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Texto originalmente escrito para:

EXPRESSÃO UNIVERSITÁRIA

Nº17 - JULHO 99

CULTURA

Mário de Andrade: O modernismo de protesto

Alexandre Lobo

UFRGS

Muito mais que uma busca de novas formas de expressão, muito mais que rupturas com um passado arcaico, o modernismo de Mário de Andrade tem como preocupação a construção de uma identidade nacional ligada as questões sociais populares. Em Contos de Belazarte, os escritos entre 1922 e 1926, mas publicados somente em

1934, a miséria é retratada em suas diversas facetas: a fome extremada que leva o ser humano à completa degradação, os desejos reprimidos que explodem em momentos de irracionalidade e o descontrole do rumo da vida ante acontecimentos adversos e inesperados que levam a atitudes impensadas com conseqüências trágicas.

Os personagens destes contos comovem o leitor por suas fraquezas e seus trágicos destinos, mas é em "Piá não sofre? Sofre." que Mário de Andrade é mais cruel. A pobreza e a fome dos personagens neste conto é tanta que eles são desumanizados pela necessidade de sobrevivência, a vida é tão dura que deixa as relações familiares tênues, apagando afetos e sentimentos maternais, pois a sobrevivência pessoal vem em primeiro lugar.

Tereza, personagem de “Piá...", esposa de assassino que cumpre pena na cadeia, tem uma mãe idosa e inválida e tem mãe idosa e inválida, Paulinho. O garoto é sustentado a contragosto pela sogra.

Estigmatizada por ser esposa de presidiário, Terezinha resiste à tentação de prostituir-se. Vive na miséria não só pela fome crônica como pelos desejos insatisfeitos do corpo. Sua virtude tem um caráter antagônico: se por um lado significa manter-se fiel ao marido resistindo aos imperativos da carne, poroutro, a não venda de seu corpo esbarra com a própria sobrevivência. O sobreviver esbarra com convenções morais e a degradação física revela-se também degradação moral.

Não resistindo aos seus próprios impulsos sexuais, Terezinha arranja um amante. A sogra, sabendo deste fato, briga com ela e leva Paulinho para longe de Tereza. A perda do filho é seguido de abandono por parte do amante e de decadência física.

A vida é cruel de forma proporcional a capacidade de defesa. Paulinho pegou tífo de um irmão que morreu sem ter sido batizado. Ele apanhava da mãe por que chorava, mas chorava por que tinha fome. Sem entender o mundo dos adultos com suas normas de higiene, ele come insetos e se ilude pensando alimentar-se.

As condições sociais perversas fazem brutos. Paulinho não sabe o que é carinho, sua mãe nunca lhe agradara e sua avó só lhe fizera um carinho quando levou-o de sua mãe. Este único momento de ternura foi o suficiente para encher-lhe de ilusões de uma vida melhor. A esperança veio junto com a idéia de futuro. As percepções de tempo são de acordo com as classes. Para os desabastados como Paulinho, o futuro não é mais que o dia seguinte. Não existe projetos a longo prazo quando não se sabe o que comer hoje. Há apenas um tênue esperança de um dia melhor.

Em situações adversas os humanos animalizam-se. Paulinho, gradualmente, confunde-se com os insetos que come. Os farelos de pão que deixa na mesa mais sua tosse constante o tornam um excluído na casa da avó. Rejeitado, confina-se no quintal da casa. É lá que é seu verdadeira lar, como um animalzinho que come fora de casa.

Na parte final do conto, Mário de Andrade nos dá uma imagem de o que a miséria pode fazer com os sentimentos. Paulinho, após comer seus insetos, encontra sua mãe no portão da casa. Tereza, já prostituída, sente na infelicidade do filho a sua própria. Ela busca desculpas para poder dar o filho.

Resolve pensar que ele está melhor com sua avó. No mundo da miséria extremada, não há lugar para sentimentos maternais.

Para Paulinho, o futuro é igual ao de milhares de crianças, vítimas da fome

e da subnutrição, engordam os índices estatísticos de mortalidade infantil nas classes populares brasileiras.

Nos outros contos de Contos de Belazarte os personagens também são infelizes, desesperados e suas ações são perdidas nos rumos dos fatos alheios as suas vontades. Mas é na crueza de "Piá..." que podemos ver nitidamente uma preocupação com o social. Aqui, Mário de Andrade antecipa uma característica da chamada geração de trinta, uma consciência - ou pré- consciência - da condição de subdesenvolvimento. A miséria dos personagens de Vidas Secas de Graciliano Ramos não é diferente da miséria de Paulinho e Tereza.

O Modernismo de Mário de Andrade destaca-se por uma preocupação em ter um sentido social, em ser capaz de auxiliar na construção de um futuro levando em conta a necessidade de superação da desigualdade social. O fazer artístico deste modernismo não é um fim em si, mas, para o intelectual comprometido com as causas nacionais, um meio de cumprir uma missão.

Nada em Mário de Andrade é gratuito, ao acaso, mas ao contrário, tudo tem um propósito. Se seus personagens estão submersos em dores e tristezas, não é para provocar uma contemplação passiva de um destino fatalista. Se a tristeza é uma constante, é para provocar a indignação, e desta, uma vontade de superação da dor capaz de levar a uma busca de um futuro melhor e mais justo.' ••.



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