como Mr. Smart. Instalou-se regiamente num dos mais belos edifícios do centro. da cidade e lançou a Companhia Tira-Cêra do Brasil, que imediatamente passou a vender ações aos brasileiros. Mas, mesmo antes que se vendesse a primeira ação ao público, a Companhia já nadava em dinheiro. Várias empresas compatriotas, como a Café-Cola., a. Braslamp, a General Rotors e outras, adquiriram grandes lotes de títulos através do Silver Bank. Aquele negócio ia dar lucro, todos  sabiam.   

Com o lançamento das ações para a venda ao público, já ninguém podia falar em capital estrangeiro. O capital era brasileiro, afirmava Mr. Smart, e a empresa dirigida por brasileiros, para dar lucros ao Brasil.

O que Mr. Smart não contava, nem ninguém lhe perguntou, é que as três prensas entravam na  formação do capital da Companhia com 51%,

  

o que dava maioria à Clean-Ears de Nova York. E dos 49°o de ações chamadas brasileiras, dois terços pelo menos estavam nas mãos de empresas compatriotas da Clean-Ears. O dinheiro brasileiro é que movimentava a Companhia, mas ficava em minoria.

 Mr. Smart, porém, recebia em dólares. Não tocava em cruzeiros. Não era por nada, não. Dizia ele que era uma superstição.

 

 

O DR. VIVALDO, PRESIDENTE

 

Mr. Smart não era homem de vaidades, por isso se limitava a ser apenas o diretor-executivo da Companhia. Presidente era um brasileiro, o Dr. Vivaldo, uma flor de criatura. Robusto, imponente, elegante, com os bastos cabelos branquejando nas têmporas, o Dr. Vivaldo era a simpatia em pessoa. Inspirava confiança. Era olhar para ele e acreditar firmemente em tudo quanto dissesse. Depois, o diabo do homem tinha um tom de voz abaritonado que tomava formosas as coisas mais vulgares que lhe saíssem da boca.

Dizia o Dr. Vivaldo, freqüentemente, a propósito da vinda do capital estrangeiro :

- Precisamos abrir os braços aos homens que queiram colaborar conosco! O Brasil precisa de capitais para fomentar a. sua. grandeza! Somos uma grande terra e um grande povo! Só nos falta o capital para desenvolvermos a prosperidade de 65 milhões de brasileiros! .

Todas as frases do Dr. Vivaldo terminavam em exclamação.

Se alguém lhe objetasse que a maior parte do capital das empresas estrangeiras no Brasil  é formada pelo nosso próprio dinheiro, o Dr. Vivaldo se tornava solene, debruçava-se sobre o interlocutor, punha-lhe a mão no ombro e dizia:

 -- Meu amigo, admito que seja tão patriota quanto eu, mais não!

Tenho dado provas! Na minha mocidade dei ouvidos a essas histórias! são mentiras, asseguro-lhe com minha experiência! Homem adulto que sou, sinto-me forte diante do capital estrangeiro! não tenho medo dele!

E assumia uma atitude tão sobranceira, que parecia uma estatua equestre plantada na colina do ipiranga, a desafiar os vendavais dourados dos dólares e das libras esterlinas. Era impressionante

 

O Dr. Vivaldo tinha idéias definidas a respeito de todos os problemas.Uma delas, por exemplo, era sobre as relações entre o Capital e o Tra:balho :

- O capitalista e o trabalhador devem dar-se as mãos! O Brasil não dispensa a concórdia entre os depositários do dinheiro e os detentores da. força de trabalho! Sejamos fraternos! É o Brasil quem no-lo ordena!

O Dr. Vivaldo preferia, dizer essas coisas quando havia gente humilde por perto. Depois, sempre solene, apertava a mão de cada um, olhando-lhe nos olhos. E a gente humilde se sentia envergonhada de pedir aumento de ordenado a um homem com idéias tão bonitas. .

Era o Dr. Vivaldo muito conhecido nas rodas financeiras. Tinha amigos em todas as repartições, principalmente naquelas onde se deliberava sobre exportações, câmbio e moeda. Em voz baixa, consideravam-no o maior quebra galho já nascido no. Brasil e, a propósito dessas virtudes, contavam-se muitas histórias. Ganhara muito dinheiro com café e mais ainda com algodão. mas vivia sempre de bolsos vazios, porque era muito generoso, sobretudo com as mocinhas, que ele levava de carro para conhecer sua. coleção de discos no. apartamento... Alguns diziam que fazia contrabando, mas decerto era intriga dos invejosos.

Esse, o Dr. Vivaldo, presidente da  Companhia Tira-Cêra do Brasil.  Também ele recebia em dólares, não em cruzeiros. Dizia que para não vexar, Mr. Smart. Além de que era admirador de George Washington, cuja estampa vinha nas notas de dólares...

 

 

MENOS CERA, MAIS V I D A !

 

Montada a Companhia., principiaram a sair nos jornais uns pequenos anúncios em negrito que intrigavam os leitores. "Que cerá que é?" perguntavam os anúncios. Ora, pensavam os leitores, será não se escreve com C.

 "Cerá que chove hoje?" E outras coisas por esse teor.

Depois dessa preparação, estourou na imprensa, no rádio e na. televisão, a campanha cuidadosamente preparada sob as vistas de Mr. Smart.

O lema era :

"Menos cera, mais VIDA!"

Extrair cera dos ouvidos diariamente, e até mais de uma vez por dia, era operação tão necessária como escovar os dentes após as refeições. Provava o Dr. J. H. Grafty que o acúmulo de cerume era o responsável por mais de 55% dos casos de surdez. Mas mesmo o mais insignificante depósito de cerume era altamente nocivo à audição. Já estava provado, através de milhares de testes científicos levados a efeito no Centro Audicional de Kansas City, que, com ouvidos limpos, os ouvintes de Bach e Beethoven gozavam de um prazer mais intenso. A cêra, por pouco. que se acumulasse, impedia a propagação racional das ondas sonoras no canal auditivo, roubando pelo menos 37,28% do prazer que sentem ao. ouvir música as pessoas que mantém os seus condutos limpos Para elevar o nível sanitário dos brasileiros e pa.ra, dar-lhes mais prazer com a audição das maravilhas da Música e da Natureza é que a Companhia lançara o seu "tira-cêra".

Lírio Cavalone, um cantor italiano que fazia temporada em Buenos Aires, foi trazido às pressas, quase raptado, para excursionar pelo Brasil, cantando uma canção chamada "Buona Sera", sob o patrocínio da Companhia. Os bairros eram agitados por um gigantesco concurso para a escolha de Miss Clean-Ears, A vitoriosa ganhada uma passagem de ida e volta a Nova York, com acompanhante. No Ibirapuera organizou-se um campeonato de "tira-cêra", disputado por uma centena de homens e mulheres que faziam em público a limpeza dos seus ouvidos, usando os aparelhinhos da Companhia, e depois se submetiam a exame microscópico,

Quem melhor utilizasse o "tira-cêra", extraindo mais secreção, ganharia um milhão de cruzeiros.

Nem bem o cantor italiano terminava a sua temporada, estourou na praça um rock intitulado Clean-Ears Shaking Dance, gravado pelo Frank .Dull, que pôs a mocidade maluca. Saracoteava-se ao mesmo tempo que se limpava os ouvidos, e isso era. considerado a coisa mais bárbara da época. Vários casais foram enviados a Nova York como embaixadores da Tira-Cêra do Brasil, para mostrar lá com que graça dançávamos e limpávamos os ouvidos. .

Os colunistas sociais ensaiaram uma reação e houve mesmo, em alguns casos isolados, protestos contra a novidade. Limpar os ouvidos em público tinha sido até então coisa grosseira. Outros atos de limpeza são feitos nos reservados. Por que tornar publica a limpeza dos canais auditivos?

Mas os colunistas foram devidamente persuadidos de que estavam errados. Uns viajaram para os Estados Unidos, outros passaram a circular em carros novos e os mais renitentes perderam o emprego. Finalmente, aquela atmosfera de sadia recuperação moral se coroou com a publicação de um livrinho de boas maneiras, de autoria do famoso. colunista Serginho Floreal, que considerava a limpeza dos ouvidos em público uma das práticas mais elegantes de todas as que jamais se inventaram. Fôra, mesmo, costume da nobreza britânica nos tempos de Eduardo o Confessor e só caíra em desuso porque certa onda de mal compreendido puritanismo avassalara a Inglaterra. O uso cedera o passo à hipocrisia. Mas, agora, cabia ao Brasil dar essa mostra de coragem mural, reintegrando aquela benzérrima prática nos seus privilégios sociais!

Aquilo abalou a nação, fez prosélitos, liquidou com as vacilações e oposições. O Dr. Vivaldo deixou-se fotografar pela reportagem social, limpando os ouvidos com um "tira-cêra" em pleno Reveillon do Jockey Association. O senador Pulquério declarou que vencera as últimas eleições graças ao uso diário do "tira-cêra" da Companhia. E o deputado João Amnésia, que aliás não era bem visto pelas classes produtoras por causa dos seus comícios nas fábricas, afirmou que o uso diário do "tira-cêra" é que lhe permitia ouvir melhor do que os seus nobres colegas as reivindicações do povo.

Mas o maior estouro foi quando a mais famosa hostess da sociedade, Dona Tíbia Grosso (em solteira Delgado), deixou-se fotografar cavocando os ouvidos, na Boate Gaveta, com um "tira-cêra" especialmente produzido para. ela, e que ostentava um revestimento de pele de leopardo. Ah, foi um deus nos acuda] Choveram encomendas na Companhia. Estojos de encomendas eram caros, custavam uma pequena fortuna, tanto quanto um aparelho de televisão. Ha.via-os de pele de leopardo, de onça e de veado. Havia-os esmaltados, cinzelados, com brilhantes embutidos. Além desses, lançara a Companhia vários tipos de "tira-cêra" comerciais, de matéria plástica uns, para o zê-povinho ; de alumínio, mais caros, e luxuosos, de prata e de ouro. Havia um tipo especial de "tira-cêra" para o mercado do Rio Grande do Sul, para ser usado quando seu portador andasse a cavalo. Outro para  o mercado do Polígono das Secas, resistente, capaz de extrair a cêra endurecida pela sêca nos ouvidos nordestinos.

Havia jogos combinados com chupetas, canetas-tinteiro, isqueiros e piteiras E havia, finalmente, o "tira-cêra" para pessoas de famílias enlutadas, revestidos de baquelite negra como as dores silenciosas...

No segundo ano da existência da Companhia no Brasil, já triunfava a campanha de substituir as alianças de noivos e casados pelos estojos de "tira-cêra". Pois não era verdade.de que o entendimento entre os conjuges está na dependência da sua melhor audição?

Até as maneiras sociais foram fortemente afetadas. Já não se dizia "bom dia", mas sim "Jà tirou sua cera hoje?". Já não se desejava "Feliz Ano Novo", mas "Que a cera lhe seja fácil". Dos burros dizia-se que tinham "a cêra dura". E a expressão "Virgem Nossa!" foi substituída por " Cera Virgem ! "

Mr. Smart só não venceu as resistências religiosas. Como no caso anedota, quando pretendeu que o noivo prometesse à noiva, não fidelidade e respeito, mas um aparelho "tira-cera", o clero reagiu valentemente. Mas Mr. Smart jamais admitiu que sofrera nesse caso uma derrota comercial Como não era católico, dizia que se tratava de perseguição religiosa. 

 

A MÁGICA DO CAPITAL ESTRANGEIRO

 

Ao desembarcar no Brasil, Mr. Smart afirmara que vinha produzir aqui para evitar a saída das nossas divisas. Infelizmente para os brasileiros, aconteceu exatamente o contrário. 

Logo ao fim do primeiro ano de produção, a. Companhia. declarou 500 mil cruzeiros de lucros, mas exportou para Nova York 30 milhões de dólares. Como podia ser isso? Ora, houvera lucro, muito lucro. O dinheiro dos acionistas fizera funcionar as três prensas velhas e entraram milhões de cruzeiros. Aqui dentro havia pouco o que pagar: dividendos aos acionistas brasileiros. Mas lá fora as dívidas eram grandes. Dívidas? Como assim?

Bem, primeiro a Companhia tinha de pagar os dividendos à Clean-Ears de Nova York, não tinha? Certo, uma vez que 51"/o do capital da empresa brasileira foram realizados com as prensas. Mas não era só isso.

Havia os royalties. Que é isso? Bem, era o pagamento pelo uso da patente da Clean-Ears. Alguns milhões de dólares, conforme a produção.

- Mas, como? - queria saber de Mr. Smart o contador brasileiro, seu Brasilino, que aliás não era bem visto na empresa por causa de certas perguntas embaraçosas que fazia.

 Mr. Smart explicava, pacientemente, que não se podia fazer uso, no Brasil, sem pagamento, da patente da empresa norte-americana, que tinha registro mundial. O Brasil não assinara o convênio internacional de patentes? Assinara. Então, tinha de pagar pelo uso da patente da Clean-Ears.

- Mas, Mr, Smart, - dizia o embaraçante seu Brasilino - o Brasil deve sair desse tal de convênio. Que interesse temos nós em pertencer a um convenio, se não possuimos nenhuma patente para fazer respeitar lá fora? Não seria melhor para o Brasil sair do convênio e usar todas as patentes sem pagar nada? .

Mas ainda havia outras contas a pagar. Havia o chamado know-how, o processo de como fazer os aparelhinhos. Isso também custava alguns milhões de dólares. 

- Mas, Mr. Smart! - insistia o cabuloso seu Brasilino. - Não há nenhum mistério nisso! É gente nossa que está fabricando o "tira-cera" Qualquer um pode fazer!

Ah, que paciência não precisava ter Mr. Smart para responder àquela ignorância das práticas internacionais! Mr. Smart sentia-se um verdadeiro apóstolo, um santo!

Outra coisa. Toda e qualquer operação da Companhia era feita através do Silver Bank, filial de Nova York. O Silver Bank tinha, em cruzeiros, um capital de 250 milhões e depósitos de 2 billhões. Mas emprestar dinheiro a brasileiros ou empresas brasileiras, jamais. Emprestava apenas a empresas suas patrícias, usando para isso os nossos depósitos.

Seu Brasilino, que para todas as questões tinha perguntas embaraçantes, perguntava:

- Um banco brasileiro pode receber depósitos em Nova York?

Explicavam-lhe que não, não podia. Não podia porque lá havia uma lei que proibia os bancos estrangeiros de recolherem depósitos nacionais.

- E por que não fazemos nós uma lei igual para o Brasil? - queria saber seu Brasilino.

Logo circulou pela Companhia, à boca pequena, que seu Brasilino era contra os Estados Unidos por ser a favor da Rússia. Não era verdade, pois uma atitude não implica forçosamente na outra. Se soubesse desses murmúrios, seu Brasilino reagiria, dizendo não ser contra os Estados Unidos nem contra os norte-americanos. Até que era. admirador de muitas idéias e coisas do Tio Sam. Mas, decerto, gostaria seu Brasilino que os brasileiros fossem tão patriotas do Brasil como os estadunidenses são patriotas dos Estados Unidos. Só isso.

Mas o que é fato é que seu Brasilino, depois de algum tempo, tornou-se cacete. Um dia, não passou no exame médico que, por coincidência, a Companhia estabeleceu pa.ra todos os funcionários. Tinha qualquer coisa no coração, disseram. Tinha, sim, era verdade: amor pelo Brasil, uma brasilite aguda, Mas a Companhia foi muito boa com ele: pagou-lhe um mês de salário e Mr. Smart, generosamente, ofereceu-lhe na despedida um "tira-cêra" de ouro caril o nome gravado. A notícia saiu nos jornais e comoveu muita gente prevenida contra os patrões norte-americanos. 

Enfim, pagos os dividendos à Clean-Ears, pagos os royalties pelo uso da patente e pa.go o know-how, lá se foram embora para Nova York 30 milhões de dólares. Antes, quando o Brasil comprava. os aparelhos fabricados fora, gastávamos apenas 10 mil dólares por ano. Agora, fabricando o "tira-cêra" no Brasil, gastávamos 30 milhões!

- Mágica besta! - diria seu Brasilino.

 

A CONTABILIDADE

 

Para substituir seu Brasilino o Dr. Vivaldo trouxe para a empresa um sobrinho seu, o Mauricinho, que estava. ansioso para abrir caminho na vida. .

- Mantenha os ouvidos abertos, além de limpos - dizia.-lhe o seu bom titio. - Mas a boca, essa, fechada? Nós, os brasileiros, temos muito o que aprender ? Há coisas que escapam ao nosso entendimento de povo subdesenvolvido! Na. intimidade das empresas há práticas que podem parecer-nos estranhas Mas são estranhas apenas porque não estamos habituados a elas, e nada mais? .

O Mauricinho prometia que sim.

- Tenho algum receio de que você, meu caro, esteja contaminado por esses rapazes estudantes1 Ah, que tempos estamos vivendo1 Nos dias da minha mocidade, quem se atreveria a desafiar os professores, a querer ditar leis ao Congresso, a exigir contas das autoridades constituídas, atacar em praça pública os países amigos? No entanto, veja hoje, veja hoje I

O rapaz prometia que seria bonzinho.

Mas, mesmo que o não fosse, lá estaria para orienta-lo e po-lo no caminho certo, Mr. Knave, um personagem que Mr. Smart mandara buscar nos States para superintender a Contabilidade.

- Números são números - -afirmava Mr. Knave, sem que Mauricinho pensasse sequer em contraria-lo.

 - A Matemática não é uma opinião!

E, trancando-se com Mr. Smart, Mr. Knave inventava novos meios de . mandar dinheiro à Clean-Ears de Nova York. Aliás, logo no exercício seguinte, surgiu nova rubrica: assistência técnica. Alguns milhões de dólares. Quem é que podia. reclamar? Mr. Knave não estava dando assistência técnica à Companhia  do Brasil?

A Clean-Ears andava ruim de vida, mas a empresa brasileira ia de vento em popa. No primeiro ano de funcionamento, como dissemos, mandaram-se 30 milhões de dólares para Nova York. No segundo ano,as remessas quase dobraram. Mas, além das remessas feitas, ainda sobrava muito dinheiro. Que fazer? Distribuir aos acionistas, aumentar os salários, pagar impostos sobre os lucros extraordinários?

Nada disso. Mr. Smart e Mr Knave tinham a formula aumentar o capital.Quer dizer,  as três prensas vindas de Nova York e mais o dinheiro dos acionistas brasileiros formavam o capital inicial, Agora, os lucros obtidas aqui se incorporavam ao capital, que dobrou. Assim, as prensas, que tinham sido avaliadas em dois milhões de dólares, passaram a render como se valessem quatro, E, em conseqüencia, no ano seguinte aumentaram os dividendos, os royalties, o know-how e a assistência, técnica, e as remessas de dólares para o Exterior foram fabulosas.

Se estivesse presente, seu Brasilino faria uma de suas perguntas de encabular:

- Mas que diabo de história é essa de capital estrangeiro? Dinheiro não veio nenhum. Vieram três prensas obsoletas, que poderiam perfeitamente ser fabricadas aqui. Produzimos uma coisa que não, tem nenhuma utilidade, pois o palito presta o mesmo serviço. E ainda por cima estamos remetendo milhões de dólares para foral Que auxilio nos trouxe esse tão falado capital estrangeiro? Alguém pode me explicar?

Não, ninguém podia explicar, pelo menos na Companhia Tira-Céra do Brasil. 

 

MELHORIA DA PATENTE

 Quem tomava conta das prensas era um negrinho muito vivo, o Zé da Chica, que tinha bossa para a mecânica e até já falava o seu inglês. Um dia, uma das prensas emperrou e não houve quem a pusesse a funcionar. Mr. Smart, desolado, dando voltas em torno da prensa., já pensava em mandar buscar um técnico em Nova York, quando Zé da Chica pediu licença para examinar a máquina.

- Se o Mr, me dá licença, eu boto esse troço a funcionar1

Mr, Smart achou graça. Ora, o rapaz entenderia de mecânica? Não cuidava apenas da limpeza das máquinas?

Mas como não tinha preconceitos raciais, deu licença. E o Zé da Chica pôs realmente a prensa a funcionar, Foi promovido a chefe mecânico,

A força de lidar com as prensas e fabricar "tira-cêras", o Zê da Chica Parafusou uma idéia. Não se podia melhorar o aparelhinho? Um dia em que Mr, Smart fazia uma. visita de inspeção à oficina, Zé da Chica, misturando o seu ingles e a  nossa jiria, procurou interessar o boss numa novidade.

- Mr. por que é que a gente não aumenta um bocado esse troféu pra servir de depósito da cera?

-- Como? Depósito'?

Zê da Chica explicou. Sim, aumentando um bocadinho o estojo e criando uma. lingueta na, boca do estampo, quando o aparelhinho se fechasse limparia a cera da paleta. Depois de algum tempo, bastaria abrir

.-O estojo e extrair a cera acumulada. Não seria melhor? Porque esse negócio de limpar a cera da paleta no lenço ou na beira das mesas era uma porcaria - afirmava a Mr. Smart o Zê da Chica..

Zè da Chica fêz pessoalmente as novas matrizes para as três prensas, e daí por diante os "tira-cêra" fabricados no Brasil passaram a ser muito superiores aos seus similares de Nova York. Isso justificou nova campanha porque, agora, com os novos estojos, todos os antigos passavam a ser velharia. E não era de bom-tom nem patriótico deixar de comprar um novo estojo melhorado pela técnica nacional.

Para atender à procura de estojos, que aumentou desmedidamente com a novidade, Mr. Smart mandou adquirir mais três prensas em Nova York.

Era uma grande operação, pois as prensas estavam custando ainda mais caro, Mas o Banco Brasileiro do Fomento Econômico, órgão do governo, concedeu generosamente o seu aval, e a Clean-Ears de Nova York embolsou mais alguns milhões de dólares.

Quanto ao caso da melhoria. da patente, Zé da. Chica ganhou um aumento de ordenado e a promessa  visitar Nova York em companhia de Mr Smart quando os lucros justificassem tais despesas  O melhoramento criado no Brasil foi definitivamente  incorporado à patente original da Clean-Ears. Mesmo que  próprio Zé da Chica quisesse produzir, em sua casa, um estojo de "tira-cera" com a melhoria de sua invenção, teria de pagar royalties a Nova York, Zê da Chica não sabia, mas, com a sua habilidade, só beneficiara a Matriz da Companhia. 

Interrogado, Mr, Smart teria com certeza uma explicação bastante clara para esse fenômeno. Mas Zê da Chica era muito tímido para fazer perguntas. Contentou-se com o aumento de ordenado. E tudo ficou por isso mesmo,  

 

O SUPERFATURAMENTO E O SUBFATURAMENTO

 

Depois de cinco anos de funcionamento, a Companhia já se tornara uma potência e entrelaçara os seus interesses com as de várias outras empresas norte-americanas sediadas em nosso pais A Companhia tinha ações do Silver Bank e este tinha ações da Companhia. Com a Café-cola acontecia o mesmo. Idem com a Braslamp e General Rotors. A Companhia ainda era dona de uma agência de publicidade, de uma metalúrgica e de uma fábrica de material plástico. E Mr Smart andava fazendo planos para aproveitar a cera auditiva das brasileiros em qualquer produto.

Não serviria como matéria prima para a produção de discos? E lá se foi um pacote de cerume nacional para as pesquisas da Instituto Tecnológico de Salt Lake City.

Ao fim desse tempo, se qualquer companhia realmente brasileira houvesse adquirido aquelas prensas de estampar estojos, mesmo que valessem o absurdo de dois milhões de dólares, já teríamos pago tudo e o dinheiro dos lucros não sairia mais do pais -como diria seu Brasilino. Mas não era isso que acontecia com a empresa montada por Mr. Smart. Ao contrario. 

Um dia anunciou  Mr. Smart, numa entrevista coletiva à imprensa, que o Brasil já dera um passo a frente na sua industrialização. A companhia agora, não apenas fabricaria estojos para o mercado nacional, com o passaria a fabrica-los para exportar, e para exporta-los aos próprios Estados Unidos! 

Foi uma sensação. Aquilo era o sonho da nossa ingênua gente: exportar manufaturas Para o Gigante do Norte A alegria saiu nas ruas, em forma de ranchos e Passeatas Conheceu, PaPudo?

De fato, como a Clran-Ears de Nova York andava mal de vida, Mr. Clever e Mr. Smart, após uma conferencia telefônica debitada á Companhia brasileira, resolveram que o ..tira-cêra" seria fabricado apenas no Brasil.

Havia várias vantagens. Aqui a matéria prima era mais barata. E a mão de obra também. Depois, soava bem e agradava aos brasileiros.

 

Passou então a Companhia Tira-Cera do Brasil a fabricar e a exportar aparelhinhos para os Estados Unidos, donde eram reexportados para todos os demais consumidores das Américas e da Europa. Isso, pensavam todos, iria dar muito dinheiro á empresa brasileira.

De fato, deu. Tanto lucro, que se fizeram novos aumentos de capitais sobre esses capitais se pagaram ainda maiores dividendos aos acionistas, poucos das quais eram brasileiros Como se produziam mais aparelhos, pagaram-se mais royalties, mais know.how, mais assistência técnica. E finalmente, Mr. Smart, de conivência com Mr. Knave, empreendeu uma nova manobra, Que se chama "sub-faturamento".

Superfaturamento nós já sabemos o que é: vender por 100, ao pais, uma coisa que não vale mais do que 10. Isso aconteceu no caso das prensas, que não valiam o que por elas pediu Mr. Smart. E o subfaturamento?

É simples.

Vamos admitir, a titulo de exemplificação, que o aparelho se vendesse regularmente a 500 cruzeiros. Pois a Companhia brasileira faturava a 200 cruzeiros apenas os aparelhos que vendia à Clean-Ear de Nova York. Lá, em Nova York, vendiam-se os aparelhos, em dólares, a um custa equivalente aos nossos 500 cruzeiros. E a diferença de 300 cruzeiros era creditada, em dólares, ao Dr. Vivaldo, Mr. Clever e Mr. Smart. Os três, dentro em breve, tinham suas contas particulares alguns milhões de dólares sugados à economia e ao trabalho brasileiros. '

Seu Brasilino não estava presente Para estranhar e perguntar. Mas, infelizmente, parece Que o trabalho na Contabilidade da Companhia infeccionava as pessoas. Dessa vez, quem estranhou foi o Mauricinho, sobrinho do Dr. Vivaldo, que se atreveu a protestar contra aquilo Que ele chamava de espoliação. Como não lhe deram atenção, ameaçou de fazer comícios no Largo de São Francisco. O Dr. Vivaldo, alegando que o rapaz estava transtornado por excesso de trabalho, mandou interna-lo numa casa de saúde. Mas, quando saiu, não saiu curado: continuou brasileiro.

O FIM DA HISTORIA

 

Mr Smart estava feliz, realizado Era cidadão paulistano e ganhara uma comenda nacional pelos bons serviços prestados ao Brasil. A Companhia prosperava Ele também, graças ao que morava em palacete no Morumbi, com piscina d`agua quente O Dr. Vivaldo quebrava qualquer galho que aparecesse. Aliás, a fiscalização das autoridades brasileiras não era de inquietar ninguém E os poucos acionistas brasileiros recebiam u:ma ação de graça a cada aumento de capital e ganhavam 24%... de dividendos por ano.

De sua parte, o povo parecia também sentir-se feliz com a extração regular do seu cerume Tornara-se um hábito tão comum como o de assoar o nariz em público nisso, o Brasil até ditava a moda ás nações européias, do que era exemplo o príncipe Ali Fan, que só usava aparelhos brasileiros e tirava sua cera segundo a fórmula brasileira. Tudo obra sua, rejubilava-se Mr Smart e Mr. Smart já Pensava em criar novos aparelhinhos para fazer a limpeza de outros orifícios de um povo tão plástico, tão manejável, quando chegou urgente chamado de Nova York.

Mr. Clever estava em pânico, Mr. Clever queria vé-lo com a maior brevidade possível Era assunto da maior gravidade.

Que poderia ser? - Pensava Mr. Smart. Perigo de guerra? Quanto ao Brasil, a situação nião inspirava cuidados Havia, de fato, certa campanha da imprensa, os nacionalistas punham as manguinhas de fora, mas tudo isso havia de passar. Protelou a viagem para o mês seguinte.

Nisso, chegou telegrama de Mr Clever, ordenando a cessação das vendas dos aparelhos no Brasil. Toda a produção deveria ser embarcada para Nova York. Proibia-se a venda de sequer mais um "tira-cera" a cidadão brasileiro. Para comprar um..tira-cera", dai por diante, o interessado deveria exibir licença da Embaixada dos Estados Unidos. Ai, Mr.Smart assustou-se e embarcou. 

A sessão da diretoria da Clean-Ear; em Nova York foi tempestuosa, Estavam presentes Mr., Clever, os vice-presidentes, os gerentes Mr. Smart, no papel de réu.

Acusador, Mr.r Clever dizia que Mr. Smart jamais devera ter imprimido tamanho desenvolvimento ás vendas de Cleaners aos brasileiros. O negócio deveria ter sido mantido em proporções modestas, nunca superar as vendas de todo o resto do mundo, Agora, protestava a Matriz do Silver Bank, protestava a General Steel, protestava a Foods Inc, protestavam todas as empresas Que mantinham firmas no Brasil. Protestavam Porque os brasileiros, afinal com os seus ouvidos desentupidos, estavam dando atenção aos nacionalistas, queriam disciplinar os investimentos de capitais estrangeiros e limitar as remessas de lucros para o Exterior Sabia-se mesmo que ia dar entrada na Câmara Federal um Projeto de lei revolucionário.

Tudo - dizia Mr. Clever, apontando para Mr. Smart - fora culpa do 1º  vice-presidente, que descuidara da parte política do negócio. Não vira em tempo Que, por causa da propaganda nacionalista, melhor fora demonstrar Que a cera era útil à saúde, ensinar o manejo do aparelhinho ao contrário, empurrar a cerume mais para dentro do canal auditivo. Mr. Smart tinha-se esquecido de que negócio fora da pátria é sempre política. só pensara em fabricar mais e mais. Esquecera-se de seus deveres de cidadão dos States, da ameaça dos foguetes atômicos, da guerra fria.

Inutilmente Mr. Smart protestou: ninguém lhe deu ouvidos, caíra em desgraça. A Clean-Ears ficara mal vista em sua própria terra, havia uma ameaça de inquérito no Senado, e Mr. Clever estava possesso. Logo agora que o clean-ear  ia ser adotado pelas Forças Armadas!

Em vão Mr. Smart prometeu retornar ao Brasil para reentupir todos as ouvidos, mesmo que isso lhe custasse a vida. Não aceitaram as seus serviços. Foi sumariamente demitido e Mr. Clever encarregou-se de superar a crise através de mais uma de sua idéias geniais.

Enfim, aqui termina a nossa história. A Companhia vai bem, obrigada.

Seu Brasilino continua decerto a fazer perguntas embaraçosas, que ficam Sem resposta. Mauricinho tem as respostas as pergunta de seu Brasilino, e um dia se encontrarão.

Zê da Chica perdeu uma oportunidade de ficar milionário, mas nem sabe disso. 

O Dr. Vivaldo. sempre que ouve falar em limitar a remessa de lucros, diz que estão assassinando o Brasil. Entrou para o Rearmamento Moral, exibindo-se, ao lado de um índio pele-vermelha e o Papai Sabe tudo, com um chapéu de cangaceiro. Assentava-lhe muito bem.

Quanto a Mr. Smart, com os seus bons milhões de dólares no banco, sofre apenas um desgosto: demitido por desobstruir os ouvidos brasileiros, tinha fama de comunista. Apontavam-no a dedo como "o cubano". Um dia, remoendo isso, quebrou com raiva a última lembrança (além dos dólares) Que guardava de nosso Pais: um disco da marchinha que ganhara o premio num dos Carnavais brasileiras, nos dias de glória da Companhia

Tira-Céra do Brasil

 

Ai, tira a cera, Processo americano.

Você de ouvido limpo, alguém entra pelo cano

 

 

Ai, tira a cera, meu bem, 

tira a cerinha .  .

 

São Paulo, 14-1-1962

 

O Autor 

MARIO DONATO nasceu em Campinas (São Paulo) em 1915. Foi, até á maioridade, operário

gráfico como seu pai. Formado em comércio. Jornalista de "O Estado de são Paulo" (1937/45) e da

"Folha de são Paulo" (1946/49), os quais secretariou. Diretor artistico da Rádio Excelsior (1949/52)

e comentarista político da mesma emissora (1952/58) e da Rádio Nacional de são Paulo (1952/61).

Atualmente (1962) redator cultural e de economia do Canal 5 Foi secretário-geral (1954/55) e depois presidente (1956/57)  da Associação Brasileira de Escritores seção de São Pau(o), e ainda Vice-presidente, reeleito, da União Brasileira de Escritores (1958/61), que resultou da fusão daquela entidade com a sociedade Paulista de Escritores.

Presidente atual (1961) do Clube dos Artistas e Amigos da Arte de São Paulo, conselheiro da Universidade Popular de São Paulo e membro do P. E. N. Clube de São Paulo.

Pertence á Executiva do Diretório MetroPolitano do P. T. B, de São

Paulo(1962). Publicou o Poema "Terra", os romances "Presença de Anita", "Galatéia e o Fanstasma" e "Madrugada sem Deus" ( prêmio "Câmara Municipal de São Paulo", de 1954) e a novela "A Parábola das 4 Cruzes" (Prémio "Letras Fluminenses", de 1954), além de uma dezena de traduções e livros para a infância e a juventude. Dirige com seu irmão, Marcos Rey, uma editora de coleções de livros de divulgação( "Grandes Vocações" e "Conquistas Humanas").

 

 

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