Aladovar e o tipo latino


Originalmente publicado em FOLHA DA HISTÓRIA Porto Alegre, junho de 2000 Pág. 11


CINEMA

Almodóvar e o tipo latino

Alexandre Lobo*

O cineasta espanhol Pedro Almodóvar nos brindou em seu último filme, o pre­miado "Tudo sobre minha mãe", com uma forma diferente de con­tar um velho tema: a caracteriza­ção do tipo cultural latino. Ao con­trário de seus filmes anteriores, como "Carne Trémula" ou "Ata-me", em que os personagens pro­tagonistas são um delinquente e uma mulher com problemas senti­mentais afetivos, em "Tudo sobre minha mãe" é uma mulher na bus­ca de um passado após a perda de seu filho.

Sobre "Carne Tremula", em uma leitura ligeira, poderia ser dito que é apenas mais um filme de Almodóvar, com uma temática si­milar a "Ata-me": uma paixão caliente. Ao gosto do temperamen­to latino, um jovem de origem social humilde, digamos, um plebeu, apai­xona-se por uma princesa fora de seu convívio social. Mas a paixão conduz o filme a um final feliz. No primeiro filme o protagonista é um ex-detento e sua paixão, uma ex-consumidora de drogas ilícitas. No segundo, um ex-paciente de hos­pício e uma atriz de filmes pronográficos. Ambos, por seus personagens, ferem a moral con­vencional e afastam-se dos filmes românticos piquenique com perso­nagens bem comportados.

O que mais me atrai em "Car­ne Trémula" é a fotografia. As ce­nas de sexo estão longe se serem pronográficas, mas carregam ero­tismo de boa plasticidade. O foco, os cortes, as ce­nas. Cortes sobre corpos em movi­mento. Curvas enchidas de car­ne, formas arre­dondadas dispostas de forma harmo­niosa e equilibra­da dificultam a identificação de que parte do cor­po pertencem e revelam a beleza de cada fragmen­to do corpo humano.

Entretanto, "Carne tremula" apresenta algumas variações, tem um fundo político, o início do fil­me situa-se na ditadura franquista. O personagem que nasce em um ônibus, filho do proletariado, uma mãe solteira ou viúva precoce, tem como destino continuar a perten­cer ao lado da Espanha pobre, contraposta a uma Espanha euro­péia desenvolvida. Tornando-se entregador de pizza, ele reproduz as condições sociais de seus genitores.

Uma paixão violenta é atraves­sada por um incidente que leva o entregador de pizza à cadeia. Um suposto rapto, como em "Ata-me", e um tiro, sem autor defini­do, que torna um policial paraplégico, são as causas do infortuno de nosso herói. A trama desenvolve-se com paixões, invasões de privacidade e adultério. Amor impossível, o pro­tagonista passa a trabalhar em uma creche pertencente à esposa do ex-policial paralítico. Relacionamen­tos desenvolvem-se e deterioram-se pela sensualidade e atração que um personagem desperta ao outro. Paixão, desejo e prazer misturam-se como pré-requisitos para a união. A falta de um elemento leva à miséria sexual. O desequilíbrio dos desejos entre os personagens leva-os ao adultério, e, deste, ao crime, para quem sentiu-se traído.

Nos personagens de Almodóvar, a paixão domina a ra­zão. Também em "Tudo sobre mi­nha mãe", temos o exemplo de latinidade numa personagem que, freira, engravida de um homosse­xual prolixo e soropositivo. O de­sejo vence barreiras até mesmo sociais. Se compararmos esses personagens e suas histórias com personagens germanos, como os personagens de Win Wenders, nota­remos um sensível contraste. Neste se­gundo cineasta, as ações lentas, desen­volvem-se em.conflitos existenci­ais. Os personagens, embora igual­mente apaixonados, não sucumbem totalmente aos seus impulsos. Mais contidos, agem de forma mais ra­cional, porém melancólica. O pro­tagonista de "Paris Texas " perce­be que seu amor impossível não tem mais sentido e escolhe a soli­dão.

Ao contrário do tipo latino, no tipo germano, a paixão mais pró­xima do platonismo, carregada de questões existenciais como a bus­ca do sentido da vida e mesmo do

sentido das condições de vida, so­brepõe-se ao erotismo. Anjos apai­xonam-se por trapezistas, supor­tam a ausência do toque, da carne, do calor, apaixonam-se para além do desejo sexual. A transcendência das condições negativas à realida­de nunca é alcançada, os caminhos são separados nos enredos frios. O tipo latino, por sua vez, frente à condições adversas, agindo mais por impulso, dá o toque quente ao enredo, e no final, consegue reali­zar suas utopias.

Não se trata de afirmar que nós de origem latina, somos todos mais humanos e avessos à razão, ao cál­culo e que os germanos, ao contrá­rio, são todos mais frios, porém ra­cionais. Muito menos explicar tal diferença pelo clima, tendo o calor como impulsionador das paixões. Trata-se de retratar um estereóti­po que é um reflexo genérico de uma cultura, e que em ciências so­ciais (ver Gilberto Freire em Casa-grande e senzala) já foi ultrapas­sado como explicação de nossa sociedade. O cinema é uma ilustra­ção de uma cultura, reflete um tipo genérico, mas não tem pretensão explicativa e, assim, Almodóvar faz cinema conforme sua própria ori­gem e influência cultural.


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